Exposição Prolongada à Ficção Científica  

   um blog de Luís Filipe Silva


21 Janeiro 2014

Leituras de 2014 (5). «Division By Zero» de Ted Chiang. Lido em inglês.

Por muita advocacia do processo científico e da explicação objectiva do universo que a FC conduza em textos literários, há uma área em que se mostra tão avessa quanto a demais literatura: a matemática. 

Com esta afirmação não me refiro a textos que utilizem matemáticos como personagens (o caso de Shevek n’Os Despojados de Ursula Le Guin), que sustentem o enredo num efeito matemático (como o caso de «Andavam os Borogroves Desditosos» de Lewis Padgett com tradução de Dulce Helena da Silva) nem que descrevam a vivência comum num mundo que é uma «transposição» do nosso (sendo o caso mais conhecido o de Flatland – Uma Aventura em Muitas Dimensões de Edwin Abbott,  neste caso particular da tradução recente de Hélder Moura Pereira). 

Falo de textos que tenham a matemática por base do enredo, como um texto de Hard SF utilizaria o fenómeno das cordas ou as condições extremas da física nas redondezas de um espaço negro, e que produzam a sensação de maravilhoso estranhamento ao descreverem um fenómeno bizarro e contrário à nossa experiência mas possível dentro do nosso saber. Mesmo a Enciclopédia não é muito clara nesta distinção, além de, estranhamente, dar pouco destaque ao trabalho de Greg Egan, autor conhecido por encher o seu sítio Web de demonstrações visuais dos teoremas que utiliza na escrita.

Entra Ted Chiang, autor norte-americano de ascendência chinesa que granjou uma reputação invejável no género durante a passada década graças a duas peculiaridades: por um lado, a clareza de um raciocinio especulativo aplicada à exploração de conceitos extravagantes, em parte retirados do misticismo judaico-cristão (o fabrico de golens, a construção efectiva de uma Torre de Babel, a existência real de anjos); por outro, a escassez do que produz, limitando-se a ir publicando um ou dois contos por ano, contra o dilúvio de ficção que constantemente jorra das gráficas norte-americanas. Prova viva da falibilidade dos conselhos comerciais que constamente inundam os ouvidos dos pobres jovens autores, impelindo-os à saturação das redes sociais com os seus patéticos berros («estou aqui, estou AQUI! Porque é que NÃO ME LÊEM?! Buaaaá»).

Escasso e cativante. A prosa de Chiang está para o mercado da FC como o diamante está para o mercado das pedras preciosas. E como os diamantes, não está livre de defeitos nem apresenta sempre o mesmo nível de aquilatação.

O conto supra é ambíguo, se quisermos avaliá-lo. Alia uma pergunta extraordinária – e se fosse demonstrável que a matemática como um todo é inconsistente? – com uma exploração literária limitativa e incapaz de conter a grandiosidade da premissa.

A premissa não é fácil de explicar. Além da aritmética básica e de algumas noções de estatística, a matemática, enquanto problema intelectual, está ausente da nossa rotina, não obstante o cérebro (se saudável) continuamente efectuar os cálculos vectoriais que nos impedem de chocar contra objectos, pousá-los e apanhá-los com precisão, manter o corpo em equilíbro sustentado apenas em duas pernas, medir velocidades e distâncias a conduzir e a correr, e assim por diante. Temos uma vaga lembrança de equações e funções e sinalética como obstáculos no jogo do ensino oficial que é necessário contornar de forma a atingirmos o nível seguinte – e logo prontamente esquecidos. Mas reconhecemos a matemática como uma competência fundamental, com provas dadas, pela observação – as pontes não caem, os aviões chegam ao destino, os satélites mantêm-se em órbita, as duas metades de túneis submarinos em construção encontram-se a meio – e pela experiência – uma dúzia de ovos é uma dúzia, não se transforma de repente em seis ou oito ou zero sem, no mínimo, um descuido de quem os segura...

Assentar assim uma história sobre a extinção do formalismo e explicar a leigos as implicações deste acontecimento requer a educação da massa leitora.

Uma decisão muito complicada num género capaz de excomungar obras que sejam incapazes de diluir a pílula didática no líquido narrativo.

Chiang estrutura o conto em três continuidades cénicas: a da explicação, a do desenvolvimento da problemática científica, a dos efeitos no casamento e respectiva evolução emocional. Além disso, toma uma decisão ainda mais fundamental, a de ser breve.

