Exposição Prolongada à Ficção Científica  

   um blog de Luís Filipe Silva


14 Dezembro 2014

Leituras. Comentários sobre livros recentes (repletos de parêntesis):

Eu Mato Gigantes, de Joe Kelly e J. M. Ken Niimura, lançado pela Kingpin Books, que opta pela estranha opção de um título bilíngue na capa, embora o miolo se encontre em português europeu. Necessidade de chamar a atenção a um público seguidor dos lançamentos e destaques internacionais? Bem, felizmente tais pormenores não comprometem uma história de crescimento e descoberta adolescente, contada a preto-e-branco com um traço económico inspirado em (mas não totalmente fiel a) estilos manga. Barbara, a rapariga cujas bizarras bóinas (?) com orelhas de coelho narrativa e personagens secundárias aceitam sem questionar, mais corajosa que a sua esquálida figura faria supor, com resposta pronta na língua (e ausência de bofetadas correctivas, o que nos indica estarmos perante uma «educação moderna»), anda pela escola a berrar a colegas e professores que mata gigantes, uma afirmação arrojada que não se ouvia na banda desenhada nem na animação desde os tempos da Disney.

A verdade é que gigantes parecem existir na sua vida, em particular aquele que vive no andar de cima (a classe média americana, recorde-se, não habita em apartamentos como os europeus) e de quem não se fala – e tão pouco dele se fala que as legendas saem riscadas (é um efeito minimalista mas eficaz). Barbara, tratando-se de uma adolescente mestre em jogos de tabuleiro (também aqui encontramos uma possível leitura de intervenção contra os estereótipos femininos na BD), vai passar pelos inevitáveis contratempos de integração social e bullying (nada mais cativa os geeks do que descreverem-se como vítimas, mas fica a pergunta: e isto não é também um estereótipo?), ao que não ajuda o seu conhecimento enciclopédico sobre gigantes.

Os autores conseguem estabelecer um clima de mistério e revelação gradual muito eficaz, em grande medida ajudado pela sugestão de um terror inominável que coexiste com a placidez de uma terreola de província e é capaz de suplantar o abuso diário, físico e emocional, que recebe dos seus conterrâneos. Barbara não é rapariga para se assustar facilmente, pelo que aquilo capaz de assustá-la se torna verdadeiramente perturbante no contexto da narrativa. É assim uma pena que o momento de revelação opte por uma interpretação simbólica desse terror e o inscreva numa circunstância de vida (nem por isso menos atemorizante, mas já fora do reino do Fantástico) comum a quem é ou foi filho. O acto final perde força, e só o carisma de Barbara, por quem nos afeiçoámos nos dois primeiros terços, é realmente o motivo para termos continuado (pois queremos saber se vai acabar bem).

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21 Junho 2014

Nesta era de minuciosa consubstanciação do imaginário, capaz de sobrepor actores de carne e osso (ou pele e osso, em alguns casos graves) com colegas digitais e ampliar cenários minimalistas para vistas amplas e inexistentes, verdadeira utopia do espectáculo que nem o mais optimista dos fãs conseguiria, há duas décadas e picos, antever com voz e pés firmes sem vacilar na dúvida do exequível, há quem denuncie uma sensação de cansaço, de saturação, de ennui (puxando ao snobismo) pela ubiquidade das ditas ICC (imagens-criadas-por-computador, se o tuga não desdenhasse dos acrónimos vertidos na [que devia ser] sua fala) em tudo o que é cinema de género ou não-género, sacrificando enredos e subtilezas à perfeição pixilada, apontando holofotes ao que outrora se manteria na sombra e enchendo os planos de extras mais convincentes e controláveis que os de Griffith (embora custem praticamente o mesmo por cabeça).

