Exposição Prolongada à Ficção Científica  

   um blog de Luís Filipe Silva


03 Maio 2010

Não Se Pode Entrar Em A Criança Roubada de Keith Donahue (Ed. Saída de Emergência) sem levar na bagagem o famoso poema de Yeats, «Come away, O human child! / To the waters and the wild / With a faery, hand in hand, / For the world's more full of weeping than you can understand», que funciona perfeitamente como sinopse e aviso. Estamos perante um romance de seres mágicos da nossa infância, pequenos e traquinas que trocam as vidas dos humanos incautos, não por maldade mas por uma rebelia irritante e que por vezes resulta num drama pessoal. Henry Day é um normal miudo de sete anos que se aventura nos bosques e não regressa. Atacado por um bando de trasgos, é rapidamente afogado num lago próximo para iniciar o processo de transformação. Partir deste mundo não devia ser um processo tão imediato. Transformado também ele em trasgo ainda sem perceber bem o que aconteceu, recebe o nome de Anyday e em troca abandona toda a vontade de regressar a casa, de afastar-se da nova família, de crescer. E para que os pais não suspeitem, em seu lugar surge um velho trasgo, uma criança roubada à família alemã um século antes. Os trasgos, é-nos dito e mostrado, forçam-se a crescer, moldando o corpo a qualquer fisionomia e vontade. Também nos é dito que esta capacidade de metamorfose desaparece à medida que o trasgo continua longe do bosque e da vida antiga, o que representa uma capacidade de absolvição e regresso à sociedade.

É um romance calmo, calmo como a época em que decorre. Estamos numa zona rural nas imediações de Chicago, na década de 1940. Percebe-se que nos entranhamos no passado, num ritmo e forma de existir que ainda entendemos mas que nos é agora tão alienígena como qualquer cenário espacial. Funciona quase numa perfeição de terra mágica, este mundo sem computadores e telemóveis e sistemas sofisticados de detecção. Não é à toa que Donahue centra a narrativa numa época em que não se sente compelido a explicar e inventar um sistema no qual seres mágicos ainda existam no campo, tão perto de habitáculos humanos. É como se, na nossa conquista pela racionalidade e entendimento científico do mundo, tivessemos desalojado a capacidade para o mistério. Talvez se consiga ler aqui um dos motivos pelo actual predomínio cultural da Fantasia sobre a Ficção Científica. Talvez seja ler de mais.

O romance prossegue , alternando os capítulos entre o novo e falso Henry Day, e o Henry Day que já não é por ser agora um trasgo. Ainda que tenha dois actores a representar diferentes rumos da sua vida, o verdadeiro Henry Day morreu, e o romance, ciente disto, conduz estes actores em papéis que desconhecem, para os quais são forçados a actuar por instinto e sem guião. O falso Henry Day tem por preocupação regressar definitivamente ao mundo dos humanos, envelhecer, ter uma família, morrer. Anyday, até encontrar uma criança que possa roubar para si, terá de esperar as décadas ou séculos necessárias, deixar que o mundo que conhece desapareça; ainda por cima, como manda a tradição, os trasgos que o são há mais tempo têm precedência. Henry Day cresce; Anyday, como o Peter Pan de outro conto, mantém-se inalterado, criança, rebelde, selvagem, isolado.

Esta é a grande mensagem do romance, e tanto maior se torna por ser irredutível. O romance não consegue impedir um maior interesse em Henry Day que em Anyday. Ainda que lhes devote igual número de palavras, apercebemo-nos que Anyday está a ser guardado para um confronto final com o trasgo que o veio substituir. Todos os capítulos são passos nessa direcção – ainda que haja um interesse romântico mais ou menos sublimado, o romance não consegue verdadeiramente decidir se os trasgos são crianças selvagens ou adultos em tamanho pequeno, e opta pela solução mais oportuna, que é de considerar – ainda que não o diga expressamente – que a existência do trasgo é transitória, que não funciona como sociedade mas como um conjunto de seres nos bastidores, a aguardar a indicação para saltar para o palco. Esta sensação contrasta violentamente com os desafios narrativos do novo Henry Day, que luta para se enquadrar numa época e sociedade que não é a sua, temendo a cada instante ser descoberto pelos pais e professores e amigos. O talento fala com mais força, e não consegue evitar um apreço pela arte de tocar piano, algo que o antigo Henry Day nunca demonstrara. Isto, e outro conjunto de sinais, leva o pai a desconfiar, com resultados trágicos. Ainda assim, o novo Henry Day acaba por enquadrar-se na nova vida, cresce, aparece, torna-se também ele pai de família e começa a suspeitar e temer os malditos trasgos.