Estas decisões expõem de forma clara o raciocínio autorial e demonstram como cada peça encaixa nos desafios intrínsecos à escrita de ficção (sobre) matemática.

1) Explicação: Chiang abre o texto com um parágrafo que nos demonstra de forma simples o que significa a divisão aritmética em termos formais, e em que medida a divisão por zero, que dá o titulo ao conto, desnuda um dos paradoxos fundamentais da matemática, pois conduz a um resultado contraditório com o próprio raciocínio e é capaz de derrubar um dos princípios sagrados, a da unicidade dos números. Um é igual a um, sabemo-lo, mas tal contradição permite argumentar que é igual a dois ou a qualquer outro número (mais pormenores), a não ser que se recorra ao artifício do «infinito», ou uma outra forma de dizer, «é melhor ignorar isto».

Exposição do problema com um conceito simples ilustrado pelo título. Enquanto exemplo para demonstrar, numa oficina de escrita criativa, como se pode abrir um texto de FC complexa, é quase perfeito.

Contudo, ainda não existe história. Para isso, precisamos de introduzir figuras, um local, uma época, um conflito - ingredientes básicos:

2) Conflito-base: o do cientista perante si mesmo. A protagonista, Renee, é uma matemática brilhante que, é-nos dito, desde tenra idade é bastante sensível aos padrões da composição do mundo – por outras palavras, a realidade, para ela, é demonstrável e descrita pela matemática. Nesta crença reside a beleza e a solidez da existência.

As a child of seven, while investigating the house of a relative, Renee had been spellbound at discovering the perfect squares in the smooth marble tiles of the floor. A single one, two rows of two, three rows of three, four rows of four: the tiles fit together in a square. Of course. No matter which side you looked at it from, it came out the same. And more than that, each square was bigger than the last by an odd number of tiles. It was an epiphany. The conclusion was necessary: it had a rightness to it, confirmed by the smooth, cool feel of the tiles. And the way the tiles were fitted together, with such incredibly fine lines where they met; she had shivered at the precision.

É uma sensação humana, compreensível. Mas ao mesmo tempo estranha para o ser humano «normal». Encantamo-nos com a harmonia de uma paisagem e a de uma música – encanto que deverá muito a um padrão calculatório subjacente – mas não a este ponto. O mundo é o que é, o que existe. Não requer decifração.

Obviamente, o cérebro do matemático pensará de forma diferente. Chiang tenta mostrar-nos, mas logo a seguir desfere o golpe: existe uma demonstração formal, inabalável, de que a matemática é um sistema que se auto-contradiz. De que 1=2, 1=3, um número qualquer é igual a outro número qualquer.

E Renee, para quem tal consistência é sagrada, é o veículo de tal descoberta. O que a vai destruir como pessoa.

3) o drama humano: Carl, marido de Renee, é uma pessoa «normal», que faz uma pergunta «normal»: a matemática que conhecemos é-nos útil de forma prática? Sim. Então, qual é o grande problema?
É a falta de sentido, diz ela.

“Now mathematics has absolutely nothing to do with reality. Never mind concepts like imaginaries or infinitesimals. Now goddamn integer addition has nothing to do with counting on your fingers. One and one will always get you two on your fingers, but on paper I can give you an infinite number of answers, and they're all equally valid, which means they're all equally invalid. I can write the most elegant theorem you've ever seen, and it won't mean any more than a nonsense equation.”

Para atingir os conceitos mais esotéricos da matemática, é preciso atravessar um território de premissas e pressupostos, assentes num formalismo. Mas os pressupostos têm uma tendência para se irem apoiando em outros pressupostos, como a estrutura de um prédio assenta em pilares ou o software aplicacional confia no sistema operativo. Se um dos pilares fundamentais racha... a casa vem abaixo.

Renee desfez a ilusão. O prédio ruiu. Podemos viver nas ruínas, mas não há beleza nem sentido.

Como transmitir tal desalento ao leitor? Chiang não o faz pela maestria da prosa; não tenta sequer mostrar-nos o que é conviver com esse conhecimento, dia após dia, a não ser pelas manifestações externas, e algo óbvias, de depressão e afastamento, que acabam por se transformar numa tentativa de suicídio. O marido dela está atento e salva-a; um sub-enredo explica-nos que também ele atentou contra a vida, é um sobrevivente das profundezas da alma. Das três sequências narrativas, é o drama humano – o ponto de vista de Carl, que é também a perspectiva do casamento – que impera no fim e que chega à seguinte conclusão: quem habita apenas o seu espaço mental afasta o mundo e afasta os outros e por conseguinte é incapaz de um relacionamento afectivo.

