Exposição Prolongada à Ficção Científica  

   um blog de Luís Filipe Silva


20 Julho 2009

And Now For Something Completely Similar. Reportagens sobre a Lua dos diferentes senhores e senhoras da Ficção Científica:

Há mais. Vão ver.

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Pai, Que Horas São Na Lua? O relógio recomeça, filho, o relógio recomeça.

Vivemos na presença de uma dezena de homens (infelizmente nenhuma mulher) que colocaram os pés noutro planeta. Ainda que fosse por motivos egoístas de índole política (alguma vez se conseguiu algo sem ser por motivos egoistas? O que julgam que foram os Descobrimentos?). Realizado por um pequeno grupo de pessoas (comparativamente aos milhares de milhões que éramos e agora somos mais). Pessoas munidas de computadores básicos e muito engenho matemático. Enquanto espécie adoramos o espírito de equipa. Fomos, e ainda mais milagroso, voltámos, incólumes (a grande tragédia do programa Apollo aconteceu em Terra). Eis algo que os nossos netos não conhecerão. Somos a geração que não precisa de deuses para rasgar os céus.

Hoje muitos olhos vão estar postos no passado. Vão utilizar a tecnologia para reviver, passo a passo, os minutos daquele acontecimento extraordinário. Vão aguardar pela EVA de Neil Armstrong, vão pedir-lhe que pouse fisicamente no terreno. Duvido que os astronautas conseguissem resistir a sair da cápsula. É patente a emoção que os domina na singela frase «Tranquility Base here, the Eagle has landed». Aldrin descreveria a Lua com outra tirada de mestre, a Desolação Magnífica. Quando a ocasião assim inspira, todos nos tornamos em poetas.

O sempre inovador João Seixas lançou um desafio para contribuições relativas ao tema, que se encontra a publicar no blogue, a um ritmo moderado. Leiam a do António de Macedo e as do próprio João, sendo que daqui a pouco o João Barreiros entrará em cena com outro conto de mestre. Enquanto não chega, e se estiverem interessados, podem ficar a conhecer a minha modesta participação, escrita durante este fim-de-semana. Não sei que outros textos nos aguardam, neste formato que consiste, em si mesmo, num canal muito particular, muito pessoal, uma janela sobre o passado. Não estivemos lá, mas a verdade é que ainda lá estamos.

Ninguém melhor para exprimir a Desolação Magnífica do que os Pink Floyd, nesta gravação que capta a desgarrada emitida em directo pela BBC, na noite do evento. Que possa trazer alguma paz a (mais) uma celeuma que assolou a comunidade portuguesa de fantástico nos últimos dias, potenciada pelo imediatismo da internet como o restolho seco potencia os incêndios florestais. Apesar de tudo o que foi dito, é o silêncio que irá revelar onde se situam os interesses, como sempre tem revelado. Neste caso, e de forma muito explícita, o silêncio sobre o presente feito, sobre o aniversário, sobre um sonho ao mesmo tempo realizado e impedido. Nenhum verdadeiro apreciador de Ficção Científica lhe fica indiferente - não é um dogma mas uma constatação quase genética. Do outro lado, nenhum verdadeiro apreciador de Fantasia lhe confere igual fascínio - não é um juízo de valor, mas um assumir de postura. Somos água e azeite, semelhantes na nossa forma líquida mas de difícil convívio. Eis a nossa natureza. Isso nos cria. Isso nos destroi.

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18 Julho 2009

40 Anos Depois Dos 40 Anos da ida à Lua foi o desafio do SAPO. Foi-me impossível responder ao convite presencial de gravar umas palavras sobre o assunto, mas contribui com um pequeno texto, caso a reportagem vídeo fosse acompanhada de um artigo. Fica aqui o destaque ao trabalho dos jornalistas (no qual surge o nosso «enviado a Marte», José Saraiva), bem como a minha contribuição.

A espécie humana é lenta e acomodada por natureza e só nos movemos pela força da necessidade ou do incómodo. Não há nada de moralmente errado, trata-se do mais básico imperativo genético: chegados à fértil pastagem ou à pradaria recheada de caça, há que parar e reproduzirmo-nos. O esforço termina quando o objectivo é alcançado e se assegura o futuro.