É como se o romance se deixasse derrotar à partida e reconhecesse um desinteresse pelo fantástico que ele próprio inventara: que não há fascínio verdadeiro na criança eterna, na criança que não cresce. Que a criança não é mais do que uma fase de um ser complexo, que precisa de afastar-se e esquecer-se de si mesmo para contar uma história. A amnésia funciona como o grande veículo de transformação desta história, sem a qual os personagens não conseguiriam superar as transições abruptas e funcionar imaculadamente na nova condição. A memória surge como um ladrão furtivo, roubando paz e semeando ansiedade – a lembrança de Anyday pelo conforto dos seus sete anos, de Henry Day jovem por um lar germânico do passado, do Henry Day adulto pela existência nos bosques. O passado é um lugar alienígena ao qual não regressaremos, nem sequer em memória.

No fim surge a mudança, imposta pelo mundo. Também este cresceu enquanto não estávamos a ver, tornou-se complexo e exigente e desalojou a magia que nele restava. Os trasgos, um dia, terão páginas no Facebook e marcarão encontros de Bookcrossing por este país fora. Talvez seja assim que roubam, hoje em dia, as nossas crianças.

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02 Maio 2010

Livros De Feira. Aproveitando a festa dos livros que anualmente nos visita, vou procurar deixar apontamentos diários sobre obras que poderão enriquecer a vossa experiência. Não serão necessariamente novidades nem títulos da moda - ainda que estes sejam fenómenos editoriais que apoio, pois proporcionam um incentivo positivo e uma (falsa) sensação de segurança ao investimento em publicidade e marketing do livro. Contudo, as obras não envelhecem todas ao mesmo ritmo, algumas permanecem eternamente jovens, e serem arrastadas para o fundo do palco pela chegada do futuro é uma injustiça difícil e demorada de combater. É possível que tenham de vasculhar nas promoções de fim-de-edição e insistir com os vendedores para encontrar algumas das recomendações mais antigas. O resultado será impressionante, impossível, inclemente, inovador, inodoro (riscar o que não se aplica).

Scott Siegler quis à viva força ser escritor. Ser escritor, contudo, não é para ele um compasso de espera e aprendizagem. Não significa participar em alguns concursos florais enquanto vai acumulando várias magnum-opus na gaveta, sonhando que algum dia será aberta e a verdade disseminada pelo mundo. Daria em doido se dele fosse o destino de Bolaño. Não: Scott Siegler escreveu um livro e vai mostrá-lo ao mundo. Pode ser um livro de tricot ou uma tarde na quinta da avó Esmeralda. Ele escreveu a porra de um livro e a porra do mundo vai colocar-se de joelhos e apreciá-lo. Nem que tenha de dirigir-se a cada um dos seis mil milhões de habitantes deste maldito planeta e forçá-los contra o chão. Nem que lhe leve a vida toda. Ele Escreveu Um Livro, Percebem?