A decisão artística já foi ultrapassada pela comercial: os cifrões ditam que é preferível sobrepor recortes no computador e despachar a coisa no estúdio do que levar a equipa toda em viagem para filmar em locais remotos. Mas, obrigados a contracenar com marcações visuais em palcos minimalistas forrados a verde, os actores decerto que começam a sentir que não passam de figuras secundárias e verdadeiros empecilhos para o grande cabeça de cartaz: o digital. Talvez descubram que são o próximo alvo a abater, quando a tecnologia avançar e as multidões acolham com fervor as primeiras celebridades virtuais (o que, creio, apenas depende da capacidade de produzir rostos e expressões complexas e convincentes em tempo real). O filme Gravidade é revelador, nesse aspecto, mas pelo oposto – recebeu louvores pelo virtuosismo técnico como se representasse o último grito de um cinema moderno, quando esse virtuosismo derivou exclusivamente da necessidade de casar a actuação física com cenários computadorizados. O “making off” revela os níveis de energia dispendidos por actores e equipa ao adequarem as contorções de corpo, iluminação e câmara à ditadura da composição digital – energia que, dizem as boas práticas e a história do cinema, devia ser melhor dispendida a obter a excelência da narrativa e dos desempenhos. Mas Gravidade é o último dos moicanos, o fim da raça. Como exemplo de um possível futuro imediato do cinema, escolheria Avatar, não obstante a abordagem ainda tímida e conservadora. Nele se antevê um tempo em que as figuras virtual e a física de um actor serão indistinguíveis ao nível do pormenor. Em que actuações imperfeitas serão “emendadas” na pós-produção para lhes dar mais intensidade, mais realismo, ou para mudar os diálogos, os manerismos, os penteados, a roupa. No limite, vai ser possível interpretar a Guerra dos Tronos em cuecas e barba por fazer, sabendo-se que o produto final incluirá as devidas armaduras e fatos de época numa paisagem medieval. Vai ser possível mudar o movimento da boca e lábios para combinar com a dobragem e consoante o idioma. Finalmente, teremos os actores compósitos, que resultam da combinação das melhores características de vários performers – aproveita-se a cara de um, as mãos de outro, o tronco de um terceiro, a articulação sonora de um quarto, o andar de um atleta, o dançar de um bailarino, e monta-se uma figura que reune o melhor do grupo. Onde estará aqui a autoria? A veracidade? O individualismo? Será que sequer lhes sentimos falta?

O que uma geração estranha, a outra entranha. Este cinema novo não será o nosso, mas crianças ainda por nascer irão acolhe-lo com toda a naturalidade. Não vai demorar até que o virtual se intrometa no real, e vice-versa, a ponto de comprometerem uma separação.

Isto não significa que o cinema filmado, ou uma variante, desapareça. A História deu suficientes provas de que a tecnologia funciona por acumulação – não foi por fabricarmos carros que não há carroças, mas sim e apenas porque o rácio eficiência/custo é substancialmente melhor. O uso de actores, cenários e formas tradicionais de filmagem irão manter-se para os extremos da equação, para os nichos: filmes de autor, filmes de iniciantes. Mas estes não pagam as contas dos estúdios, que subsiste pela faixa de cinema a metro, onde se enquadram as aventuras, as comédias românticas, os policiais bem-comportadinhos, as adaptações de livros famosos, o cinema de massas, e que acolherá de braços abertos a nova forma de fazer bem e barato. It’s only and always about the money, boys and girls. Nada apraz mais um investidor do que garantias de resultado; e a garantia é tanto maior quanto menor for o nível de mão-de-obra. Veja-se: é inviável reunir elencos para voltar a filmar cenas que não ficaram bem, ou mesmo o filme inteiro, trocar o sexo ou raça de um personagem, mudar diálogos após as primeiras exibições... se o filme for inteiramente digital, não só a possibilidade surge como se tornará cada vez mais barato poder optar.

Tendo esta perspectiva em mente, é possível encarar Debaixo da Pele como um exemplo antecipado desse cinema de nicho, minimalista e saturado de realidade, como se, de algum modo, tivesse viajado para o passado de modo a dar origem à tendência em que se irá enquadrar.

(Sim, afinal o propósto do texto é falar da obra realizada por Jonatham Glazer.)

Antes de apreciar a originalidade do filme, é preciso entender que nada tem de original. Os anos 70 foram ricos em experimentalismo narrativo no cinema (os paralelos com Nicolas Roeg são óbvios e referidos por diversos criticos, e aqui acrescentaria Antonioni e Polanski, embora com ressalvas) ao qual este filme presta homenagem nas sequências iniciais, que a ignorância classifica como abstractas mas cujo significado, após uma ponderação retrospectiva, permite revelar como essencialmente concretas: retrata alguém que nasce, alguém que se adapta, alguém que aprende a falar, alguém que se transforma. Desde o início que a realização se mostra desconfortável e distante. Ao invés de começar com uma voz off acolhedora, à la Blade Runner original, qual comandante de avião que nos assegura de um vôo estável, somos precipitados numa queda vertiginosa, sem piloto nem controlo. Iremos embater na terra e morrer, ou entrámos em órbita segura? Não há forma de saber sem chegar ao fim, e chegar ao fim é deixar de saber, para sempre.

