Exposição Prolongada à Ficção Científica  

   um blog de Luís Filipe Silva


13 Janeiro 2014

Leituras de 2014 (2). «Only Partly Here» (conto) de Lucius Shepard, em Eternity and other stories. Lido em inglês.

A história de Bobby e Alicia – ou melhor, a história de Bobby a par da história de Alicia, as quais se tocam, brevemente, num bar de Manhattan, numa data posterior ao 11 de Setembro, e acabam por formar uma espécie de amor jamais concretizável, uma forma de conforto mútuo, mas parcial, isolado, solitário. Porque, afirma Shepard, «at most times people are only partly there for one another» e assim parece legitimar o título ou por ele ser absolvido.

Alicia aparenta ser uma directora de empresa com problemas por resolver; todas as noites vai sentar-se no mesmo lugar no bar e todas as noites afasta os vários pretendentes que arriscam meter conversa. Até chegar Bobby. Jovem, mais jovem que Alicia, Bobby trabalha numa equipa de limpeza que, dia após dia, vai limpando os destroços do que restou das Torres Gémeas. Um trabalho que corroi a alma.

There are legends in the pit. Phantoms and apparitions. […] The place feels so empty. Like even the ghosts are gone. All that sudden vacancy, who knows what might have entered in?

É o começo do conto, mas, apesar da promessa implícita, não vai enveredar pela descrição horrífica do evento, nem estabelece contacto explícito com as legiões de mortos tombados naquele dia, como seria de esperar de um autor com uma sólida reputação na FC e no realismo mágico, e de uma revista de género como a Asimov’s, onde foi publicado pela primeira vez. O sobrenatural surge – ou aparenta surgir, se a nossa leitura não demasiado literal –, perto do fim, mas é um sobrenatural discreto, ambíguo, literário.

No Stephen King commercial, no sight of her hovering a few inches off the ground, bearing the horrid wounds that killed her.

Esta frase revela tudo sobre o final, e também quase nada, pois Shepard não nos conduz a um desfecho narrativo. Antes, chega-se a uma conclusão ligeira, quase inglória ao potencial do tema: a de que viver sem intensidade, viver a prestações, é pior do que a morte – e mostrar o que significa estar-se vivo é a melhor prenda que se pode dar a um fantasma indeciso entre mundos.

Shepard está muito aquém, neste texto – nem sequer do seu melhor, mas até da qualidade básica dos seus contos medianos do passado. Será a dor de tal evocação tão forte que apenas se consegue manifestar como torpor? Sem dúvida que se trata de um tema complicado, para um autor americano da presente geração conseguir gerir em termos do distanciamento indispensável entre narrador e narrativa – opções e dificuldades que, não é de espantar, um crítico americano compreende e admira. Mas conhecendo a versatilidade prosística de Shepard, fica a sensação de que outras altitudes poderiam ser alcançadas. 

Teria ganho o texto em ficar na gaveta os anos suficientes para deixar a vivência tornar-se memória? É injusto sermos cínicos perante uma abordagem tão humana, mas fica a dúvida, se um evento distanciado no tempo e na cultura (exemplos ao acaso, de tantos que há, infelizmente, na História: o massacre de Cholula, ou o do Julho Negro) teria uma abordagem literária tão mansamente repleta de filosofia e aceitação, num texto de género, ou, se, pelo contrário, seríamos presenteados em grande plano com os pormenores horrendos da crueldade humana? Dúvida que talvez se deva mais às assumpções ocultas no centrismo cultural vigente do género do que à falta de capacidade literária dos seus autores, a bem ver...

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12 Janeiro 2014

Leituras de 2014 (1). One Horse Town (conto, bib.), de Howard Waldrop e Leigh Kennedy. Lido em inglês.

Uma breve mas historicamente densa visão sobre a conquista de Tróia pelos gregos e o episódio do cavalo que daria origem ao célebre ditado “quando te oferecerem um grego, não lhe vejas os dentes”, ou algo assim. Waldrop não se limita à reconstituição histórica nem ao banal truque do desfecho alternativo para evocar temas do Fantástico, mas aplica a sua erudição para transformar o conto numa verdadeira peça de literatura – como é habitual no autor. Desconhece-se a contribuição de Kennedy, mas a opção de entrecruzar três perspectivas temporais – a de Corebo, filho do rei da Frígia, a do poeta Homero ainda criança e a do arqueólogo Heinrich Schliemann durante as escavações das ruínas daquela cidade – que acabam por se misturar em delicadas e convincentes transições de meta-narrativa, é utilizada por Waldrop em outros contos seus. É impressionante como um texto tão breve consegue dar alento àquela terra dos mitos e fazer dela cidade viva, cujo povo, devastado pela longa guerra, se deixa convencer pela fácil retirada dos gregos com o resultado trágico que ecoou nos tempos – afirmando entretanto que os pequenos dramas pessoais, escondidos na grande trama histórica, jamais serão desenterrados pelo presente – e tem ainda espaço para opinar sobre a natureza do processo narrativo através da voz do infante Homero, que encontra na obsessão dos épicos pelos feitos uma oportunidade perdida, pois os poemas deviam centrar-se nos heróis, nos soldados quando regressam a casa, nas famílias que deixaram e no tempo que passou, um truísmo agora tão óbvio mas que andou perdido, nos tempos em que a própria literatura dava os primeiros passos. Impressionante.