Se lhe perguntarem, contará como a sua primeira tentativa, Ancestor, esteve quase para ser publicada quando os malditos terroristas derrubaram as Torres. Assim se comprova que o verdadeiro plano era impedir que Siegler tivesse uma carreia de best-seller, mas ninguém acredita. Aproveitando os benefícios da internet - uma tecnologia que não construiu mas da qual usufrui sem perdão -, começou a gravar leituras do romance e a dá-las de graça. Um capítulo de cada vez, regular e certeiro, como manda o figurino. Tranformando-as em podcasts, o que é o mesmo que dizer que existe um software que é avisado quando um novo episódio está disponível e descarrega para o leitor áudio. Se tivessem de ser os ouvintes a lembrarem-se, é bem provável que não tivesse um décimo da suposta audiência (e sublinha-se suposta, na ausência de empresas independentes de auditoria que analisem o tráfego de hits). Leu esse e entretanto escreveu outro, Infected, que também se tornou num sucesso de downloads – o que é o mesmo que dizer que o livro estava a ser lido primordialmente nas ocasiões de pausa do trânsito, das filas de espera, dos autocarros e das retretes (não se entenda por estas palavras uma caracterização depreciativa da pausa na retrete, esse sublime momento democrático de apreciação literária, destinado tanto às grandes como às minúsculas obras). Levando os números na mão, pois todos sabemos que os números são certeiros e as palavras tortas, esfregou-os na cara de alguns executivos, os quais acabaram por dar a oportunidade ao rapaz de figurar num dos milhares de títulos que saem anualmente no mercado norte-americano, ou para sermos mais substantivos, atiraram-no ao rio. O rapaz lá nadou e vendeu alguns exemplares e agora até se encontra a ser adaptado ao cinema.

Nada disto é prova de qualidade, quanto muito é desconfiança. O livro conta a história de uma Infecção, como afirma a versão portuguesa – ainda que a versão original, Infected, ou seja, Infectado, seja subtilmente mais apropriado. É uma pequeníssima infecção, muito localizada, mas que acaba por tornar a vítima propensa a actos de violência extrema, contra si e contra os outros (suponho que se conduzisse a actos de amor extremo, o livro seria enfiado numa prateleira diferente). A contra-capa sugere um drama épico, em que filhos matam os pais enquanto dormem, em que vizinhos atropelam as crianças do bairro, em que enfermeiros injectam com ácido todos os doentes do hospital. Uma infecção incontrolável, insidiosa, mesqunha... ãh? Não é nada disso? Não?! Então é sobre o quê?

A infecção é extra-terrestre? Tudo bem, mesmo assim haveria... ah, a taxa de propagação é quase nula? Mas nem pelo contacto físico?... Vozes na cabeça?! A violência é causada por vozes na cabeça?!

Vozes na cabeça que têm uma razão de ser. Mais não digo, para não estragar dos poucos prazeres da obra. Outro prazer é que é curta, e lê-se rapidamente.

Mas não é um bom livro. É um livro que, tire-se-lhe o chapéu, procura explicar cientificamente a infecção extra-terrestre. É um livro que sabe, inconscientemente, onde se encontra a força narrativa do autor, ainda que não a que deveria ter sido escolhida. O protagonista principal, um antigo jogador transformado em escriturário devido a uma lesão, é um homem irado. Totalmente irado. Tão cheio de violência e raiva que não admite sequer que as vozes na cabeça o obriguem a praticar actos de violência contra os outros. Mesmo que os pratique, as vozes na cabeça não lhe dão ordens, e para mostrar que só faz o que quer quando bem lhe apetece, auto-mutila-se até destruir alguns dos furúnculos que lhe invadiram o corpo e ensinar aos outros que o melhor é estarem caladinhos. Estes actos de mutilação são descritos em vívido pormenor, quase em câmara lenta, e constituem a grande polpa do livro. Isso, e o homem irado no processo de ser um homem genuinamente irado.

Tudo o resto – a investigação policial, a trama médica, o apressado motivo da infecção pelos extra-terrestres, a forma como expeditamente resolvem a infecção -, tudo o resto é acessório. Siegler contou a história que queria contar: alguém a quem lhe fora prometido o pódio e que falhara por via das circunstâncias.

É um livro de domingo à tarde, ou de sexta-feira depois dos copos com a malta. Lê-se, tem momentos agradáveis, tem muitos momentos gore. Entranha-se e expele-se, como um hambúrguer.

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Há Piores Formas De Começar um domingo do que assistir a uma breve mas intensa conversa sobre a natureza da escrita e do escritor, e da condição humana, entre Barry Lopez (que não conhecia) e Bill Moyez (que também não conhecia). É pelo menos uma variação à habitual pergunta «Fale-me de si» com a habitual resposta «Sou da Baixa da Banheira, descasco moluscos num restaurante e tenho um periquito chamado Josué.»