A desorientação é, no entanto, ilusória. Nós – filme e audiência – somos filhos da mesma geração. Não podemos impedir de trazer expectativas e modos de leitura no bolso, quando entramos na sala, e não podemos fazer com que se calem nos momentos de pânico. O truque de Glazer é, aqui, encher-nos de mundano, saturar-nos de realidade, de sequências que parecem oportunas e não planeadas, de actores que não são actores nem se apercebem que entraram num mundo fictício, em sublime aderência ao cinema verité, para, quando surgir o elemento Fantástico, este se revele como estranho e anti-natural, produto de uma manipulação visual que é, e sempre devia ser, considerada intrusiva. Graças a esta saturação, torna-se possível entender as sequências da sala escura, em que as vítima são «absorvidas» com um rigor novamente minimalista, como metáfora mas também como acção de tecnologia avançada, alienígena – precisamente a dualidade de leitura que distingue a Ficção Científica quando conceptualmente bem feita.

A verdadeira originalidade do filme não está realmente na estrutura nem na abordagem, mas na confiança extrema que deposita na audiência. É um pulo de fé por parte de realizador, argumentista actores e produtores que vai contra a grande maioria... não, direi contra todo o cinema de género. Confiança numa perícia de entendimento das pistas narrativas só possível a uma geração nutrida em massivas doses diárias de ficção televisiva. Confiança de que, embora desprovido das setas indicadoras e dos sinais de aviso a que está habituado, o espectador consiga orientar-se a tempo de apreciar a história. E é uma história surpreendemente terna.

Neste ponto, convém explicar que a minha leitura não foi inocente. Cheguei ao filme com o conhecimento pleno de Debaixo da Pele, a obra de Michel Faber que a Difel editou em 2001 com tradução de António Pescada, e da qual me queixei profusamente numa resenção publicada no suplemento DNA (do Diário de Notícias). Em causa estava o enquadramento numa tradição de Ficção Científica, a do extra-terrestre entre nós, invisível e nocivo (outras variantes apresentam-no alternadamente como visível e/ou benéfico). Este extra-terrestre cultivava artificialmente o nosso aspecto, em particular o de uma condutora boazona que percorria as desoladas estradas da Escócia a fazer vítimas dos penduras a que ia dando boleia. Qual o propósito? Engordá-los em cativeiro e despachá-los para o planeta natal como deliciosas iguarias. A premissa não é inédita: nos anos 50, Damon Knight escreveu um conto que seria adaptado para um episódio da Qunta Dimensão e assim ficaria famoso: alienígenas avançados surgem na Terra na posse de um curioso livro intitulado «To Serve Man», e cuja interpretação imediata pelas populações ignorou que «servir» pode ter dois sentidos muito distintos... É obviamente uma sátira que revela o quão predispostos estamos a fazer leituras preconceituosas de situações que podem esconder um foro muito diferente. E como sátira, funciona: é curta, é mordaz, é divertida. Precisamente o que o livro de Faber não é. A ironia dilui-se no monólogo interior da condutora alienígena que se queixa das operações a que foi submetida para se parecer com um ser humano e na crescente resistência em continuar a actividade predadora; na pormenorização dos encontros, das boleias, do que acontece às vítimas. A visão perturbante da pele, do visível, do físico, como principal meio de inclusão e exclusão, que o filme explora com destreza, é aflorada mas acaba por esvaír-se no meio das outras preocupações e distrações. Faber percebe correctamente que um romance não subsiste num único conceito e enche-o com a variedade necessária para cumprir o mínimo de páginas, e contudo devia ter-se ficado pelo conto. Porque o problema é este: a leitura da Ficção Científica impele ao questionamento dos pressupostos. O que há na carne humana que possa interessar a extra-terrestres? Não havendo a sensação de pecado pelo acto canibal, porque não comer os herbívoros ou mesmo os carnívoros do nosso planeta? Aos animais ninguém sentiria a falta e seriam mais fáceis de recolher e criar do que pessoas... E se a intenção é mesmo comer pessoas, por algum motivo inescrutável, porque escolher a Escócia ou outro país desenvolvido em que existem registos de nascimento, meios de vigilância, forças policiais consolidadas, que acabariam por descobrir padrões nos desaparecimentos das vítimas, e não outros países mais selvagens, mais populosos, cuja instabilidade social ou repressão política permitiriam que tais actos permanecessem impunes e desapercebidos? Questões como estas tornam-se empecilhos e bloqueiam o apreço da obra para o fã experiente no género. Dirão: «mas que grandes chatos!, para quê questionar o impossível, será que acreditam mesmo em ET’s e mudanças de pele e outras coisas infantis? Aceitar o ET é aceitar que se comporta de uma forma não humana, e por isso, é legítimo que tenha uma inclinação natural por escoceses à boleia... E de qualquer forma não é tudo metáfora?»