PS – atente-se na ironia do título, uma expressão que pode significar «vilarejo insignificante» pois nele só há um cavalo...

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03 Janeiro 2014

Sobre Grandes Escritores e (um d') os motivos pelos quais são grandes (negritos meus):

The second-rate works of a great writer are worth reading because they offer the best criticism of his masterpieces.

Here her difficulties are more apparent, and the method she took to overcome them less artfully concealed.

To begin with, the stiffness and the bareness of the first chapters prove that she was one of those writers who lay their facts out rather baldly in the first version and then go back and back and back and cover them with flesh and atmosphere.

How it would have been done we cannot say--by what suppressions and insertions and artful devices. But the miracle would have been accomplished; the dull history of fourteen years of family life would have been converted into another of those exquisite and apparently effortless introductions; and we should never have guessed what pages of preliminary drudgery Jane Austen forced her pen to go through.

Here we perceive that she was no conjuror after all. Like other writers, she had to create the atmosphere in which her own peculiar genius could bear fruit.

(in The Common Reader - First Series, Virginia Woolf).

E está tudo dito.

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01 Janeiro 2014

É Refrescante Começar O Ano com a leitura de uma entrevista (bastante antiga) de Noémia Delgado a António de Macedo, que acabara de realizar a sua primeira longa-metragem, Domingo à Tarde, e encontrar estes preciosos comentários (in Jornal de Letras e Artes, 12 de Maio de 1965, pg. 4):

ND: Se pudesse realizar um argumento seu, qual o tema ou personagens que gostaria de tratar? Porquê?
AM: Ficção científica. Talvez por temperamento. E, depois, na ficção científica encontramos o «maravilhoso» que existe no «contar uma história». O que nos encanta nas histórias é a evasão e a consciencialização – que podem não ser incompatíveis. Creio que não devemos ir só para o que diverte, como nem só para o que adverte. Na ficção científica intensifica-se tanto a diversão (ou evasão) como a advertência. Há sempre um mundo diferente que em princípio nos pode encantar, mas no qual pode haver lugar para as mais trágicas consequências. A advertência existe no facto de esse mundo, quer queiramos quer não, ser facilmente (mesmo que apenas ficticiamente...) um prolongamento do nosso. E o facto de ser trazido ao nosso presente por meio da ficção confere-lhe um acréscimo de impressividade e portanto, de eficácia, que torna as obras de ficção científica (autênticas) das mais graves do nosso século.

A ginja no cimo do bolo surge, contudo, um pouco mais adiante:

ND: O cinema dito comercial não irá implicar uma alienação por parte do cineasta?
AM: Sim e não; porque se o cinema comercial significar um ritmo de narração que possa prender o espectador, o realizador pode, em princípio, introduzir na narração os problemas que lhe interessa contar.

Um dia, quando sentir que tenha lido e investigado o suficiente sobre o percurso do cinema português, desconfio que hei-de escrever uma história alternativa em que a perspectiva do António vingou atempadamente sobre todas as outras, empurrando certas obras e tendências anti-narrativas para os confins do esquecimento...

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12 Dezembro 2013

Escutado em Entrevista Radiofónica ao editor das Publicações Europa-América, Francisco Lyon de Castro, por ocasião da estreia do segundo filme do Hobbit: durante o período de 2001 a 2004, em que foram lançados os filmes do Senhor dos Anéis, o total de vendas da edição nacional da trilogia, que teve tradução da Fernanda Pinto Rodrigues, ascendeu a (estão sentados?) 400 mil exemplares (continuam sentados?) por volume!

Sim, eram outros os tempos: a Fantasia era novidade e o mercado acorria. A oferta era escassa e dispersa. E o segundo senhor com dois R's no nome (G.R.R.M.) ainda não viera ocupar parte do trono ao primeiro.

Mas... mesmo assim... mesmo com a maturidade do mercado... mesmo com os factores inflaccionistas e multiplicadores... como é possível que o mercado para autores portugueses não seja 10% - ou 1% - daquela grandeza? Porque é que se situa, com alguma generosidade, nos 0,2%?

Lamento, não consigo deixar de pensar que andamos a fazer algo de errado...

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08 Novembro 2013

Assistir À Apresentação de Juliet Marillier, uma simpática neo-zelandesa de cabelo grisalho (fica-lhe bem) que, por um qualquer motivo, decidiu escrever fantasia celta situada na Irlanda - no lado oposto do globo, portanto (efeitos secundários da globalização?) - e ter dificuldade em entrar no apinhado auditório pela quantidade de gente interessada (maioritariamente adolescente) que a assolou com perguntas durante quase uma hora, ostentando orgulhosamente nos braços as edições nacionais. E perceber o entusiasmo, a vontade de ler, a apetência para comprar novos livros de uma autora que nem é das mais faladas internacionalmente nem tem uma obra extensa em dimensão (pouco mais de uma dúzia de romances) ou média (ou seja, sem adaptações a TV e cinema). E sentir na pele a fé redescoberta de Job, que no final das provações, repete fervorosamente a frase lapidar daquele conto do Frederic Brown, Yes, there is a market!

