Exposição Prolongada à Ficção Científica  

   um blog de Luís Filipe Silva


12 Agosto 2012

Não Entendo A Polémica Da Crítica e o divulgado fracasso do filme John Carter, que tive oportunidade de ver recentemente (não acorri à estreia; cada vez mais a experiência do espaço de cinema para filmes comerciais implica, por um preço elevado, aturar grupos irrequietos, compatriotas mal-comportados e aqueles insuportáveis anúncios das operadoras de telemóveis com o falso ambiente feel-good e música inspiradora-mas-desinspirada para jovens que me afastaria rapidamente se ainda fosse mercado-alvo, e tudo isto sem o descanso que outrora o intervalo permitia; nada como o conforto do sofá, a nitidez do HD e o conveniente botão de pausa; eis a velhice que se aproxima a passos largos e seja bem-vinda). É o filme esperado, possível e previsível que poderia surgir do material de base. Contém tudo o que é esquecível mas, afinal, perdoável sobre a obra de Burroughs: a péssima escrita, a caracterização risível, a insensatez do enredo, a simplicidade atroz; e contém tudo aquilo que o tornou num clássico intemporal: o deslumbre por um horizonte estranho e longínquo, a sensação de aventura numa terra de fronteira em que tudo está ainda por definir, a descoberta súbita em nós de poderes inesperados que podem influenciar o mundo, a importância da nossa existência individual, o romance picante com uma princesa boazona que precisa de nós para sobreviver. Todos os mitos de crescimento dos rapazes reunidos numa única história, cheia de aventura, emoção, perigo e algum humor. Resumindo, um filme Disney, para brancos, cheio de brancos e outros tons politicamente correctos. Uma fórmula que pode cansar na era actual mas que não destoa da tradição existente. Maus desempenhos? Sim, péssimos - quer Carter quer a Thoris têm uma ausência de carisma tão notória que se torna dolorosa. Maus diálogos? Nem vale a pena falar disso. Mas live-action nunca foi o forte da Disney, e novamente o destaque vai para a componente animada. São as figuras virtuais que sustentam a personalidade do filme, em particular a presença esverdeada de William Defoe e do pseudo-caniche. São os territórios e a concepção visual do planeta e das cidades, imaculadamente composta e integrada na parte filmada. Estando à espera de um dejecto fumegante, encontrei, com agradável surpresa, um filme cheio de vida e acção, suficientemente leve e sem os laivos de pretenção literária que Nolan procurou atribuir à trilogia Batman. Por hábito, a pulp clássica não melhora quando a vestem com o fatinho ou vestido de gala da alta cultura. E o filme não segue fielmente o texto original? Ora, se alguém voltasse no tempo para dizer ao caro Edgar Rice que alterasse umas quantas coisitas na história de modo a adequar-se ao filme do século seguinte, e lhe passassem vinte dólares para a mão, é bem certo que o faria sem pestanejar. Se lhe passassem cem, iriam ver se o sacana no Carter não conseguiria pular de Marte até às luas! Nisto sempre podemos confiar nos autores pulp: como qualquer rameira de beco, estavam prontos a sacrificar a integridade profissional por meros tostões. Quanto ao filme, talvez não me interesse revê-lo e ficou pouca vontade de conhecer a sequela, mas penso que valeu a pena ter existido, nem que seja para servir como referência para o advento de melhores e mais ambiciosos artefactos - como o livro serviu no passado.

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06 Agosto 2012

Touchdown. 

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05 Agosto 2012

O Conhecimento Nem Sempre se traduz em impacto visual imediato. Se as amplas perspectivas de mundos futuros e viagens intergalácticas emocionantes que Hollywood nos forneceu ajudaram a impelir-nos na aventura espacial, também rapidamente nos frustraram a expectativa, pois a realidade é lenta, perigosa e inóspita. Somos demasiado frágeis para sobrevivermos fora deste imenso globo que nos dá vida. Idos estão os planos das colónias lunares que hoje deviam funcionar em pleno, pois, admitamos, precisamos delas para quê? A Humanidade fará o sacrifício quando para tal for empurrada (por exemplo, por uma catástrofe climatérica) ou desenvolver-se tecnologia de muito fácil instalação e reparação e elevada eficiência energética que torne o custo (pessoal) negligenciável.