Isto, infelizmente, é a postura pragmática da mentalidade adulta, anti-heróica, desprovida de ideais, contrária à perspectiva romântica de quem ainda é jovem. Sabemo-lo bem, já o fomos ou estamos em fase de o ser, e não há quem não passe por esta transformação.

As sociedades humanas não são diferentes neste aspecto, e se jovens e românticos sonhámos com a exploração espacial, a conquista dos outros planetas e elaborámos ficções a esse respeito, quando finalmente lá chegámos deparámo-nos com a pergunta que não soubemos responder antes.

O que fazemos agora com isto?

Perante os riscos (enormes) e o esforço (imensurável) de colocar humanos em condições muito precárias no espaço e noutros planetas, por reduzidos períodos de tempo, o sonho desfez-se, e não se voltou a ouvir falar de exploração espacial a não ser pelos métodos muito mais razoáveis, mas menos idealistas, de sondas não tripuladas. Inclusive a ficção científica virou-se para dentro, para o planeta e para os problemas humanos. Éramos o filho que, tendo-se aventurado para fora de casa, se deparara com um mundo inóspito e agreste.

Voltar ao espaço terá, assim, de ser um empreendimento de adultos, de uma espécie madura. Já não pelo entusiasmo da descoberta mas pelos passos pequenos, progressivos, seguros, da necessidade. O espaço terá de nos dar o que a Terra não é capaz, e alguém irá ganhar dinheiro com isso. Pode não ser uma atitude nobre, mas a conquista espacial é, acima de tudo, uma conquista financeira.

Existem efectivamente condições únicas no espaço, ou mais especificamente, na imponderabilidade. Certas ligas metálicas só conseguem ser produzidas em ambientes de queda livre, ou determinada cristalização de compostos. É possível que os novos computadores quânticos, cuja capacidade de processamento será amplamente superior à dos computadores actuais, necessitem de ligas supercondutoras e que estas só possam ser fabricadas em órbita. É possível que situações de crise energética levem determinados países com escassez de recursos a montar plataformas em órbita para capturar a luz solar e enviá-la para estações espaciais em feixes concentrados de infra-vermelhos (não obstante os riscos inerentes). É possível que a aviação consiga recorrer a trajectórias balísticas sub-orbitais para reduzir os tempos de viagem e os custos de combustível, habituando assim uma geração ao fenómeno da queda livre e promovendo o turismo espacial.

São processos graduais. Todos derivados de uma necessidade concreta. Mas quando acumulados, irão estabelecer as condições para avançarmos para o espaço. As fábricas construídas em órbita necessitarão de uma tripulação permanente, o que conduzirá ao estabelecimento de condições adequadas de vida para período prolongados no espaço. Nascerão crianças longe da superfície terrestre, constituir-se-ão famílias, comunidades, culturas. O fenómeno humano a acontecer, como sempre na nossa história.

Ignoro se isto surgirá nos próximos 40 anos - é possível que sim. Mas em último caso, será necessário darmos este passo fundamental. O sol não durará para sempre, o nosso planeta é extremamente frágil, como temos visto, e para sobrevivermos daqui a uns milhões de anos teremos de começar, um dia, a tornarmo-nos numa espécie capaz de sobreviver à dureza de ambientes não planetários.

Fica esta pequena/grande curiosidade, impossível de satisfazer: como será a Ficção Científica desses magníficos novos seres humanos?

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16 Julho 2009

Falta Menos De Uma Hora para o fim da infância da Humanidade, há quarenta anos. Encontram-se já em posição e a aguardar a contagem final que os lançará, dentro do prazo governamental (e ainda dizem que a função pública não é capaz de grandes feitos...) para o abraço do destino, há quatro décadas. Os espíritos aguardam ansiosos, há quase meio século.

Hoje podemos seguir esse dia que também é hoje, e os dias que se lhe seguiram e que não voltaram a ser. Temos tecnologia e meios para o simular e devemos aproveitá-la. A história, contudo, já se encontra contada. Ainda assim, vale a pena revisitá-la como se a víssemos pela primeira vez, pois possivelmente é pela primeira vez que a vimos.

