Exposição Prolongada à Ficção Científica  

   um blog de Luís Filipe Silva


12 Março 2008

ISSO É BEM VERDADE. «Não se aprende a escrever romances, aprendeu-se a escrever este romance em concreto.» Neil Gaiman.

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11 Março 2008

DEPAREI-ME VÁRIAS VEZES COM O LIVRO em causa mas nunca me ocorreu que fosse de autoria portuguesa - Rusty Brown, ou seja, Miguel Barbosa, com os seus Crimes no Espaço. O Nuno Fonseca, que foi quem me chamou a atenção, anda a lê-lo, esperemos que faça uma crítica no final. É interessante como em tempos pensei criar um artigo sobre uma pseudo-história ficcionada da FC portuguesa, na qual se teria gerado um movimento pulp bastante forte e intenso durante os anos 40 e 50, dando azo a um género animado e repleto de autores (uma versão nostálgica de um passado que não foi) que assinariam em pseudónimos estrangeiros para vender... e acabo por descobrir que, na realidade, embora estivesse longe de ter tido relevância e qualidade, o número de escritores pulp portugueses com pseudónimo de FC cresce dia a dia...

(P.S. - o Nuno também publicou uma crítica à Bondade dos Estranhos, do João Barreiros, no Orgia Literária, que merece leitura.) 

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SITE PRECISA DE COLABORADORES. Desta feita é o interessante «Bela Lugosi is Dead», um site sobre cinema de terror (e não só) mantido pelo portuense Rui Pedro Baptista. Procura colaboradores que contribuam com artigos. Eis uma boa oportunidade para (por exemplo) se iniciarem nas lides do blogging. Mais informações aqui.

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09 Março 2008

MESMO A VONTADE DE CONHECER e divulgar a história da ficção científica em português não é suficiente para resistir ao produto acabado, quando o temos finalmente entre mãos para apreço. W. Strong-Ross, a.k.a. Francisco Azevedo (que surge como «tradutor» de todas as suas obras), autor nascido no século XIX, pode ter dedicado parte da sua vida a escrever histórias «pulp» de aventuras e ter conseguido granjear uma posição dentro deste género (pesquisas posteriores o revelarão) mas o primeiro contacto com as experiências no fantástico deixou muito a desejar.

O livro em questão chama-se A Fantástica Experiência, e foi publicado em 1965, apresentando um acabamento barato e uma capa prática, branca, apenas com a referência ao título, ao autor e à editora (Cimo - Ficção e Ciência). As badanas resumem pormenorizadamente a história, desde início apresentada como um misto de Mary Shelley e de Fausto (não fossem os leitores e potenciais críticos ignorar as referências óbvias): um determinado jovem médico, para salvar a potencial amada, implementa nela um método revolucionário para expansão da vida. Como? Pela substituição das vísceras... E o prolongamento, é significativo? Aparentemente, não, apenas até aos 120, 150 anos, que é para não sermos muito ambiciosos...

Digamos que se este enredo fosse proposto num ambiente gótico, como os da dita inspiração, decorrendo em plena era vitoriana, resultaria numa percepção completamente diferente, na qual a tecnologia e a própria linguagem arcaica contribuiriam para uma atmosfera de clássico de terror. Contudo, e logo a abrir a novela, o autor situa-nos em plena década de 1960. Num século que assistiu à descoberta da penicilina, do ADN, da guerra química, de progressos na cirurgia - nomeadamente cardíaca -, o método «revolucionário» proposto que é a base especulativa da história cai assim por terra.

E infelizmente, a inspiração do mito teutónico de Fausto é mais uma vez uma repetição da famosa atitude anti-ciência de que «há coisas que é melhor o homem não querer saber...», tão apreciada pelos extremistas católicos de direita de actualmente. Num longo e desnecessário prefácio, o autor explica-nos desde logo que o único desfecho possível será o da tragédia - embora, para sermos justos, admitamos que haja aqui um imperativo romântico e não uma má vontade explícita contra o conhecimento.

Quando esta obra foi publicada, o autor contava já com setenta e sete anos de idade (de acordo com o imprescindível Bibliowiki), razão perfeitamente humana para fantasiar sobre avanços médicos no prolongamento da vida (um dia nós próprios lá chegaremos...) com a preocupação de manterem o paciente no pleno uso das faculdades mentais. A proposta, contudo, como forma de inspiração para as gerações posteriores de leitores e autores de fantástico nacional, não apresenta uma base suficientemente forte para competir sequer com o movimento New Wave que, nesses mesmos anos, revolucionava culturalmente a literatura anglo-saxónica.