E no entanto, há quem viva o sonho e vá, em passinhos de formiga, desbravando terreno, espremendo ao máximo orçamentos insuficientes e aproveitando as reduzidas oportunidades para efectuar medições e testar hipóteses. Uma sonda não substitui o ser humano - comparação injusta pois o ser humano é um mecanismo adaptável multi-funções e a sonda não foi desenhada com este objectivo em mente - mas, na falta de melhores condições, é a extensão possível de um laboratório portátil. E sondas é o que temos enviado aos outros planetas, bem como além do sistema solar. Quem se lembre das naves-geração da FC, das frotas interestelares e dos teleportais, o esforço actual parece infantil, amador. Sim, sem dúvida. Sonhamos mais do que somos capazes de fazer. Talvez esta demonstração sirva como prova de que, enquanto espécie, somos crianças ou bebés de colo.

A Curiosity segue caminho desde há quase um ano e hoje chega ao destino. A aterragem em Marte (arenagem?) será dolorosa, como o vídeo a seguir explica em tons dramáticos, e pode significar o fracasso da missão e a frustração de muitos investigadores. O marketing empresarial, à força da explicação simples, explica que se pretende procurar vestígios de vida - e desde logo, imagens de naves cinzentonas enterradas no solo com aberturas convenientemente expostas e marcadas surgem ao espírito. Na verdade, o que se procura são vestígios de condições para a possibilidade de ter existido vida - um pouco como aterrar no meio de um estádio em ruínas e inferir, pelas marcas no solo, que algures no distante passado, alguém disputou uma partida. Quem fique sentado nas bancadas à espera do resultado vai ter de esperar bastante tempo.

Por isso a investigação não serve para todos. O que é uma pena. Perdem o deslumbre de ver o Universo a desvendar-se perante a nossa observação como um livro que se folheia.

Pensar que foi preciso lutar contra a mesquinhez, contra séculos de Inquisição e doutrina eclesiástica, contra ditaduras nacionais e contra as ditadurazinhas de bairro. Pensar que em igual número de anos explodiram-se cem vezes mais bombas atómicas do que se lançaram sondas planetárias. Pensar que vivemos nesta época gloriosa, de partilha imediata de informação, de conluio directo entre quem avança e quem apoia. Pensar que terá um fim natural, este período tropical entre as duas épocas glaciares da ignorância instituída, o qual, talvez, não esteja tão distante quanto gostaríamos...

Aproveitemos, pois, o conhecimento ao nosso dispor, e acompanhemos este fulgor de glória, tão discreto mas mais olímpico que o mais olímpico dos atletas. Parafraseando o poeta, que o afirmou noutro contexto, A liberdade não é eterna, mas infinita enquanto dura.

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12 Julho 2012

Uma Avaliação Pertinente E Sucinta sobre as diferenças fundamentais entre Mito (leia-se, Fantástico/Fantasia) e Ficção Científica.

Where the myth claims to explain once and for all the essence of phenomena, SF first posits them as problems and then explores where they lead; it sees the mythical static identity as an illusion, usually as fraud, at best only as a temporary realization of potentially limitless contingencies. It does not ask about "The Man" or "The World", but which man? In which world? And why such a man in such a kind of world? As a literary genre, SF is fully as opposed to supernatural or metaphysical estrangement as it is to naturalism or empiricism.

Darko Suvin, in Speculations on Speculation, org. James Gunn e Matthew Candelaria

Outra forma de interpretar, creio, passará pelo conflito subjacente entre a natureza da epistemologia e a do método científico, aplicadas à função narrativa - ou, para ser mais concreto, entre a Ficção Pura (a que tem origem noutras ficções, literárias ou culturais) e a Ficção Aplicada (a que quebra com a tradição e se deixa conquistar pela demonstração do Real).