Não assisti à transmissão original. Embora já não fosse ideia, ainda estava a caminho da minha alunagem pessoal, da minha entrada neste universo maravilhoso. Nasci deste lado da era espacial da Humanidade, mas fui concebido quando ainda era Ficção Científica. Eis, julgo eu, a mais maravilhosa das dicotomias.

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Para Encerrar o Destaque das comunicações relativas à situação da FC internacional que principiei por apresentar aqui, o blogue SF Signal apresenta as partes III e IV, a primeira das quais inclui a participação do Luís Rodrigues, que num inglês impecável resume a triste situação actual da nossa Ficção Científica (e fantástico em geral). Digo triste porque parada, porque pouco inovadora, porque imitativa, porque sem originalidade, porque pouco profissional, porque em muitos casos inclusive com deficiências de português - e este último ponto é bastante difícil de perdoar; porque pode não haver condições para uma Ficção Científica Portuguesa, poderá nunca haver a possibilidade de tal acontecer pela natureza do género, mas que haja no mínimo o respeito e o preceito pela qualidade da língua. Não se admite que o mainstream tenha a excelência gramatical de autores como o Agualusa, o Direitinho e o Venda, e o nosso género, ainda que publique em vanity presses, ainda que coloque as ficções na internet, escreva o português a pontapé, sem revisão nem atenção ao ritmo, ao estilo, à poesia. Se não se consegue inovar na substância, ao menos que se comece pela apresentação.

(Como redenção, as participações ao Pulp Fiction à Portuguesa contiveram os dois extremos da equação: entre contos genuinamente bem trabalhados a textos que se notava de imediato encontrarem-se num estado preliminar de rascunho - mas ainda assim, quase nenhum de Ficção Científica pura, muito poucas space-operas. Um aparte quanto aos textos inacabados: tenho dificuldade em entender porque haveriam de querer os autores apresentar obras manietadas à partida, com finais apressados ou ausentes, com incongruências de lugares e tempos e personagens... vale a pena participar no despique de sapateado quando se está descalço e não se sabe bem a lição? O estado de concorrência não vos impele a esforçarem-se mais um pouco? O vosso texto não merecia melhor?)

O meu post original incentivou dois activos participantes do género português a apresentarem os seus pontos de vista - e felizmente para o debate, nos dois lados da barreira. Além de agradecer as palavras a respeito do meu artigo, e agradecer principalmente por terem continuado o debate com bastante erudição, creio que o que se impõe a seguir é perceber: porquê? Porque é a FC virada para o continente norte-americano? Porque os modelos que se originam daí extravasam pelo mundo, mas não conseguimos identificar outros pontos de origem? Será como diz o Jorge, apenas uma questão de hábitos de leitura? Mas por outro lado, não será o próprio hábito sustentado de leitura uma reconhecimento (primeiro pelos editores, que têm faro para estas coisas, e depois pelos leitores, que não pararam de comprar) da capacidade de encantamento e adopção das soluções literárias que se reconhecem a esses livros? Ou seja, se a máquina se alimenta por si mesma não será este indício suficiente de que é em si mesma que reside o melhor alimento?

A questão volta a ser: porquê? Sejamos crianças por instantes e vamos até ao fundo da razão. Não pode ser apenas a facilidade da língua - entre outros, o francês ainda é importante a nível mundial, e, no mínimo, seríamos expostos aos autores franceses via traduções inglesas; não pode ser apenas o domínio da divulgação - o western, literatura de fronteira por excelência, teve igual tratamento do tema do herói e da influência do indivíduo num mundo em desenvolvimento, igual divulgação internacional, uma melhor tradução para cinema, e no entanto, aparte experiências italianas (de qualidade), não se reconhece a internacionalização do género, permanecendo sobejamente americano. Algures, no triângulo tema-postura-propostas, estará a resposta.

Podem ir pensando nos vossos argumentos. Voltaremos ao ataque...

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15 Julho 2009

O Uso De Termos Específicos é determinante para o estabelecimento do cenário e das expectativas na narrativa. Poderia ser uma frase de uma tese académica, mas é a conclusão que se retira imediatamente deste divertido exercício de David Malki, que ao apresentar variações sobre um excerto (não o mais brilhante exemplo, admita-se), pela alteração subtil de algumas palavras, transforma a percepção da história na mente do leitor.