Uma percepção ligeiramente diferente deixou-nos os Best-Sellers de Ficção Científica, editado pelo Roussado Pinto. Isso, no entanto, ficará para outra ocasião.

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01 Março 2008

UM TRIO DE VÍDEOS sobre as possibilidades (técnicas e sociais) da imersão na Realidade Virtual, em particular na Second Life. A visão simultâneamente paralela mas distante do que Gibson nos propôs em Neuromante - aqui a imersão ocorre essencialmente através de interfaces visuais e auditivas (ecrãs, altifalantes) e não pela ligação directa ao encéfalo, as quais não permitem níveis de estimulação física muito complexa. Ou seja, na ausência do toque, do cheiro, do movimento físico, o «estarmos lá» reveste-se de uma particular pobreza. E contudo, a dedicação de alguns membros a esta forma de comunicação reveste-se de um investimento pessoal e emocional tão elevado, e com consequências individuais importantes, como podemos ver logo no primeiro vídeo, que podemos já falar de uma RV genuína, com verdadeiro impacto no MR (desenvolvimento de uma economia paralela, existência de abuso e criminalidade dentro e fora da virtualidade, entre outros). A observar com atenção. [vídeos sugeridos por William Gibson e Charles Stross nos respectivos blogues]

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29 Fevereiro 2008

UM ACONTECIMENTO INÉDITO: Neil Gaiman disponibiliza o conteúdo completo de uma das suas obras gratuitamente na internet (mas, ao contrário de Cory Doctorrow, fá-lo de forma inteligente, obrigando-nos a ler online; quem quiser ler offline que compre o livro). American Gods teve já uma edição em português do Brasil que por vezes surge à superfície nas lojas dos eventos de banda desenhada. Em nosso português, esteve quase, quase para surgir (cheguei a passar boas horas a rever e a discutir com o tradutor), mas no final foi mais um projecto que se perdeu. Enquanto não nos chegam os Deuses Americanos à porta, fiquem com esta pequena fábula sobre os deuses que acompanharam respectivos adoradores e crentes na viagem desde terras além-mar, em busca de oportunidades ou a fugir de desgraças, e desembarcaram em Providence ou Ellis Island, também os deuses imigrantes. Deuses que se encontram a perder terreno para outras formas de adoração e entorpecimento espiritual. Uma ideia que faria sentido desenvolver para o território português, desde há muito salpicado pelas culturas orientais e africanas e agora enriquecido com os povos e imaginários do centro e leste europeu.


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27 Fevereiro 2008

A FORMA NÃO REVELA O CONTEÚDO. Em particular no caso de A Caixa em Forma de Coração, que na verdade contém o fato, o fato de um defunto (Alexandre Dumas chamar-lhe-ia O Fato do Finado, e seria uma história de amores perdidos e vinganças imperfeitas que sairia em fascículos todas as segundas, quintas e sábados), comprado por intermédio do eBay (sejamos modernos e electrónicos - basta de vasculhar sotãos de casas abandonadas e bafientas ou garage sales da louca assumida de um vilarejo do Midwest ou sequer receber o artefacto como herança ou engano pelo correio) e que chega com fantasma incluido – aparentemente não vinha nas instruções nem na descrição do produto. O que parece um bónus comercial em breve se torna num defeito de fabrico, mas como neste caso se comprou em leilão a um particular e não a uma empresa com assistência ao cliente é impossível devolver. E assim se fica em casa com o espectro de um velho que o acompanha a si enquanto se levanta de noite e fica a aguardar que fale, para entãO acordar e o degolar com uma navalha hipnotizadora.

Leitura divertida, está-se a ver.

O protagonista é um maluco por artefactos esquisitos. Tem um filme snuff em casa. Compra destas tretas na internet. Foi cantor de hard rock. Aparentemente está tudo relacionado. Teria de comprar o fantasma porque o fantasma não o procuraria depois de morto, embora o tivesse a ele como alvo pois o que o motiva é uma história de vingança pessoal. É o que lhe diz a vendedora, quando a contacta pelo telefone. Aparentemente é, ou foi, irmã de uma rapariga que este protagonista, pós-carreira e pós-meia idade a viver das royalties dos discos, fez robolar na cama algumas vezes e depois despachou de volta para casa – e ela foi e aparentemente cortou os pulsos por causa disso. O protagonista teve tantas saudades dela que menos de uma semana depois da devolução à procedência já estava enrolado com outra de igual (tenra) idade. Vício ou amor? Mas o protagonista não devia ser uma pessoa boa? Se não é, should we care?