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01 Maio 2010

Será Um Problema De Excessiva Subtileza? Confesso que fico incerto se será desentendimento do conto ou do leitor. E mesmo sendo de ambos, qual se esforçará menos. Poucas mas honradas pessoas conseguiram despertar para a revelação completa do monstro que se esconde no narrador, um maior monstro do que possivelmente o regime fascista em que decorre parte da acção. Está lá, escondida nos últimos parágrafos da história, em tons suaves e discretos. Releio e está lá. E se essas pessoas descobriram, sei que outras descobrirão. Ficou ainda mais explícita entre a primeira versão, publicada na Bang! 1, e a publicada no Imaginários 2 e aqui ao lado. Também sei que, se essas pessoas descobriram, foi por que se preocuparam e releram. Não ficaram contentes até descortinarem a razão de ser do conto. Uma razão de ser que só se consegue perceber quando: a) se tenta dar resposta à principal dúvida: porque queria este protagonista recuperar a casa com tanto afinco?, e b) se entende a recuperação do vigor aquando da chegada a casa, não como uma metáfora literária, mas como uma descrição literal própria da Ficção Científica.

Continuam no entanto as críticas que, apesar de simpáticas e agradáveis, mostram tristemente que não entenderam. Mesmo havendo espaço para melhorias (e uma história nunca está acabada enquanto se poder desdobrar na sua complexidade), ainda assim acredito que a mensagem não deve ser enfiada a martelo na cabeça do leitor. Eis um problema da Ficção Científica e do Fantástico em geral, géneros ainda demasiado destinados à criança dentro de nós sem se compenetrar que a criança não é mais que um adulto - inexperiente mas adulto. Entendo que isso possa prejudicar a experiência das carapaças cranianas demasiado espessas para certas subtilezas da literatura, mas infortúnios genéticos não são culpa do estabelecimento.

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26 Abril 2010

Possivelmente, Ainda Não Saberão, mas a antologia pulp que estou a organizar encontra-se a ser divulgada aqui.

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24 Abril 2010

Confesso Um Saudosismo pelos debates públicos de antigamente, em que cronistas se degladiavam, cada qual no seu espaço próprio de jornal ou da rádio, trocando opiniões, insultos velados e galhardetes, comentando o comentário do outro sobre um anterior comentário do primeiro. Uma literatura em hipertexto, mas diferido no tempo e que nos obrigava a sair à rua e comprar o jornal de modo para clicarmos na hiperligação. Opinar, por sua vez, implicava escrever uma missiva e enviá-la à redacção. Era um processo mais pausado, naturalmente; por outro lado, isto permitia alguma reflexão, e mesmo que as posições fossem incendiárias, ao menos havia uma noção de texto literário, aquela responsabilidade de escrita a que só a palavra impressa obriga.

Daí que encare as caixas de comentários como algo de certa forma acessório, embora convidativo à participação; destinado a informações breves e pequenas conversas, mas não apropriado ao debate. O debate sério deve ser conduzido no espaço mais nobre do post, tentando evitar o fenómeno da resposta instantânea que normalmente conduz a resultados infelizes, sabendo-se que, nesta era de hiperligações e googlismo, é muito difícil a mais tímida frase conseguir esconder-se durante muito tempo no mais recôndito dos sítios Web.

Ainda assim, se este blogue não tem actualmente comentários, foi tão somente por uma questão técnica. Não sendo suportado por tecnologia proprietária, mas por um sistema de content management pessoal (cada qual com a sua mania) que vai sendo desenvolvido com esforço na obra e graça dos tempos livres - os quais há meses que não me visitam - significa que a funcionalidade regressará mas ainda sem data marcada. Uma regra vai manter-se: a aprovação dos comentários para que se tornem visíveis. Isto não está relacionado com questões de anonimato mas de decência e pertinência. Tal como em casa, gente rude e maltrapilhos sem educação ficam à porta. E se querem afixar publicidade gratuita, tenham a gentileza de pedir «por favor» e «com licença» ao dono, ou no mínimo apregoar produtos que sejam do interesse dos leitores do sítio. Sejam criativos, inesperados, inteligentes, irónicos, sarcásticos, irreverentes, informativos, mas acima de tudo, adultos. O dia que amanhã se comemora trouxe-nos um novo tipo de Liberdade há algumas décadas, parido com suor e lágrimas. Infelizmente, há quem não perceba que até a liberdade tem Manual de Utilizador. E se a gente rude e mal-educada tiver mesmo necessidade de expelir o conteúdo intestinal que lhes sai da boca, é perfeitamente livre de criar os blogues e fóruns gratuitos que queira - mas longe daqui, para que não se sinta o cheiro.