Avançaria a hipótese (porque há uma necessidade permanente de entender a frieza com que a promessa do futuro é hoje recebida pela sociedade) que é precisamente o predomínio do Real que tanto afasta a geração actual da FC - a qual não entende a Realidade em que habita e, possivelmente e em grande medida, representa um sentimento de vertigem ou mesmo repulsa. Contudo, é precisamente esse predomínio que representa o principal factor de atracção pelos seus admiradores.

Fica a questão: esta cisão terá tendência a aumentar de forma drástica? Ou iremos eventualmente assistir a uma fusão das abordagens, com perda acentuada das características específicas de cada vertente? Que FC&F sucederá a presente?

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09 Julho 2012

Adrienne À Partida. Mas também, aos poucos, em construção.

Hoje vou contar-vos uma história da carochinha. É como todas uma fábula sobre coisas que poderiam acontecer, e ao mesmo tempo, uma confissão disfarçada de coisas que realmente aconteceram. De que trata verdadeiramente, não vos posso dizer - aqui. Direi noutro sítio. Talvez num forum público sobre agricultura. Talvez numa carta à direcção do jornal diário. Talvez num comentário relativamente a uma crítica literária. Talvez escondida numa crónica sobre relacionamentos e sentimentos amorosos. Talvez num poema com o qual contribua para uma colectânea de vários autores publicada em regime colectivo. Vocês não saberão, mas têm toda a oportunidade para descobrir. Têm tanto acesso a este mundo de informação inesgotável quanto eu. Basta saber onde procurar.

E escusam de utilizar motores de pesquisa. Ou motores de significância. Ou de estilo de escrita. Conheço bem os mecanismos de análise. Não vos vou facilitar a vida.

Não: se quiserem saber realmente do que se trata, têm de me saber seguir.

Porque as conspirações que por aqui andam são reais.

Eis a nossa heroína: recém-chegada à casa dos trinta, de estatura média, olhos ligeiramente afastados e um nariz um pouco pronunciado de mais para o seu gosto, cabelo forte, castanho, ondulado nas pontas, e uma figura esquálida, com peito pequeno e costelas saídas. É ligeiramente nervosa e conhecida pelos maneirismos bruscos, que são menos uma questão de feitio que produto dos inibidores de menstruação e de desejo sexual cujo uso recorrente esconde de todos. Sente-se confortável com roupas simples, discretas, normalmente blusas de cores neutras e calças a condizer, feitas exclusivamente de fibras artificiais. Evita seguir a moda das saias curtas, de novo na berra, por detestar a forma pontiaguda das canelas. Também não se sente confortável em exibir a pele branca que, por deficiência de melanina, assume um tom amarelado e doentio sempre que toma pílulas bronzeadoras. Passa a maior parte do tempo com o cabelo apanhado em rabo-de-cavalo, mais por conveniência do trabalho diário do que por gosto, mas depois durante o seu fim-de-semana não lhe apetece fazer grandes penteados e prende-o da mesma forma. Usa ocasionalmente óculos interactivos, mas como a maior parte dos dados de que necessita é de índole textual, prefere as lentes de contacto - assim aproveita para ir alternando a cor dos olhos enquanto se mantém informada. Vive num pequeno habitáculo de duas divisões, partilhando as áreas comuns de higiene e lazer com onze outros condóminos do andar, mas tem a sorte de as janelas apresentarem um cenário real - a da movimentada Rue Briotte - e não um electrónico ou pior ainda, o páteo interior. Quanto à alimentação, é rigorosa em comer somente produtos processados: não tem a mínima confiança na qualidade dos produtos naturais nem das condições em que teriam sido produzidos, e só procura a segurança dos enlatados submetidos a rigorosos processos de qualidade.