A questão particular de estabelecerem-se expectativas deve ser considerada com atenção porque o leitor, ao identificar o texto como pertencendo a este ou aquele género, sentirá atracção, repúdio ou eventualmente indiferença. Ou seja, não é só o facto de as pequenas variações das frases em questão poderem ser identificadas com diferentes tipos de histórias, como cada uma das frases destina-se a públicos-alvo distintos. Tudo isto no singelo milagre da alteração de três ou quatro palavras.

Um texto destaca-se ou desaparece por virtude da excelência das palavras que usa, como as organiza e em que ponto da narrativa as apresenta - sem deixar de servir o imperativo «enredo».

Não é fácil ser-se escritor, mas é por vezes bastante divertido. Como demonstram as (sobejamente) mais interessantes alternativas propostas nos comentários daquele post. (via Bibliotecário de Babel)

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13 Julho 2009

Certas Notícias Não Deviam Surgir Assim. No meio de outras, comentários em blogues, respostas a tweets, lançamentos e críticas, e Charles Brown morto. O fundador da revista Locus, aos 72 anos. Possivelmente o ser humano que conhecia pessoalmente o maior número de autores de Ficção Científica e Fantasia de todo o mundo. Esteve em Portugal em 1996, por ocasião dos Primeiros Encontros de Cascais, e novamente em 1998, por ocasião dos Terceiros. De entre as últimas memórias desses tempos, a de um jantar na zona do Guincho em amena conversa com ele e a acompanhante, e depois trazê-los de regresso a Cascais no humilde Micra no meio das ruas compactas perto do Teatro Gil Vicente (e o comentário de espanto da acompanhante, que estariam sem dúvida habituada a ruas estadounidenses um pouco mais à-vontade...). E um comentário interessante sobre indumentárias profissionais (perante a minha ubíqua farda de fato e gravata) na qual afirmava que, desde que tinha deixado de ser engenheiro que nunca mais usara sapatos fechados na vida. Nesse ano, deixou-nos também uma mensagem, lida numa das noites de plateia quase vazia, naqueles estranhos Encontros sem espectadores, tão próximos do início da cisão da Simetria, e que atempadamente publiquei na primeira das encarnações deste sítio («A Ficção Científica e o Mundo Editorial dos Nossos Dias», partes um e dois). Uma mensagem que ecoa, num sincronismo bizarro, a questão da internacionalização da FC que debati abaixo (acompanhado por outros compadres destas andanças). Charles Brown publicou os meus primeiros escritos em inglês - relatórios sobre as míseras andanças do nosso país numa época em que pareciam fazer algum sentido - e assim entrava Portugal no rol dos países com uma FC em andamento. A Locus estabeleceu-se sem encetar polémicas nem causar disturbios, e permanece há quarenta anos. Há quarenta anos que serve como ponte e memória, a glorificar a permanência de um género pela divulgação e crítica indispensáveis ao seu crescimento. As grandes revoluções ocorrem pela calada. Os grandes homens passam discretamente. A obra fica. Godspeed, Charles.

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Pulp Is The Plan, The Plan Is. E eis-nos chegados à primeira grande eliminatória. Destes finalistas, serão escolhidos uma dezena para compor a secção de participações livres da antologia Pulp Fiction à Portuguesa. Seguem-se identificados por título e país de origem, mas com o nome do autor omitido – bastantes autores fizeram questão em assinar as obras com pseudónimo, ainda que esse requisito não fizesse parte do regulamento, e, sem termos tido possibilidade de os contactar previamente, preferimos manter o anonimato.
  • Necronomicon (Portugal)
  • A Ilha (Portugal)
  • O Inconsciente (Portugal)
  • A Invasão (Brasil)
  • Noites Brancas (Portugal)
  • Horror em Sangue de Cristo (Brasil)
  • Mundo Fatal (Brasil)
  • O Lamento dos Mortos (Brasil)
  • O Tenebroso Mistério da Vila dos Pescadores (Países Baixos)
  • Crónica de um Pirata por um Dia (Portugal)
  • Viagem Nocturna (Portugal)
  • Ontogénese (Portugal)
  • O Segundo Sol (Portugal)
  • Pena de Papagaio (Portugal)
  • Valente (Portugal)
  • Pirâmide do Apocalipse (Portugal)