Creio que esta posição aborda a preocupação da resposta a esta reacção. O Rogério explica melhor (algo que não era obrigado a fazer, mas a que generosamente se voluntariou) os critérios que orientaram a sua escolha dos livros portugueses na mostra internacional. Tem razão quando afirma que há pouca FC nacional na passada década e foi pertinente lembrar-se da disponibilidade das editoras. Infelizmente, este rigor nos critérios não foi seguido pelos restantes participantes e acabou-se num resultado desigual, surgindo Portugal como um dos que teriam menos a oferecer. Por vezes, nestas coisas, é preferível pecar por excesso, e ir além dos limites da pergunta. Diga-se de passagem que, a nível de Espanha, por ser o outro mercado que acompanho com alguma regularidade, estou convicto de haver um bom par de exemplos que muito dificilmente teriam interesse aos leitores anglo-saxónicos... Bem, haverá certamente outras ocasiões.

Fica o apelo à reflexão ou debate sobre clássicos e FC, que tenho a certeza que não vai acontecer. Existe uma grande apetência para discussões acesas sobre temas generalistas, muito pouca sobre livros em concreto. Passar da fase do «gosto/não gosto» para a da interrogação sobre a pertinência do tema, a integridade da estrutura, a boa ou má caracterização dos personagens. É com grande pena que não encontro vontade para estes debates nos fóruns, e talvez a principal razão pela qual não contribuo. Creio que ainda não é desta que vamos saber se, na mente dos leitores, Os Caminhos Nunca Acabam será o primeiro grande clássico da FC portuguesa...

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23 Abril 2010

Está Online O Conto que acompanhou o excelente artigo de Maria Leonor Nunes, «A Invenção do Futuro» no JL, sobre os desafios da criatividade num mundo de contínua evolução tecnológica. Uma peça bastante modesta, como aliás, já aqui se tinha referido.

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22 Abril 2010

É Como Se Nesta Era guardar memória fosse um hábito decadente e o passado, algo de que nos envergonhamos. Refiro-me à atitude da nossa civilização a tudo o que cheire a bolor, que fique no báu demasiado tempo. Nesta era, aos livros não se permite a dignidade de se desfazerem em folhas soltas de lombada partida, fruto do manuseamento e testemunho do Tempo, as margens não amarelecem, as capas não se apagam lentamente ante a exposição prolongada ao sol numa montra que nunca muda, qual polaroid às avessas. Nesta era, os livros não são como o vinho, não repousam nas livrarias a aguardar que o leitor nasça e cresça e finalmente os descubra, vinte anos depois, arrumados num canto - não acontecerá esta história de descoberta, esta vivência do amor de dois seres que estavam destinados.

Nesta era, os livros são transformados em polpa por causa do número que aparece numa linha própria de um outro livro feito de números. Todos sabemos que as palavras são esguias, enquanto que os números são disciplinados. As palavras vivem das sombras e das curvas, os números vão directos à questão.  Um livro feito de palavras não é páreo para um livro feito de números. As palavras podem cantar, mas os números berram e fazem-se ouvir. A beleza que existe nos números não é a beleza estética das palavras; se num mundo justo ambos poderiam brilhar, neste mundo tortuoso e complicado travam um combate desigual. Em particular se a pessoa que os avalia tem também números a pesar-lhe na alma.

Que os livros não esperem por nós, é um incumprimento da natureza do livro. Que nos seja negada, pelas circunstâncias da nossa civilização, a oportunidade de descobri-los como antigamente, é uma perda na nossa vida. E depois esta sensação de algo irrecuperável que vemos afastar-se, como se lançado à forte corrente. O que se afasta somos nós. Aquilo que fomos. Aquilo que fizemos.