Encontramo-la a caminho do emprego. Imaginem um plano picado sobre Bruges, passando pela Basílica e pelos poucos prédios históricos, atravessando a imensa urbe de cubos habitacionais espelhados que cobrem a zona do porto onde ela reside, mergulhando de súbito num dos canais imundos da cidade que a urbe por cima utiliza como forma de despejo ilegal, penetrando no tubo por onde acelera um metropolitano aquático sem condutor. A nossa heroína - chamemos-lhe Adrienne, por conveniência - prendeu-se a uma das correias suspensas do tecto e dormita em pé, encostada a um varão. Nisto não é diferente dos tantos outros passageiros que a acompanham àquela hora. Não está habituada a erguer-se tão cedo nem a viajar para tão longe. Normalmente meia hora de transporte é o suficiente para a colocar na zona costeira de Antuérpia. Mas hoje foi convocada para Brighton. Algo importante requer a presença dela. Como recebeu a convocação apenas umas horas antes, não fez quaisquer preparativos para a estadia. Apenas leva consigo o cartão pessoal com o historial médico, como segurança, pois nem sempre aqueles destacamentos especiais - embora cuidassem normalmente de alojamento, vestuário e alimentação - estão devidamente informados.

E contudo, não lhe facilitavam transportes especiais, considerando que o pneumático subaquático era mais seguro e discreto que quaisquer movimentações aéreas na zona dos fortes e perigosos ciclones do canal da Mancha. De facto, em pouco tempo já está em alto mar, as janelas tinham-se transformado em ecrãs noticiosos e a impressão nos tímpanos derivada do mergulho em profundidade acorda-a por instantes. Abrindo os olhos, vê piscar no canto inferior direito do campo de visão um quadrado laranja que lhe indica uma mensagem, por ler, em memória. Mas ao aceder ao conteúdo, percebe que é um despacho de correio confidencial com documentos que tem de conhecer antes da reunião, mas que por virtude da falta de comunicações debaixo de água não está disponível. Ela sorri (as pequenas vitórias profissionais são a única coisa que a torna mesmo feliz) e volta à terra dos sonhos.

Por sua vez perturbada: encontrava-se a flutuar novamente, encerrada numa pequena bolha acolchoada, a sensação de alguém a respirar nas suas costas mas que não via quando se virava e rodopiava no ar; tentava atingir as paredes, mas quanto mais se mexia mais permanecia onde se encontrava, no centro da bolha, como uma mosca presa numa teia invisível; depois a luz a mudar, o observador invisível a aproximar-se, uma zona da parede a abrir-se em forma de íris negra, escura, a revelar uma passagem vazia, redonda, infinda; ela a encarar aterrada, a abertura; nos ouvidos o insuportável batuque do coração, cada vez mais alto; ela consciente do terror em que estava, a afundar-se nele, não conseguindo desviar os olhos, mover-se, antecipando o segundo em que o ser do outro lado se mostraria, a confirmação de que o monstro existia, e vinha no seu encalce; e então, a abertura e a passagem deixavam de sê-lo, o que estava em redor mexia-se, destacava-se da parede como um camaleão, e ela percebia que afinal estivera a encarar um esfíncter, talvez um olho, um olho que a observava, não uma passagem mas o prenúncio do sofrimento; e ela ali presa, naquele espaço fechado e minúsculo, sem poder fugir, a ver o seu pior pesadelo consubstanciar-se em forma e vontade diante de si.

Acorda aos gritos. Os outros passageiros encaram-na com absoluto espanto, antes de se mostrarem aborrecidos e indignados por terem sido, também eles, despertados dos seus mundos de sonho privados, aparentemente mais pacíficos. Ela vira-se contra a janela, envergonhadíssima, e desprende-se da correia, para que o corpo fique em constante desequilíbrio e não possa adormecer de novo.

Tantas vezes aquele sonho. Sempre o mesmo. Sempre idêntico fim. O que significa? Que mensagem inconsciente o espírito lhe tenta passar?

Porque se recusa a falar do assunto ao médico?