E perguntar, meus caros compatriotas de escrita, o que andamos nós a fazer de errado?

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13 Outubro 2013

A Mosca Na Teia. 

«Falar de defesa induzida é falar de uma educação extrema e desesperada do predador pela presa. Extrema no sentido de representar uma resposta tão específica a determinado comportamento de predação, e nessa especificidade comprometer recursos e capacidades defensivas da presa que o processo evolutivo normal orientaria para respostas mais genéricas a ameaças mais abrangentes. Desesperada por que a selecção natural tem a sua lógica intrínseca, e nem sempre o equilíbrio dinâmico entre oferta e procura, no qual a escassez de alimento faria reduzir o número de predadores e assim permitir a sobrevivência da presa, é o principal mecanismo em acção. Perante o contacto com o predador agressivo e uma reacção defensiva favorável, o processo evolutivo favorece os elementos capazes de reagir com a antecipação necessária e sem prejudicar a sua integridade estrutural nem a possibilidade de reprodução, cumprindo os requisitos base de especificidade, amplificação e memória indispensáveis para a categoria de defesa induzida.

É importante realçar que a ferocidade da defesa resulta, também ela, na sua própria ineficiência, uma vez que força a selecção natural dos predadores que lhe sejam mais resistentes ou indiferentes. Ser-se demasiado específico torna-se assim num risco acrescido, pois este comportamento terá sido adquirito à custa da versatilidade reprodutiva ou do factor de crescimento. Ainda que a relação entre todos estes factores não seja clara, a defesa induzida é uma marca histórica, uma prova de uma relação agressiva com uma espécie dominante que poderá já nem existir no momento do estudo.

Enquanto humanos, somos peças integrantes da nossa ecologia. Transportamos nos genes as estratégias de sobrevivência que nos foram mais adequadas no passado para ultrapassar as ameaças de outros animais, plantas tóxicas e doenças. O nosso sistema imunitário foi-se fortalecendo à medida que nos expusemos a epidemias, lentas ou vorazes, combatendo com a única arma que, durante muitos milénios, esteve disponível, ou seja, o antigo mecanismo de sobrevivência e reprodução. O combate artificial, por meio da investigação científica, da experimentação e da formulação de substâncias químicas que atacassem vírus e bactérias utilizando os seus próprios mecanismos, é, em termos evolutivos, uma reacção bastante recente, e para a qual os próprios virus e bactérias ainda não conseguiram contrapor com uma arma eficiente. Dito por outras palavras, a nossa inteligência é, para os efeitos de classificação de uma resposta específica a um mecanismo de predação, uma defesa induzida, que tem a vantagem relativa de conseguir adaptar-se com maior rapidez a alterações do predador, ao não estar directamente dependente de uma base genética mas de um comportamento transmitido pelo conhecimento. Tendo surgido na nossa espécie, depressa se terá revelado numa vantagem demasiado competitiva, pois, não obstante as variações individuais, o cérebro humano mantém uma constituição uniforme e um comportamento idêntico, independentemente da raça e localização geográfica. E se tivemos – e continuamos a ter – ameaças à sobrevivência decorrentes de uma acção intencional e racional, estas são exclusivamente consequências da nossa própria actividade, da aplicação da nossa inteligência.

Até à chegada dos extra-terrestres, obviamente. Eis que, de um momento para o outro, nos vimos defrontados com a manifestação de uma inteligência externa à nossa, detentora dos seus próprios processos de funcionamento, estranha, impenetrável. O historial breve do nosso contacto com estas diferentes espécies revelou diferentes modos de comunicação, ocupando vértices tão extremos a nível da sua intensidade – desde o secretismo dos Spleen à permeabilidade aparentemente total dos Cabeças-de-Abóbora – que se torna difícil, ou mesmo impossível, distinguir o que são comportamentos intrínsecos a cada uma destas espécies do que poderá ser uma estratégia concertada de abordagem à Humanidade. Se durante milénios, integrados na ecologia terrestre, aprendemos a sobreviver e a ascender na escada das defesas induzidas, até obtermos a mais flexível de todas, corremos actualmente um enorme risco, enquanto espécie, pois não temos qualquer defesa perante outras inteligências, nunca nos vimos expostos nem necessitados de adoptar mecanismos reactivos. E dada a rapidez com que os extra-terrestres se integraram no nosso meio, ou o utilizaram para os seus propósitos obscuros, receio que estejamos perante a maior ameaça de sempre à nossa existência  – o desequilíbrio entre o que sabem de nós e o que sabemos deles não aparenta reduzir-se, e como no proverbial conto de terror, o pêndulo balança inexoravelmente para um confronto final.»

Joe Abraxas, Não Lhes Faremos a Vontade: Os Efeitos da Presença Extraterrestre nas Culturas Humanas, 15ª edição.

Isto, a propósito daquelas manobras orbitais de que vos falava há alguns tempos...

 

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