Um final invulgar para um conto que se dedica a uma argumentação científica. Que o desequilibra. Se houve um acumular de tensão a que o enredo terá dado prioridade, não foi o do casamento – este parece surgir como uma solução apressada perante a impossibilidade de a história fugir à pergunta inevitável do leitor: «pronto, a matemática não serve para nada, mas ainda funciona em termos práticos; e daí

Aqui se revela uma grande falácia dos hábitos de escrita – e também de leitura – da FC norte-americana.

A de que o conhecimento tem de ter consequências práticas e palpáveis no mundo extemporâneo.

Fica assim vedada a Chiang a abordagem (vulgar no mainstream) de sustentar na graça da prosa e na argumentação pormenorizada de um conflito interior as implicações filosóficas da história. Nada tinha de acontecer, além da descoberta em si – nada e, afinal, tudo. O olhar do matemático teria oferecido a sua própria apologia, a sua visão de um futuro sem sentido, de progresso arbitrário e frágil. Bem explorado, um terremoto íntimo pode ter maior interesse em termos literários do que o seu congénere físico.

O que teria um Lem feito com a ideia deste conto. Um Borges.

É bizarro observar que a FC é tão propícia à exploração de conceitos grandiosos e complexos como é limitativa...

Como um volumoso depósito de água que não se consegue vedar por completo.

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18 Janeiro 2014

Ver A Arte. Eis um modo incrivelmente simples e sublime:

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16 Janeiro 2014

Leituras de 2014 (4). «Young Zaphod Plays it Safe» (conto) de Douglas Adams. Em The Time Traveller's Almanac. Lido em inglês.

Eis um regresso muito apetecido ao universo de À Boleia pela Galáxia (privilegiando a tradução de António Vilaça na recente edição da Saída de Emergência), em que nos deparamos com uma incursão do Presidente galáctico Zaphod Beeblebrox enquanto ainda era um mero e reles colector de salvados de naves espaciais encalhadas. Acontece que a nave deste conto encalhou no fundo do oceano de um planeta famoso pelas suas lagostas, tão famoso que o piloto, descendente de antepassados provenientes daquela zona, não descansou enquanto não convenceu os camaradas a pousar e provar aqueles belos espécimes de quem tanto se falava – e falava e falava – na família... sem pensar na importância da sua missão, que consistia em despachar a nave contra um buraco negro pelo perigo e secretismo das armas a bordo... seriam umas senhoras lagostas, de facto!

Zaphod é contratado por burocratas que conhecem o verdadeiro conteúdo da nave (oficialmente transportaria «resíduos inofensivos»), os quais insistem em como foram seguidos todos os protocolos e normas de segurança, embora as evidências da nave encalhada – o casco destruído, o convés despedaçado – apontem para o contrário.

Aqui se percebe como o humor de Adams é de uma maestria subtil e destemida, sustentada no uso cuidado da linguagem e na delicadeza como apresenta a ideia, fazendo-nos envolver aos poucos, sem pressas, como se abrisse aos poucos um diafragma ocular sobre uma realidade complexa e desconcertante. À moda dos verdadeiros humoristas da palavra, evita a punch line e esforça-se por explicar o absurdo no contexto narrativo. Aliás, é precisamente por nunca pedir desculpas e insistir no elemento apresentado que consegue obter situações hilariantes, disfarçadas de enredo. Algo que traz bons resultados em meios verbais, como a rádio, mas que se transforma em desastre no cinema e na televisão – conforme já se pode comprovar.

Apetece fazer excertos do conto inteiro. Fica, contudo, aqui um dos mais cativantes, sobre a invenção das «varetas do aoristo» e de como toda a tecnologia tem efeitos secundários (hint, hint, nudge, nudge) perfeitamente plausíveis e humanos:

Aorist rods were devices used in a now happily abandoned form of energy production. When the hunt for new sources of energy had at one point got particularly frantic, one bright young chap suddenly spotted that one place which had never used up all its available energy was – the past. And with the sudden rush of blood to the head that such insights tend to induce, he invented a way of mining it that very same night, and within a year huge tracts of the past were being drained of all their energy and simply wasting away. [...] The past provided a very cheap, plentiful, and clean source of energy, there could always be a few Natural Past Reserves set up if anyone wanted to pay for their upkeep [...] It was only when it was realised that the present really was being impoverished, and that the reason for it was that those selfish plundering wastrel bastards up in the future were doing exactly the same thing, that everyone realised that every single aorist rod, and the terrible secret of how they were made, would have to be utterly and forever destroyed.