Adrienne chega finalmente à estação terminal ao largo da costa de Inglaterra, e é despejada para um conjunto de átrios abobadados com tectos de diamante por onde se discernem as águas profundas do canal, iluminadas por potentes holofotes para compensar a inexistência de luz solar e captar a fauna subaquática, mantida num delicado equilíbrio de curiosidade luminosa e repulsa pelos feixes de ultrassons que afastam os bichos mais volumosos ou perigosos para a estrutura. Um extenso espaço comercial acompanha-a à saída, cheio de lojas voláteis que alteram o tipo de mercadoria e a natureza da venda de hora para hora, consoante o fluxo de passageiros e visitantes que o atravessam. O ruído próprio de um espaço tão amplo é profissionalmente abafado por milhares de fiapos dependurados do tecto, quais lianas, que formam uma cortina onde se projectam as notícias de um canal britânico. Enquanto aguarda o elevador para a superfície, concentra-se nas imagens e nas informações das legendas, habituando o cérebro à língua inglesa. Uma explosão num dos postos fronteiriços da Muralha Europeia do mar negro marca as notícias da hora. Aparentemente foi uma manifestação da guerrilha anti-extraterrestres, visando impedir a exportação de tecido semi-inteligente para os países árabes. Embora as notícias sejam vagas sobre o assunto, Adrienne conhece as causas que levaram a tais protestos, pois já observou a forte reação do contacto deste tipo de tecido (fabricado com tecnologia Spiertvick’kap) com os produtos utilizados na região (quase todos influenciados por tecnologia Irristkitck) e imagina os danos que provocarão na pele de que os use... conhecendo a história da região, não é de admirar que pensem que o efeito foi propositado e que resultou de uma tentativa de ataque terrorista subtil da Europa às suas populações. Conhecendo, por outro lado, a história dos extra-terrestres, e como engraçavam pouco uns com os outros, não é de admirar que isso seja verdade. O Próximo Oriente sofreu um duro golpe aquando da escassez do petróleo e da resultante e esperada indiferença do resto do mundo perante a região, subitamente tornada numa África um pouco mais sofisticada mas igualmente corrupta e pobre, e queriam - com a ajuda dos novos amigos do espaço - recuperar algum do poder do passado.

O transporte aguarda-a. A discreta e pequena sigla HSO (Home Security Office) quase se perde na estrutura negra do barco unipessoal, mas o ar austero é inconfundível. O condutor saúda-a com a mão retesada contra a testa, e ela não quer corrigi-lo, dizer-lhe que é civil. Senta-se na cabina e aproveita a curta viagem para descarregar a mensagem e ler o anexo.

O que descobre desperta-a com mais eficiência do que uma injecção de cafeína pura nas veias.


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08 Julho 2012

Virão Chuvas Mansas, disse Sara Teasdale sobre o fim da Humanidade, explicando que nem a Primavera notaria a nossa ausência quando despontasse sobre a derradeira de todas as guerras. Contudo, mesmo estando a Guerra Fria na infância, já se desconfiava quem nem a Primavera sairia vitoriosa do espectro do inverno atómico, ou não fossem ainda recentes as duas cicatrizes do Japão, pelo que não se dirá de todo displiscente que Bradbury, ao deixar-se cativar pelo poema, se tenha focado no espaço íntimo do lar e nas consequências imediatas de tal catástrofe, rejeitando a hipótese mais mais poética de Teasdale que o Paraíso renasceria sobre a Terra.

Na década em que foi publicado, «There Will Come Soft Rains» representa um conto invulgar na Ficção Científica corrente: negativo onde os seus conterrâneos têm sido, até então, habitualmente positivos e crentes na inteligência da espécie humana; melancólico, no meio de narrativas firmes e declarativas; vazio de actores, uma vez que a sua substância consiste precisamente neste vazio, e contudo, mais forte por esse motivo; decorrendo como um longo e lento travelling panorâmico, demonstrando que há formas de unir a linguagem do cinema com a da literatura para alcançar uma sinergia única. Se não contribuiu directamente para a escolha de Bradbury enquanto argumentista de Houston, alguns anos depois, sem dúvida que não terá prejudicado. É um conto conciso e contido na sua forma, imune à passagem do tempo, como a boa Literatura - e neste caso, como em muitos, a Literatura reconheceu de imediato um dos Seus, sendo publicado na digna Collier's e não num dos muitos veículos da pulp fiction, no meio do entulho pueril ocasionalmente pontilhado por textos merecedores de imortalidade.