Parabéns aos finalistas. Temos aqui histórias de elevado calibre, que agora terão de encaixar-se no formato, dimensões e plano que estamos a prever para o livro. Temos de tudo aqui: de ficção científica a western, de aventuras nos Descobrimentos a histórias de espionagem com misticismo à mistura. Os autores de língua portuguesa não ficam atrás dos seus congéneres anglo-saxónicos.

Resta-nos agradecer a participação e a paciência de todos. Ficámos muito satisfeitos e surpreendidos pelo volume de participações e pela qualidade global do processo, e como já tivemos oportunidade de afirmar, a continuar assim, a literatura popular portuguesa irá ter passar por um período de invulgar interesse nos próximos anos. Esperemos que continuem a participar nas nossas iniciativas.

Passaremos agora à composição final da obra, à selecção e organização temática das histórias e ao enquadramento com as participações dos autores convidados, que, como se lembram do regulamento, compunham a outra parte da iniciativa. Ainda temos muito trabalho pela frente, mas estamos no rumo certo.

Nova actualização daqui a quinze dias. Vão seguindo este espaço.

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05 Julho 2009

Não Obstante Proclamar-se como seguidora do cepticismo científico, e esteja repleta em boa medida de tentativas honestas de emular, a verdade é que a Ficção Científica padece de muitas e variadas falácias que se entranharam no discurso e nas crenças de quem segue e debate o género - como, aliás, a própria ciência.

Uma destas falácias é a da importância da Ficção Científica internacional.

Leia-se, por «internacional», escrita em idiomas que não o inglês e, em certos casos, publicada em outros mercados que não o norte-americano. Este centrismo cultural só poderá parecer chocante para quem não conheça a História e a dinâmica do género, uma vez que, pese obstante a expansão e desenvolvimento mundial de uma comunidade que o segue devotamente, durante o quase século de existência, as modas, os critérios de apreciação, os temas fulcrais, em suma, o género em si, foram e continuam a ser ditados pelos autores daquele país. Antigamente falava-se de exploração espacial, foguetões e naves interplanetárias, colónias lunares; hoje fala-se de biotecnologia, ecoterrorismo, imortalidade, mundos virtuais - os debates iniciaram-se nas revistas pulp dos Estados Unidos, transbordaram para o formato romance e actualmente reproduzem-se em filmes, em sítios web, em best-sellers editados simultâneamente em diversos países.

Terá contribuido para tal a excelência com que se contavam as narrativas - os autores eram obrigados a aprender a contar histórias, contá-las de forma a que fossem interessantes, se queriam ser escolhidos pelas casas editoriais e assim colocar pão na mesa; isto permitiu que se eliminasse a gordura do proseletismo e se desenvolvessem técnicas eficientes de encadear cenas e manter um ritmo e desvendar plot points na tentativa de captar a atenção dos leitores, muito à semelhança dos canais televisivos de hoje. Terá contribuído também, sem dúvida, a visão do pragmatismo individualista do homem competente numa mágica terra de oportunidades, na qual não existiam ditadores, opressão política, repressão policial, uma terra de fronteira de controlo reduzido pelas forças da autoridade onde uma pessoa valia pelas suas capacidades. Esta terra prometida, mais relacionada com a imagem que a América fazia de si mesma do que a América que efectivamente era (e que se viu incapaz de continuar a ignorar os problemas internos aquando dos movimentos sociais dos anos 60), cairia como maná dos céus sobre os outros povos do planeta - em particular, sobre países que eram forçados a existir debaixo do jugo de botas políticas e onde se ia desculpando a existência a literatura fantástica como uma forma inócua de descompressão das massas. Não se admire, portanto, que este sonho de fugir dos problemas mesquinhos do planeta, esta necessidade premente de se abandonar o lar problemático e encontrar uma nova história de vida num lugar do universo em que tal seja efectivamente possível, tivesse um forte apelo. Tal é a necessidade da juventude, tal é a necessidade do oprimido, tal é a necessidade de quem, na meia-idade, se debate com a angústia de ter comprometido os sonhos ao ter tomado as escolhas mais razoáveis para a sua vida.