 

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15 Janeiro 2014

Leituras de 2014 (3). «Eu Canto o Corpo Eléctrico!» (conto, bib., tradução de Eurico da Fonseca de «I Sing the Body Electric!»), de Ray Bradbury. Em: A Última Cidade de Marte. Lido em inglês e português.

Um pai procura colmatar a morte prematura da esposa para os filhos pela oferta de um brinquedo novo: uma avó eléctrica! Conduzidos à cidade, entrando na loja de um italiano fabricante de marionetas (porque só se consideram como legítimos os fabricantes de marionetas que sejam italianos?), os miúdos têm de responder a perguntas e deixar provas das suas lembranças, numa sugestão de produto personalizado. E eis que passado o tempo suficiente (tudo funciona com ritmo e espaçamento perfeitamente ajustados às necessidades das crianças, neste mundo que só pode ser de fantasia), chega de helicóptero à casa rural a nova prenda, dentro de um pseudo-sarcófago, que se acciona por intermédio de uma chave, dada à mais pequenita pelo empregado da loja. A avó eléctrica é tudo e mais do que se espera, um andróide perfeitamente funcional que ajusta as feições e reacções a cada criança e nunca se intromete nas suas convicções nem contraria os seus desejos, procurando atraí-las e conduzi-las através do constante esforço de seduzir e agradar (é de ponderar se tal personagem assim subtraída às vontades infantis não acabaria por criar um bando de fedelhos mimados?). A avó eléctrica tem as respostas para tudo, e muito articuladas e filosóficas que são, um perfeito exemplo de inteligência artificial em movimento – como teria um fabricante de brinquedos atingido tal competência cibernética e porque motivos continuaria a fabricar brinquedos, ao invés de se tornar o primeiro multimilionário da indústria robótica, é algo que não chega sequer a ser questionado; talvez se explique no facto de ser italiano?...

Bem, e a avó eléctrica fala pelos cotovelos, dando lições filosóficas sobre a natureza das máquinas e da tecnologia. O que não deixa de ser interessante. Até ao ponto de, quando as crianças ficam suficientemente crescidas, ela anunciar que vai retornar à loja (então não tinha sido comprada? Veio em regime de aluguer? Isso não nos tinha sido dito) e submeter-se às vontades do fabricante: ir para uma nova casa, ser desmontada para se aproveitarem as peças, etc. O que perturba os putos, naturalmente. Eis que, num elegante volte-face de salvação, a avó anuncia que, por uma módica prestação mensal, será remetida a um lar onde passará os anos a conversar com as outras avós eléctricas até ao momento em que os miúdos, já crescidos, precisem dela para os próprios filhos, ou, quando velhotes e regressados a uma débil infantilidade, requeiram os seus serviços de assistente, presumivelmente para mudar arrastadeiras ou esfregar no banho as peles caídas...

Sim, é complicado aceitar um mundo em que tal proposta não fosse respondida com uma gargalhada jocosa, passados os cinco segundos de reflexão financeira. Mas no sonhador mundo de Bradbury ninguém sabe fazer contas...

Não é que se trate de um conto lamechas. O autor tem a devida competência como prosador para salvar cada cena individualmente de se tornar ridícula. Infelizmente, o nível de ingenuidade que despeja sobre o cenário e as personagens acaba por transbordar para além da reduzida margem concedida por um qualquer leitor que pertença ao mundo real e entenda como funcionam as pessoas – sejam crianças ou adultos – e o progresso – que não inventa a inteligência artificial para o bem-estar das famílias sem antes a aplicar, de forma ubíqua e exaustiva, nos principais processos industriais e militares.

Pode haver um nível de encantamento no mundo de Bradbury mas é maior o nível de perigo – pois tamanha ingenuidade é capaz de cegar multidões, dando lugar e poder àquele com o proverbial olho aberto... Dêem-me a escolher e entrarei no mundo atento e desconfiado dez vezes em cada dez.

(Quanto à tradução, opinarei em foro próprio, deixando apenas uma nota de que seria, a meu ver, mais apropriado indicar «Louvo o corpo eléctrico!» como versão portuguesa do título, uma vez que se trata, afinal, de uma citação de Whitman; a edição posterior da Europa-América conseguiu ser ainda apresentar-se mais afastada do sentido e da poética do verso...)