No conto, mecanismos subitamente tornados obsoletos continuam a cumprir rituais pré-programados para uma plateia vazia, sem a qual a sua função se tornou inútil e logo desapareceu a razão de existirem. O fogo surge como elemento redentor, acto de misericórdia, libertando-os de uma eternidade vazia de propósito. Se o autor, em idade avançada, começou a mostrar-se como ludita simpático e inócuo, foi talvez porque se viu obrigado a tornar a mensagem explícita para as novas gerações pouco habituadas a frases longas e nuances narrativas, pois já desde o início o aviso lá se encontrava. Ai da Humanidade, tanto se deixou deslumbrar pela tecnologia resultante do seu engenho que acabou por esta sendo extinta! Que melhor conto de fadas admonitório na era da tecnofantasia?

A reputação de Bradbury precedeu-o, em mim, antes da ficção. Houve um tempo em que Asimov, Heinlein e Blish transbordavam dos beirais das livrarias, mas Bradbury era presença rara - a Europa-América só o incluiu numa das colecções de FC em 2002, e se a Argonauta já lhe tinha traduzido as principais obras, fê-lo antes do meu encontro com ela, pelo que esses exemplares já não habitavam as livrarias de subúrbio que frequentava. No entanto, era muito mencionado pelos outros autores, ombrava com Asimov e Clarke enquanto um dos três grandes. Era imensa a minha curiosidade. Descobri-o finalmente a meio da década de 80, num volume da colecção Espaço da Verbo (apenas 5 magros números, mas lá dentro, tão repletos de possibilidades!) e, sim, precisamente com este conto. Este conto subtil, económico, inteligente, irónico, poético, melancólico, perfeito. E para minha sorte, estava traduzido com gosto. «Soft rains» ficaram para sempre as «chuvas mansas» no meu imaginário, incapacitando-me de atribuir laivos de qualidade às alternativas «chuvas suaves» ou «chuvas brandas» com que tradutores de outras edições as baptizariam. E como ler é estar vivo, estar consciente da vida, também o momento ficou, essa tarde de Primavera, na sala apertada de uma pequeníssima biblioteca de Junta de Freguesia, com o sol a entrar-me pelas costas e um par de colegas de escola que arrastara comigo para ler FC. Esse resultado de uma escolha ao acaso, volume de uma colecção que desconhecia. O momento permanece como uma história que se conta, pois ignoro o que aconteceu antes dele e o que terá acontecido a seguir - a não ser a decisão de regressar à biblioteca, tornar-me sócio, trazer livros emprestados, procurar reencontrar tal perfeição. Ser leitor é isto, misturar a vida com os livros a ponto de se tornarem indistintos.

Mas a perfeição tem um preço, se é com ela que se começa. Fatidicamente, Bradbury demorou a reerguer-se tão alto. As Crónicas Marcianas trouxeram a estranheza de um autor que renegava o discurso límpido e racional da física, que preferia equiparar foguetões a gafanhotos e descolagens ao verão no campo do que descrever a engenharia que os fabricara. Além de ser um não-romance, uma sequência de vinhetas coladas cujo sentido errava e que se afastava da imagem tradicional da FC. Era aquela afinal a grande obra prometida? Como a proverbial bebida, estranhei e só mais tarde viria a entranhar a abordagem poética. Era primeiro preciso entender que Bradbury nunca foi pessoa de romances, e a seguir, que não escrevia Ficção Científica. Clarke, o matemático mistico - Asimov, o racional dedutivo - Heinlein, todo ele WASP e libertário e republicanóide - crescendo numa época que privilegiava a narrativa curta e movimentada contra longa e meditativa e poética, tinham no entanto um pendor para a verosimilhança científica, e apreciavam tecnologia. Bradbury era humanista onde estes eram tecnocratas, era bucólico onde estes eram urbanos. Se o seu nome não fosse pronunciado na mesma exalação na companhia daqueles senhores, jamais as minhas expectativas teriam ficado defraudadas. Nunca fui muito compreensivo com quem não partilha o fascínio pelo funcionamento íntimo do Real. Bradbury tornou-se, então, um autor que era preciso deslocar, reposicionar - algo que não era fácil quando obras como A Cidade Fantástica (Dandelion Wine), um pequeno hino à infância que nada tinha de FC e verdadeiramente pouco de Fantasia, roubavam os poucos espaços anuais de publicação nas colecções dedicadas da época. Não foi senão mais tarde - dizia - que entendi Bradbury como talvez o primeiro, sem dúvida um dos poucos, realistas mágicos do género, alguém que apenas lhe escuta e repete a simbologia e através dela espelha um entendimento fiel e inovador das crenças e dos temores de quem lê. Sim, os foguetões eram gafanhotos de metal porque esta era a sua verdadeira natureza.