Na Americanilândia, supostamente sim. E como manda o ditame, mais tarde descobriremos que existe uma pessoa dentro dele com coração – não o que vinha dentro da caixa que tinha esta forma, porque lembrem-se, dentro da caixa vinha um fato, um fato que acaba rapidamente queimado e a caixa não volta a ser mencionada. Aliás, a caixa nem tem importância alguma nesta história, bem vistas as coisas. A história é sobre um fantasma hipnotista que consegue levar-te a cortares a goela, a tua ou a de outrém, sussurando ao teu ouvido – ou melhor, na tua mente, pois os fantasmas não têm cordas vocais e logo não conseguem produzir vibrações sonoras. Sim, estas regras lógicas são importantes. É importante lembrar que é preciso morrer ou matar daquela forma complicada e demorada. Qualquer outra mais simples e directa – do género: sussurrar que um dos braços se contorce subitamente enquanto se conduz, provocando um acidente fatal – é fazer batota. Para se deslocar, o fantasma precisa de uma camioneta fantasma (expliquem lá esta em termos gnósticos, hmm?). Não é de admirar então que tenha medo de cães fantasma – embora os cães só lhe possam fazer mal se estiverem vivos, pois se morrerem desaparecem para um limbo qualquer, saem da história, acabam ali as filmagens e vão correr atrás das cadelas nas praias de Malibu. Pronto, mas isto é que já não nos dizem. Apenas que desaparecem. Esperem lá, já me perdi. Estamos onde?

Estamos na América, Nova Inglaterra, embora felizmente não nos quedemos pelo Maine e cheguemos a Nova Orleães, uma cidade supostamente alternativa pois não foi invadida pelas águas e o pai do protagonista – um homem dominador que abusava espiritualmente dele e da mãe, e quase lhe castrou a veia artística – solta os últimos suspiros nesta terra, tendo esperado décadas pelo regresso do filho e pela oportunidade em entrar no livro. E quando entra, diga-se literalmente que é a matar.

E depois temos a agradável sidekick, a que, sem saber, foi ocupar o lugar da outra, a que se matou, ou foi matada – embora esta seja gótica e dada ao sobrenatural – mais um item da colecção do cantor de rock? –, uma miuda de vinte e poucos anos que se perde de amores pelo cinquentão que não sabe estimá-la (era útil saber onde é que se consegue arranjar disto na vida real). Ela recusa-se a procurar assistência médica para a infecção que apanhou do fato e que lhe está a consumir a mão. Ela vai ser um portal. Ela anuncia que vai ser um portal. Tudo chegará através dela. Mas no momento da verdade, apenas contribui com o sangue com o qual se desenha uma porta no chão. Talvez isto faça sentido. Talvez se abrirmos a porta.

Ah, dissemos há pouco que os mortos não falam. Isso depende dos mortos. Outros telefonam. Telefonam sem ser a pagar no destinatário, eis o grande mistério. Mas só depois de se enforcarem. E contam como foi. Embora tenham visto o fantasma apenas uma vez e fugido a sete pés. O fantasma que hipnotiza e que ordena às pessoas que se matem. Embora com estes não tenha falado. Aparentemente só funciona para aqueles com quem não fala. Os que ficam e que o vêm a toda a hora conseguem ir-se safando de investida após investida sucessiva, em particular se têm cães que os defendam. Mas cães vivos, porque os cães mortos dão logo à sola e abandonam os donos. Ah, e não queimem o fato, porque se não não se livram do fantasma. «E a caixa em forma de coração?» Qual caixa?... Ah, sim, a tal.

Ser coleccionador de objectos bizarros não safa o protagonista. Afinal esse foi só um plot device que justificou que o protagonista comprasse a bizarria pela internet. Não há nada na colecção privada que sirva de amuleto ou protecção. A não ser a miuda. A miuda que vai ser um canal. Mas que afinal é só uma porta. Afinal esta é que possui uma daquelas ardósias com as quais se contacta com os mortos. O que é estranho é que estes escrevam as palavras na totalidade e não procurem aquelas abreviaturas populares dos SMS. Não há telemóveis do outro lado? «Mas olha, já pensaste bem se o fantasma se pusesse a escrever coisas como PQ QQ :’( = 1 :-* MORTE LOL («porque uma qualquer lágrima de desalento equivale a um beijo de morte – riso sinistro»). Assim não assustava ninguém. E ser-se a assombração principal numa história de terror não é para brincadeiras. Afinal, é o papel da sua vida... er, pós-vida?»