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14 Janeiro 2014

Outras Leituras (1). Crítica publicada no Caderno Literário InDica, n.º 0, 2013.

«Havia em mim um impulso incendiário, uma voracidade para engolir tudo, uma incapacidade para a paz, para o silêncio e para os dias comuns», confessa-nos em jeito de promessa a abertura de Enquanto Lisboa Arde, o Rio de Janeiro Pega Fogo, terceiro romance do jornalista português Hugo Gonçalves. Quem fala é o protagonista: assessor político desempregado que (europeu em tempos de crise) aceitou trabalhar com gente de má fé e que (romântico com tendências literárias) aceitou os avanços da mulher do chefe. Resultado? A inevitável fuga para o Rio de Janeiro.

Traz o Homem dentro de si as sementes da sua destruição? Esta parece ser a crença da estória: não tarda até que o protagonista se perca numa bruma de maconha e mulheres, de amigos ambíguos e missões duvidosas. Ainda que seja no Rio, e muito especificamente, na geografia, nos sons e cores da Cidade Maravilhosa, que se encontra, a si mesmo e a Margot, paixão consumida de carne e alma que faz tanger as cordas da prosa como se fosse violão de rua. É no estilo – vibrante, alucinado, incansável, veloz – que está a grande força do romance. Gonçalves leu os autores do século XX, tece uma prosa que sabe, ora a poesia ora a delírio.

Mas é também um livro de enganos, pois apresenta-se como um relato pessoal do fim do mundo. Este mundo é o Portugal moderno, composto e vestido pelos fundos europeus que, durante quase duas décadas, sustentaram o estilo de vida das gerações saídas do 25 de Abril. Portugal amordaçado pelo défice, pela austeridade e pelo desemprego das classes educadas que esperavam passar incólumes; forçado a emigrar, como a geração iletrada dos anos 60, mas tão diferente desta.

A diáspora, vista pelo marketing da editora, é outra: conta Gonçalves nas entrevistas que, embora com planos de partir para o Brasil, foi despedido do jornal em que trabalhava e chegou à terra prometida com a precariedade de tantos outros compatriotas. O relato pessoal em breve se torna fantasia, ao envolver o rol quase mandatório de figuras da recente memória portuguesa (temos o ex-PIDE, o ex-refugiado do Holocausto, o sobrevivente de Abril, o filho do papá rico), verdadeiro mostruário de defeitos sociais, como se o Rio fosse, ao mesmo tempo, foz e âmbar cristalizado dos últimos quarenta anos de História de Portugal. A reflexão que prometia ser profunda, inovadora e desconcertante, limita-se a repetir os mesmos argumentos dos média e dos cafés, embora com ocasional ironia. E até o romance é interrompido por frequentes notas de rodapé em estilo jornalístico, explicando pormenores da vida e História brasileiras ao leitor luso, como se incerto da sua verdadeira natureza.

No final, representa menos o mergulho de um expatriado na estranheza de outra cultura, outro clima e outra forma de falar a mesma língua, e mais a sua passagem pelos contornos da superficie, com a mandatória visita ao Leblon e à favela, ícones sociais que aparentemente é impossivel desassociar da ideia do Rio de Janeiro. O autor não é ingénuo a ponto de crer em explicações fáceis, pelo que coloca vários personagens locais a alertar-nos que nem tudo o que se pensa da cidade reflete o que realmente é. Contudo, não deixam de ser conversas alheias, entrevistas, e deixa a sensação de um livro que podia ter sido um mergulho mas fica-se pelo surf.

Ainda assim, um surf de mestre. Recomendado.

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13 Janeiro 2014

Leituras de 2014 (2). «Only Partly Here» (conto) de Lucius Shepard, em Eternity and other stories. Lido em inglês.

A história de Bobby e Alicia – ou melhor, a história de Bobby a par da história de Alicia, as quais se tocam, brevemente, num bar de Manhattan, numa data posterior ao 11 de Setembro, e acabam por formar uma espécie de amor jamais concretizável, uma forma de conforto mútuo, mas parcial, isolado, solitário. Porque, afirma Shepard, «at most times people are only partly there for one another» e assim parece legitimar o título ou por ele ser absolvido.

Alicia aparenta ser uma directora de empresa com problemas por resolver; todas as noites vai sentar-se no mesmo lugar no bar e todas as noites afasta os vários pretendentes que arriscam meter conversa. Até chegar Bobby. Jovem, mais jovem que Alicia, Bobby trabalha numa equipa de limpeza que, dia após dia, vai limpando os destroços do que restou das Torres Gémeas. Um trabalho que corroi a alma.