Assim, a Ficção Científica expandiu-se pelo mundo, e quando se fala em Ficção Científica referimo-nos a romances de autores norte-americanos e ocasionaisbritânicos, e quando se fala em mundo, traduza-se em países de tradição não-anglófona, e quando se fala em expandiu-se devia dizer-se impôs-se.

Isto foi assim ontem, isso continua a ser nos dias de hoje. As tradições custam a mudar, em particular tradições que nasceram há pouco tempo e que, é reconhecido por todos, funcionam na perfeição. Sim, porque diga-se o que se disser do auto-centrismo norte-americano dos prémios Hugo e Nébula, é por via deste centrismo, precisamente, que se desenvolveu e se mantém uma comunidade internacional, efectiva, de apreciadores. Quando o olhar de todos se foca no mesmo palco, é possível debater-se em igualdade de circunstâncias, independentemente das culturas de origem e da língua nativa, os méritos e os fracassos desta obra ou daquele autor. É possível partilhar modelos de qualidade e julgar outras obras (inclusive nacionais) perante estes. Quando, no ano passado, tive o prazer de me sentar com algumas personalidades da FC checa numa cavaqueira de café e lhes perguntei sobre a produção nacional e que qualidade lhe era atribuida, a resposta surgiu nos mesmos termos que eu teria dado: comparada com os modelos norte-americanos. Percebi de imediato a mensagem, como eles devem ter percebido a minha descrição da portuguesa. Como lhes conseguiria ter explicado Saramago ou Lobo Antunes num universo alternativo? «Antunes. like Kundera, wrote about his country's political turmoil, only without the deep, intelligent irony»? Não faço ideia...

Obviamente que quem está no palco tem outra perspectiva. Para já, a incapacidade de diferenciar friamente tiques culturais embutidos na produção realizada. E depois uma curiosidade sincera de conviver com a plateia e descobrir quem está do outro lado. Estas tentativas de abordagem são bastante apreciadas pela comunidade internacional e amiúde provocam tentativas contrárias de chamar a atenção, colocar o braço no ar, como o rapaz que quer ser escolhido para participar na cena de magia.

A estas iniciativas tem-se dado o nome de antologias internacionais de contos de Ficção Científica. Não diferem muito entre si. Comum a todas é o forte pendor geográfico que se impõe à selecção e que se sobrepõe a critérios de qualidade. São o equivalente literário da ONU, cada país um assento, um momento de discurso. E como a ONU, são igualmente impotentes em mudar, pela imposição, o rumo da História.

Da História da Ficção Científica, claro está. Uma História construida, como dissemos, com o olhar voltado para um palco, para um entendimento da narrativa. Com a melhor das intenções, alguns editores e autores trocam de lugar com membros da audiência e a seguir pedem-lhes que apresentem um «colorido local» - pois afinal há um mercado a convencer e contas a pagar, e aquele é o pitch que melhor vende. Pedem-lhes e medem-nos com base nisso. Os críticos medem-nos com base nisso. E não querendo ser maus hóspedes em casa alheia, os autores agitam os braços e mexem as pernas e procuram no seu melhor povoar as histórias de palavras da língua e cenários da terra. Ou, fugindo à analogia, escolhem histórias em que este colorido local talvez exista, histórias que possivelmente não serão as suas melhores. Talvez as melhores fossem as que se passam numa estação espacial colonizada por americanos; mas porque haviam os americanos de estar interessados numa história que um deles poderia contar, e com mais conhecimento de causa?

O resultado é invariavelmente uma farsa. Uma farsa bem intencionada, por vezes de qualidade, mas de ocorrência única, sem repetições. De tempos a tempos, alguém se lembra que é necessário mais uma - mas ao contrário das antologias anuais de contos em língua inglesa, estas não existem em sequência. Não existe uma Year's Best World SF para 2006, 2007, 2008... São acontecimentos erráticos e inesperados, logo votados ao esquecimento. Falta uma revista, uma publicação periódica, a montagem de uma máquina de tradução e conversão dos textos estrangeiros numa língua franca.