Muito abuso de pai e mãe sobre os pobres e indefesos descendentes existe neste romance. Não há adulto ou criança que não tenha sido vítima de uma mãozinha demasiado pesada ou demasiado excitada, e então, lição não aprendida, torna-se por sua vez, ao crescer, também abusador. Isto não seria de desconfiar, mas se vos disser que o autor é Joe Hill, e que Joe Hill também se poderia chamar Joe King, e que este King provêm das gónadas do famoso Stephen, e que o autor-filho procurou e ainda procura activamente disfarçar a informação de quem é o autor-pai... a mostarda chega ao nariz, a porca torce o rabo, quem sai aos seus não degenera, o bom filho à casa torna e o mau ainda mais depressa. Porque trata-se de terror. Não romances de cordel, aventuras navais com esquadras napoleónicas, road novels inspirados numa beat generation esquecida mas endereçados à geração pós-X (Y? Z?). É terror, é a profissão do pai. E com isto, Joe Hill quer fazer-nos crer que a sua escolha de género temático não tem nada com o que assistiu lá em casa. Escrevendo um livro em que um pobre artista quase não sobrevive face a uma figura do pai dominadora e é obrigado (com as desculpas inevitáveis do enredo) a acabar com ele. Como diria o gato de Cheshire, o sorriso conhecedor é a última coisa a desaparecer.

Diga-se de passagem que o livro tem um ambiente nefasto e que a acção não perde tempo a instalar-se. Não estamos em território Henry James, o fantasma surge logo e começa a impôr-se praticamente nas primeiras 30 páginas, ainda antes do primeiro intervalo comercial. Até na literatura existe o medo do zapping. E como se ganha à página, nada da maçuda backstory do romance do século XIX que éramos obrigados a engolir por inteiro antes do início do enredo. Frases curtas, prosaicas, práticas. Uma atitude hands-down típica norte-americana.

Que não é bem apanhada pela tradutora. O que não admira, pois o livro está feito, como a maioria (era capaz de afirmar) da literatura comercial norte.americana, num estilo coloquial, simples, directo, sem artifícios linguísticos e procurando efectuar um rapport emocional de identificação do leitor com a época presente. Isto é conseguido pelo recurso a lugares-comuns e expressões idiomáticas (a tradutora preferiu traduzi-las quase sempre de forma literal, o que as torna por vezes incompreensíveis – quantas expressões idiomáticas nossas fazem sentido se apresentadas literalmente numa língua estrangeira? – e perdendo-se por completo a carga emocional ligada ao quotidiano), e por apresentar a rotina dos personagens salpicada com marcas comerciais e objectos, que fazem muito sentdo para um norte-americano e quase nenhum para nós (para seu mérito, a tradutora lá vai soltando as inevitáveis notas de rodapé a explicar as marcas mais notórias).

Relativamente a este último caso, vou dar um exemplo, que não surge no livro, mas apenas como ilustração do efeito. Imaginem que o protagonista gosta de Reese’s Pieces. É louco por Reese’s Pieces, desde a infãncia, o que condiz com a sua função – é investigador de fenómenos relacionados com ovnis. Um norte-americano da minha (sua?) geração ficará imediatamente identificado com este simpático protagonista. Saberá que o Reese’s Pieces é um doce extremamente viciante que combina chocolate e recheio de manteiga de amendoim, vendido em tabletes pela Hersheys (esta própria uma empresa conhecida pelos chocolates). Adorado pelos miudos, em particular desde que viram o E.T. do Spielberg devorá-lo num dos mais inteligentes product placements da História. Não é apenas uma marca, é a identificação de uma geração. Como traduzir isto, se o produto não existe em Portugal? Poderia alterar o produto para «Coma com pão» e a empresa para «Nestlé», haveria algum reconhecimento, mas o efeito não seria, nem de longe, o mesmo.

O que os autores norte-americanos reconhecem (porque a sociedade deles os expõe mais a isso e porque são mais descontraidos nas artes do que nós) é que as marcas fazem parte da identidade cultural de um indivíduo ou de uma geração, e que podem ser usadas como instrumento de caracterização literária. Para o bem ou para o mal (o excesso conduz ao vazio, como em tudo). Não parece haver saídas fáceis para os tradutores, nestes casos. Mas seria interessante promover o debate.

No final, o somatório dá nota positiva ao romance de Joe Hill, publicado entre nós pela Civilização. Uma tradução mais cuidada era o que se pedia – para o preço em questão – , e ao autor um maior trabalho de maturação na lógica do romance, que funciona exclusivamente a um nível visceral e imediato, mas que quando se começa a tentar compreender a lógica do plot... É o primeiro romance do rapaz, e pode ser que entretanto aprenda algumas coisas. Lá em casa, pelo menos.