Bem, sim e não. Sim, no limite é tudo metáfora. Mas tem de ser uma metáfora bem articulada. Tem de ser convincente. Há que distinguir o fã que, com a sua longa dose de exposição a referências literárias e debates sobre os pressupostos do género, consegue abordar a obra com espírito crítico do leitor a quem a problemática se coloca pela primeira vez e é naturalmente incapaz de digeri-la enquanto lhe é apresentada. Ser-se específico é dar destaque às contradições e às inferências implausíveis, é dar o flanco ao inimigo.

Onde Faber é verborreico, Glazer é inteligentemente comedido. O filme tem o sabor de uma pequena lição de moral contada sem pressas. Permite-se a uma leitura abstracta e filosófica que se pode encaixar em muitas situações de uma vida normal. E como disse acima, é terno de uma forma desconcertante.

As histórias costumam ter uma porta de acesso emocional; sem esta, tornam-se frias, analíticas e decerto pouco populares (o que não significa que não possam ser obras-primas: Ballard e as suas fábulas das Vermillion Sands é o exemplo fácil). Pode ser uma personagem com quem o leitor se identifica, uma situação do dia-a-dia (já notaram que os filmes-catástrofe começam por apresentar a família dos protagonistas numa cena caseira, por exemplo, o pequeno-almoço, interagindo com energia mas em que se percebe o amor subjacente?), um momento na vida (como a morte de um familiar), ou outro qualquer truque que desperte a empatia. Uma história pode ter várias portas, em qualquer ponto do enredo, e diferentes leitores entrarão (e sairão, talvez) consoante a sensibilidade de cada um.

A minha porta de acesso para o filme foi a presença de Adam Pearson, o jovem autor com neurofibromatose que desperta o primeiro acto de compaixão (e rebeldia) da alienígena. É indubitavelmente o momento de epifania para o qual tudo converge, mas é também uma conversa subitamente íntima com alguém que (sabemos pelo que se escreveu na imprensa) está e não está a representar. Quatro ou cinco perguntas desconfortáveis sobre uma vida que não terá sido fácil em sociedade, e quebrou-se a quarta barreira: o filme fala connosco, directamente. Para não termos dúvidas, chama-nos a atenção – no plano aproximado das mãos de Pearson, que Johansson considera bonitas, e nos são apresentadas como tal, mãos singelas de uma pessoa normal sem deformidades, um plano que é desnecessário para efeitos da história mas indispensável para efeitos do percurso emocional da audiência. De súbito, o que parecia estilo de filmagem surge como necessidade. A mensagem perderia o sentido se, até ali, o digital tivesse sido usado com a displiscência de outros filmes. Mas a vida é crua e aleatória, fazendo de nós vítimas e carrascos de um jogo que castiga o íntimo através da pele. Somos corpo ou pensamento? O que somos nós? Quem está debaixo do aspecto de Scarlett Johansson? Dito assim, parece um filme de actores. Mas acaba por ser – como devia ser – o filme de toda a gente.

É um filme isento de defeitos, inconsistências? Creio que não. Estaríamos à espera de os alienígenas terem uma forma de comunicarem entre si, de justiça, de perdão, de segunda oportunidade. Afinal, o problema foi remediado – a vítima fugida acaba por ser capturada, e mais um desaparecimento (em particular, de quem não teria muitos amigos), no limite, iria obrigar o grupo a mudar de poiso. A fuga e o isolamento de Johansson, a procura desesperada do humano, a incompreensão do que é o amor e o perigo (aquele que a acolhe e tenta cuidar dela é dos poucos exemplos abonatórios do género masculino; os homens neste filme são reduzidos ao retrato de predadores sexuais, seja pelo aproveitamento de uma conquista fácil seja pelo acto da violação), tem uma leitura fácil de questionamento da identidade que argumentista e realizador intensificam mas que, pensada a frio pela perspectiva do alienígena, devia antes ser interpretada como uma doença do foro mental – quem nos consideraria saudáveis se andássemos pelos matadouros a tentar estabelecer contacto com o gado? Em grande medida, acaba por ser a convicção de Johansson naquele papel que nos transporta para o seu universo, contida nas emoções, fria e distante observadora, uma actuação auto-referencial sobre outra actuação. Excepto num momento, excepto num momento singelo que a compromete.