Quando esta descoberta não acontece, a experiência de vida não acontece. A ausência de memória torna-se na memória da ausência. Se o livro não está na prateleira, não o compramos. Se não o compramos, não o lemos. Lemos o próximo, lemos o livro ao lado, mas não lemos aquele. E porque o livro não volta, nesta época que rejeita a figura da coisa antiga, lentamente desaparece, desvanesce-se, nunca se ouviu falar. Não se escreve sobre. E por isso, não existiu.

Entende-se que a tendência do esquecimento tenha influenciado as escolhas limitadas. Que o ritmo diário e a pressa de responder tenham abreviado a reflexão. Ninguém é infalível, leituras são subjectivas e gostos não se discutem. Talvez se desconheça inclusive até que ponto outras obras preencheriam os requisitos adicionais de destaque na imprensa (o que se entende por destaque e qual a imprensa em causa?) e de best-seller (como medir best-sellers em diferentes épocas?). Em particular se as recomendações que acabaram sendo apresentadas são irrepreensíveis, todas as duas.

Mas depois não se entende - o destino é falar de clássicos, e clássicos, em eras de antanho, costumavam abranger décadas que não a presente. O truísmo de que há pouca FC em Portugal não deixa de ser incompleto, ao não informar que na década anterior, e nas décadas antes dessa, o fantástico que havia era quase exclusivamente FC. A ausência de informação vai tornar-se na informação da ausência. 

Ao ombrear com listas que remotam ao início do século XX e ostentam inúmeros galardões literários (ainda que, se formos esmiuçar as recomendações estrangeiras, possamos chegar à conclusão que a recomendação nacional terá sido, correctamente, mais exigente no cumprimento dos critérios pedidos), resta uma inadvertida mas infeliz sensação de pobreza de exemplos, de uma cultura figurativamente menos expressiva.

A esta sensação mistura-se um certo desconforto pessoal - estará na suspeita de quem lê e não faz sentido negá-lo. Ainda que não tenham sido pedradas no charco - longe disso -, há obras do próprio que mereceriam ser incluídas, pois aconteceram na aridez que sempre caracterizou o género neste país. 

E muito antes destas, mandando devidamente o próprio à fava, ainda que não se quisesse incluir o tal calhamaço de referência a quatro mãos, existiriam uma Pedra de Lúcifer, um Limites de Rudzky, um Veleiros do Tempo Cósmico... 

Perguntarão: quer-se assim dizer que tem de haver uma lista mandatória de obras a mencionar em todas as ocasiões, e se não for cumprida comentários como este vão imediatamente surgir, qual prima-dona apupada em palco? A resposta imediata é não. 

Excepto talvez no caso em que a resposta imediata é sim. Em que somos embaixadores da História do país no palco das Histórias de muitos países. Lágrimas de Luz (para falar do concreto e do conhecido) é um livro cheio de falhas que marcou a geração de 1980 em Espanha. Temos equivalente? Diria: Os Caminhos Nunca Acabam. Cheiinho de falhas, é verdade, mas é nosso, é um marco, merece destaque, e precisamos de aceitá-lo. E como a este, outros.

Não pretende isto ser mais do que um comentário cordial, que, antes da publicitação do feito, talvez surgisse em conversa privada. É algo que está longe de ser importante, perante a vontade partilhada de desenvolver o Fantástico nacional - e reconheça-se neste âmbito a tal incrível e muito admirável capacidade em reunir e incluir as mais diversas franjas do Fantástico nacional, inclusive contra trabalhosas e inesperadas resistências do dentro do próprio meio. Mas ainda assim é um comentário que não podia deixar de acontecer. 

Talvez o que valha a pena seja perceber questões mais profundas. Existem clássicos do Fantástico português? Temos todos consciência dos mesmos? Variam por pessoa, por faixa etária, por preferência de género, por experiência de leitura? É fácil definir um «clássico»? E será exequível apontar sem falhas o que se considera por Fantástico nacional? Fica o desafio à reflexão.

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