There are legends in the pit. Phantoms and apparitions. […] The place feels so empty. Like even the ghosts are gone. All that sudden vacancy, who knows what might have entered in?

É o começo do conto, mas, apesar da promessa implícita, não vai enveredar pela descrição horrífica do evento, nem estabelece contacto explícito com as legiões de mortos tombados naquele dia, como seria de esperar de um autor com uma sólida reputação na FC e no realismo mágico, e de uma revista de género como a Asimov’s, onde foi publicado pela primeira vez. O sobrenatural surge – ou aparenta surgir, se a nossa leitura não demasiado literal –, perto do fim, mas é um sobrenatural discreto, ambíguo, literário.

No Stephen King commercial, no sight of her hovering a few inches off the ground, bearing the horrid wounds that killed her.

Esta frase revela tudo sobre o final, e também quase nada, pois Shepard não nos conduz a um desfecho narrativo. Antes, chega-se a uma conclusão ligeira, quase inglória ao potencial do tema: a de que viver sem intensidade, viver a prestações, é pior do que a morte – e mostrar o que significa estar-se vivo é a melhor prenda que se pode dar a um fantasma indeciso entre mundos.

Shepard está muito aquém, neste texto – nem sequer do seu melhor, mas até da qualidade básica dos seus contos medianos do passado. Será a dor de tal evocação tão forte que apenas se consegue manifestar como torpor? Sem dúvida que se trata de um tema complicado, para um autor americano da presente geração conseguir gerir em termos do distanciamento indispensável entre narrador e narrativa – opções e dificuldades que, não é de espantar, um crítico americano compreende e admira. Mas conhecendo a versatilidade prosística de Shepard, fica a sensação de que outras altitudes poderiam ser alcançadas. 

Teria ganho o texto em ficar na gaveta os anos suficientes para deixar a vivência tornar-se memória? É injusto sermos cínicos perante uma abordagem tão humana, mas fica a dúvida, se um evento distanciado no tempo e na cultura (exemplos ao acaso, de tantos que há, infelizmente, na História: o massacre de Cholula, ou o do Julho Negro) teria uma abordagem literária tão mansamente repleta de filosofia e aceitação, num texto de género, ou, se, pelo contrário, seríamos presenteados em grande plano com os pormenores horrendos da crueldade humana? Dúvida que talvez se deva mais às assumpções ocultas no centrismo cultural vigente do género do que à falta de capacidade literária dos seus autores, a bem ver...

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12 Janeiro 2014

Leituras de 2014 (1). One Horse Town (conto, bib.), de Howard Waldrop e Leigh Kennedy. Lido em inglês.

Uma breve mas historicamente densa visão sobre a conquista de Tróia pelos gregos e o episódio do cavalo que daria origem ao célebre ditado “quando te oferecerem um grego, não lhe vejas os dentes”, ou algo assim. Waldrop não se limita à reconstituição histórica nem ao banal truque do desfecho alternativo para evocar temas do Fantástico, mas aplica a sua erudição para transformar o conto numa verdadeira peça de literatura – como é habitual no autor. Desconhece-se a contribuição de Kennedy, mas a opção de entrecruzar três perspectivas temporais – a de Corebo, filho do rei da Frígia, a do poeta Homero ainda criança e a do arqueólogo Heinrich Schliemann durante as escavações das ruínas daquela cidade – que acabam por se misturar em delicadas e convincentes transições de meta-narrativa, é utilizada por Waldrop em outros contos seus. É impressionante como um texto tão breve consegue dar alento àquela terra dos mitos e fazer dela cidade viva, cujo povo, devastado pela longa guerra, se deixa convencer pela fácil retirada dos gregos com o resultado trágico que ecoou nos tempos – afirmando entretanto que os pequenos dramas pessoais, escondidos na grande trama histórica, jamais serão desenterrados pelo presente – e tem ainda espaço para opinar sobre a natureza do processo narrativo através da voz do infante Homero, que encontra na obsessão dos épicos pelos feitos uma oportunidade perdida, pois os poemas deviam centrar-se nos heróis, nos soldados quando regressam a casa, nas famílias que deixaram e no tempo que passou, um truísmo agora tão óbvio mas que andou perdido, nos tempos em que a própria literatura dava os primeiros passos. Impressionante.

PS – atente-se na ironia do título, uma expressão que pode significar «vilarejo insignificante» pois nele só há um cavalo...

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