Mas será que faz mesmo falta? 

O meu pendor céptico leva-me a confiar na força das evidências. Perante tanta divulgação e possibilidade de contacto, a verdade é que não estamos mais próximos de uma FC mundial do que estávamos antes da internet ou nos anos 50.

Ou como confidenciou Bruce Sterling a Cory Doctorrow (mencionado por este numa das edições do Tesseracts), aquando da presença de ambos nuns encontros australianos:

Sterling, in his curmudgeonly way, opined that no one outside of Australia was crying out for more Australian science fiction. No one, apart from an Australian, felt any lack of Australianness in their sf diet. I had to admit he had a point.

Confesso que rejeitei a princípio esta afirmação. Em parte ainda a rejeito. Sei que há grandes autoresna FC francesa, na espanhola. Sei porque consigo ler o que escreveram. E sei, em segunda mão, que o mesmodeverá ocorrer na Polónia, tal é a veemência com que encontro afirmações da importância da FC polaca para os países do centro europeu. Mas como não me vejo com a possibilidade de investir o meu tempo na aprendizagem do polaco, duvido que alguma vez consiga confirmar estas afirmações em primeira mão. Nunca saberei o que está entre as capas dos poucos livros de bolso com capas de space-opera que trouxe, por graça, da República Checa, tão igualmente encantadores e alienígenos.

A não ser as excepções - aqueles que conseguirem sobressair do poço sem fundo de um idioma pouco divulgado e acabarem traduzidos numa das principais línguas do mundo. Foi afinal assim que Lem se tornou conhecido. Bem como os Strugastky.

Mas nem Lem nem os Strugastky criaram movimentos. Não abriram as portas a novos temas. Na sua condição de convidados especiais, existiam fora do discurso principal, e a Ficção Científica vive muito do discurso - este propõe um uso particular de um fenómeno físico, aquele inventa uma raça capaz de existir numa dobra do espaço, o terceiro apropria-se do fenómeno e da raça e tece uma saga dinástica. Tudo isto acontece em palco, em tempo real, actualmente potenciado, sem dúvida, pela tecnologia das redes sociais. Um livro, outro, outro ainda, e de repente, it's cyberpunk all over again...

E relutantemente admito o sentido da observação de Sterling.

Ninguém precisa de uma FC australiana. Ninguém precisa de uma FC europeia. Ninguém precisa de uma FC latino-americana. Ninguém, efectivamente, precisa de uma FC portuguesa.

Mas precisamos de uma FC norte-americana.

E não é derivado do auto-centrismo daquele país. É infelizmente uma sensação partilhada por toda a comunidade mundial, embora quase ninguém a assuma.

É possível que estas afirmações vos causem algum desconforto, talvez a vossa primeira reacção seja a minha, de repúdio e contra-argumentação enervada. Não digam ainda nada. Como em quase todos os conflitos interiores, deixem que seja o coração, e não a mente, a revelar o que realmente pensam. De modo a expor esta revelação, vou pedir-vos, como Matthew McConaughey o fez em Tempo de Matar que fechem os olhos e imaginem: imaginem duas gigantescas pilhas de livros, ou se forem mais tecno-orientados, DVDs repletos de milhares e milhares de obras electrónicas.

De um lado, está toda a produção de FC norte-americana: todos os Asimovs, Heinleins, Benfords, Bears, Haldemans, Sturgeons, Ellisons, Simmons, LeGuins, Tiptrees, todos os Strosses, Sterlings, Flynns, Barnes, todos os Paolinis, Meyers, Hamiltons. Todas as obras publicadas, todas as que virão. Todas as space-operas, a New Wave, o ciberpunk, o steampunk, o ribofunk, e demais movimentos e subgéneros.

Do outro, o resto da literatura fantástica. Os autores britânicos, os australianos, os neo-zelandezes. Os da África do Sul. Os de Cuba, México, Venezuela. Os do Brasil. Os franceses. Os espanhóis. Os russos. Os italianos. Os turcos. Os gregos. Os polacos. Os alemães. Imaginem também que todas estas obras estão traduzidas na vossa língua e assim, finalmente, ao vosso alcance.