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18 Fevereiro 2008

NUM HOTEL VOCÊ DEIXA MAIS QUE LEMBRANÇAS. Uma reportagem publicada no último número da revista Morgan’s Australia põe a descoberto de forma chocante as ligações estreitas entre a indústria hoteleira e o crime organizado do roubo de identidades. Tratando-se da mais importante natureza criminosa que assola as sociedades desenvolvidas actuais, o roubo de identidades foi responsável, apenas no ano passado, por meio bilião de euros de danos físicos e patrimoniais, e um investimento considerável e crescente nas medidas de segurança e protecção da informação, com efeitos negativos nos orçamentos públicos mundiais. A falsa identidade está na origem de esquemas de fraudes financeiras que atingem, não só as populações de forma massiva, como grandes corporações e entidades bancárias, e inclusivamente atribuições automáticas de compensações governamentais. Desde a simples aquisição de bens de consumo com recurso a meios de pagamento roubados, ao desvio de transacções financeiras internacionais de elevada magnitude, este tipo de criminalidade é já considerado pelos sociólogos como um dos efeitos secundários mais nocivos da globalização, e embora tenha incentivado a criação de protocolos entre as forças de segurança internacionais para a detecção e captura dos criminosos, tem igualmente estado na origem de um debate político aceso a nível da ONU sobre o direito à privacidade e ao estabelecimento de limites na recolha de dados pessoais versus segurança pública – debate que certamente será avivado perante o surgimento deste extraordinário trabalho de investigação. O que os jornalistas da revista australiana relatam com bastante pormenor é um dos métodos mais insuspeitos, eficientes e engenhosos de captura dos dados pessoais, que recorre intensamente a unidades hoteleiras espalhadas por todo o mundo, algumas das quais pertencendo a importantes grupos turísticos. Como todos os grandes métodos ilíticos da História, alia simplicidade com engenho, aproveitando-se do ambiente de confiança que se estabelece naturalmente entre cliente e hotel, bem como da ampla oportunidade, pelo estabelecimento, de recolher detalhes da vida privada dos seus frequentadores. Tendo acompanhado uma equipa de investigação de Sydney, e em seguida efectuado eles mesmos uma experiência, os jornalistas relatam como desde o primeiro momento, uma unidade hoteleira tem acesso a informações sobre o cliente, de forma legítima, justificada pelo negócio, e por vezes obrigatória por lei, que o próprio não facilitaria sequer em muitas outras situações – a começar no registo de chegada, onde é requerida a apresentação integral de documentos de identificação e de meios de pagamento, ambos facil e rapidamente duplicáveis por dispositos preparados para o efeito. Não se contentando com isso, os hoteis têm ainda acesso aos pertences do cliente durante os períodos de ausência deste do quarto, às suas impressões digitais, ao seu código genético por recolha da pele e cabelos libertados pelo corpo; podem gravar a voz e respectiva entoação para reprodução posterior junto do banco, as impressões retinais e até os maneirismos, que poderão ser imitados por um simulacro virtual. Uma estadia de meros dias é suficiente para se obter um padrão psicológico mínimo que lhes permita (entre outros esquemas ditos de impersonalização) reproduzir, de forma rápida, as palavras-chave que a vítima usa para aceder ao património financeiro. Os golpes efectuam-se geralmente em países e culturas onde não tenha estado anteriormente, informação facilmente obtida através do passaporte, ou se encontre em férias ou imersa em situações pessoais que fragilizem a sua atenção – e com bastante recorrência durante o período de viagem de regresso a casa, no qual a vítima não tem acesso aos seus registos financeiros nem pode ser facilmente contactada, deparando-se, ao chegar, subitamente depauperada e impossibilitada de regressar ao local do crime e apresentar uma queixa formal. Daqui se depreende, afirma a reportagem, que a eficiência no combate a estes actos ilegais dependerá cada vez mais da capacidade de colaboração das forças de segurança e da vontade política dos países onde o nível de incidência é maior. O problema não se encontra, ao contrário do que seria de se esperar, apenas nas tradicionais regiões menos desenvolvidas, uma vez que um assustador nível de ocorrências se tem verificado no seio da própria UE, e ao qual nem Portugal se escapa, encontrando-se o número de queixas apresentadas contra o território luso acima da média europeia. O assunto chamou já a atenção do Executivo nacional, que planeia uma campanha de sensibilização global durante o corrente ano. Entretanto, entre os primeiros a reagir encontram-se as companhias seguradoras, as mais afectadas historicamente pelas repercussões deste tipo de criminalidade, emitindo comunicados aos seus clientes a avisar sobre limitações no nível de responsabilização assumido, caso estes não protejam as respectivas identidades, mediante a aquisição e uso de avatares legais e validados. [Agência Nacional de Notícias, 19.02.2015]

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