Mas que não fique a ideia errada: Bradbury continuou a chamar-me do fundo das prateleiras, ou não fosse dele o grande hino à importância da literatura que foi Fahrenheit 451 (o qual aguarda a tradução corajosa em 233 Centígrados), em versão livro e filme. Estava-se no rescaldo de certas ditaduras, e noutras enfiados nelas até ao pescoço. E também dele a ideia de salvar Thomas Wolfe - um dos melhores prosadores americanos de sempre - das garras da tuberculose para terminar a sua obra.

Para mim, Bradbury voltaria a erguer-se com «All Summer in a Day», outro dos seus contos breves sobre a capacidade das crianças em sofrer e encantar-se com igual intensidade. Evoquei-o, recentemente, no artigo «Rosebud» dedicado aos livros da vida. Na sua simplicidade e pequenez, continua poderoso como um murro na alma. Assim, como os grandes escritores.

Abençoados os que descobrem, pela primeira vez, Ray Bradbury. Que encantadora jornada os espera.

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11 Junho 2012

O Que Estranho é a frequência com que, no meu contínuo mergulho pelas entranhas do (pouco) que se possa identificar como Ficção Científica portuguesa clássica, ocasionalmente misturando-se com os praticantes da (pouca) real pulp fiction lusitana, encontro convicções desta natureza, atiradas sem qualquer contexto e sem qualquer relativização face ao género (pois não duvido que o autor tinha um tipo particular de histórias em mente).

Que o mainstream nos castigasse pela nossa ousadia de marginalidade, perfeito - faz parte do jogo. Receber invectivas destas dos que labutam ao nosso lado é mais complicado. E não - não foi o único. Mas ao menos é uma pista adicional - e importante - para compreender a dificuldade de consolidação do género neste país na época em que supostamente devia medrar.

Da entrevista de António Dias de Deus a Raul Correia, autor frequente d'O Mosquito - o negrito é nosso:

(...) D.D. - Há ainda muitas novelas, sem qualquer nome de autor. Poderia identificá-las?

R.C. - Vejamos: «O Falcão da Pradaria» - Raul Correia; «O País dos Ventos Ululantes» - José Padinha; «O Vale do Silêncio» - Raul Correia; «O Punhal do Imperador» - José Padinha?; «O Jura­mento de Águia Negra», «Um Caçador Fez testamento», «Quero Ser Palhaço», «Tobias Contou a História» - José Padi­nha? Quanto a «O Príncipe e o seu Fantasma», sabia que muitas dessas histórias eram adaptações de histórias inglesas? Essa, por exemplo, era de ficção científica. Eu nunca escreveria ficção científica, género que detesto.

D.D. - Sim, é um género que denota grande falta de imaginação.

R.C. - Pois é. Inventa-se um planeta estranho, fabricam-se uns habitantes desse planeta, e, no fim, fazemo-los actuar como se tivessem um comporta­mento humano. Ora, se houvessem outros tipos de vida, eles poderiam ser totalmente diferentes dos nossos. Até talvez nem fosse precisa a existência de água. Nós só falamos daquilo que já conhecemos.

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