E sim, os portugueses estão também na segunda pilha. Os escritos dos nossos autores. Os meus escritos. Os vossos escritos.

Imaginem que estão de partida para nunca mais voltar. O sol entrará em colapso em pouco tempo e precisam de fugir do planeta. O que levarem convosco, ficará a salvo. O que não escolherem, será destruido juntamente com a Terra.

E vão ter de escolher. Uma das duas pilhas. Não há tempo para misturas. Não há tempo para fazer combinações, metade daqui, metade dali, nem 30-70.

Vão ter de escolher os únicos livros que vos irão acompanhar pelo resto da vida.

E não podem voltar atrás.

Levantem-se, vão percorrer a vossa biblioteca, relembrar o que cada livro significou para vocês quando o leu. Imaginem-se mesmo a fazer esta escolha.

Agora que já sabem a resposta, abram os olhos. Não precisam de me dizer, não precisam de contar a ninguém. Diferentes pessoas chegarão a diferentes respostas. Mas eu conheço-vos, e sei qual foi a pilha mais escolhida.

E é com este vosso conhecimento honesto das preferências que nutrem que posso finalmente desvendar o que motivou estas observações: alguns posts, um blogue e uma nova antologia, tudo em prol de uma suposta FC internacional que não cobre um planeta, que não é uma massa terrestre e que dificilmente consegue ser um arquipélago – mas que espero sinceramente (quando um dia existirem tradutores automáticos minimamente eficazes) que um dia se torne realidade.

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03 Julho 2009

Os Nervos Em Polpa, mas não por muito mais tempo. Depois da primeira actualização do processo de selecção da Pulp Fiction à Portuguesa, aqui apresentada, eis que voltamos à carga com o assunto com três boas notícias: o processo está pertíssimo do fim, a antologia será algo como nunca visto no nosso mercado, e as actualizações serão feitas mais amiúde.

O processo estar pertíssimo do fim significa que, ultrapassadas as primeiras filtragens, nos encontramos com cerca de quinze contos finalistas. Estes irão concorrer entre si, na posterior escolha derradeira, para preencher a dezena de espaços disponíveis que vão compor a parte da obra dedicada a participações livres. Contamos terminar o processo de «negociação» interna da lista final (agora já não se trata de uma questão de qualidade, pois todos já atravessaram vários estágios de leitura, mas de adequabilidade ao conjunto - se se recordarem do regulamento, mencionávamos a necessidade de equilíbrio dos temas, das vozes narrativas, do fluxo do conjunto, pois uma colectânea tem de respeitar regras de ritmo não muito diferentes das do romance) até ao final da próxima semana e a seguir anunciar-vos. Repito: dia 13 de Julho publicaremos a lista de finalistas concorrentes à selecção final da antologia.

O trabalho não se esgota neste processo. Além da escolha dos contos, está, em igual primeiro plano, a preparação do conceito de antologia de uma forma inovadora. Neste prato, queremos o acompanhamento tão saboroso quanto o prato principal. Porque, sejamos honestos, é fácil recolher contos daqui e dali, ordená-los e fazer daí um livro. Mas esta antologia permite (e merece) melhor do que isso. Os autores merecem melhor do que isso. Sei que ficarão tão entusiasmados com o resultado final quanto eu e o editor nos sentimos. Sei também que poucas editoras no nosso mercado teriam igual abertura, competência e coragem para tornar este projecto em algo tão interessante como a Saída de Emergência. Espero que consigam ter isto em consideração na vossa apreciação deste percurso. Fica também já a indicação que mais pormenores sobre o assunto só serão relevados perto do lançamento (previsto para Setembro).

Isto não implica que estejamos surdos ao vosso interesse - muito pelo contrário, aliás. A vossa energia impele-nos. Sabemos que vai ser uma antologia escrutinada, falada, discutida, imitada. E por respeito ao vosso interesse, iremos começar a dar-vos conhecimento de como o processo está a decorrer em pontos de situação quinzenais (procurem no site da Saída de Emergência ou aqui, nos Efeitos Secundários).

O passo seguinte, como disse, acontece já na segunda, 13...

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