A extra-terrestre na demanda pelo ser humano não pode evitar a curiosidade que a impele e da qual se torna vítima. É curiosidade – e não amor – que a conduz à cama do homem que a acolheu. É curiosidade – e não desejo – o que procura satisfazer. E a curiosidade satisfaz-se, observando. Manteria os olhos bem abertos quando o homem se aproximou para o primeiro beijo.

Johansson fecha os olhos. As pálpebras tremem de expectativa. A extra-terrestre de repente age e sente como uma menina?

São mesmo muito chatos, os fãs de FC e as suas picuinhices...

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21 Janeiro 2014

Leituras de 2014 (5). «Division By Zero» de Ted Chiang. Lido em inglês.

Por muita advocacia do processo científico e da explicação objectiva do universo que a FC conduza em textos literários, há uma área em que se mostra tão avessa quanto a demais literatura: a matemática. 

Com esta afirmação não me refiro a textos que utilizem matemáticos como personagens (o caso de Shevek n’Os Despojados de Ursula Le Guin), que sustentem o enredo num efeito matemático (como o caso de «Andavam os Borogroves Desditosos» de Lewis Padgett com tradução de Dulce Helena da Silva) nem que descrevam a vivência comum num mundo que é uma «transposição» do nosso (sendo o caso mais conhecido o de Flatland – Uma Aventura em Muitas Dimensões de Edwin Abbott,  neste caso particular da tradução recente de Hélder Moura Pereira). 

Falo de textos que tenham a matemática por base do enredo, como um texto de Hard SF utilizaria o fenómeno das cordas ou as condições extremas da física nas redondezas de um espaço negro, e que produzam a sensação de maravilhoso estranhamento ao descreverem um fenómeno bizarro e contrário à nossa experiência mas possível dentro do nosso saber. Mesmo a Enciclopédia não é muito clara nesta distinção, além de, estranhamente, dar pouco destaque ao trabalho de Greg Egan, autor conhecido por encher o seu sítio Web de demonstrações visuais dos teoremas que utiliza na escrita.

Entra Ted Chiang, autor norte-americano de ascendência chinesa que granjou uma reputação invejável no género durante a passada década graças a duas peculiaridades: por um lado, a clareza de um raciocinio especulativo aplicada à exploração de conceitos extravagantes, em parte retirados do misticismo judaico-cristão (o fabrico de golens, a construção efectiva de uma Torre de Babel, a existência real de anjos); por outro, a escassez do que produz, limitando-se a ir publicando um ou dois contos por ano, contra o dilúvio de ficção que constantemente jorra das gráficas norte-americanas. Prova viva da falibilidade dos conselhos comerciais que constamente inundam os ouvidos dos pobres jovens autores, impelindo-os à saturação das redes sociais com os seus patéticos berros («estou aqui, estou AQUI! Porque é que NÃO ME LÊEM?! Buaaaá»).

Escasso e cativante. A prosa de Chiang está para o mercado da FC como o diamante está para o mercado das pedras preciosas. E como os diamantes, não está livre de defeitos nem apresenta sempre o mesmo nível de aquilatação.

O conto supra é ambíguo, se quisermos avaliá-lo. Alia uma pergunta extraordinária – e se fosse demonstrável que a matemática como um todo é inconsistente? – com uma exploração literária limitativa e incapaz de conter a grandiosidade da premissa.

A premissa não é fácil de explicar. Além da aritmética básica e de algumas noções de estatística, a matemática, enquanto problema intelectual, está ausente da nossa rotina, não obstante o cérebro (se saudável) continuamente efectuar os cálculos vectoriais que nos impedem de chocar contra objectos, pousá-los e apanhá-los com precisão, manter o corpo em equilíbro sustentado apenas em duas pernas, medir velocidades e distâncias a conduzir e a correr, e assim por diante. Temos uma vaga lembrança de equações e funções e sinalética como obstáculos no jogo do ensino oficial que é necessário contornar de forma a atingirmos o nível seguinte – e logo prontamente esquecidos. Mas reconhecemos a matemática como uma competência fundamental, com provas dadas, pela observação – as pontes não caem, os aviões chegam ao destino, os satélites mantêm-se em órbita, as duas metades de túneis submarinos em construção encontram-se a meio – e pela experiência – uma dúzia de ovos é uma dúzia, não se transforma de repente em seis ou oito ou zero sem, no mínimo, um descuido de quem os segura...

Assentar assim uma história sobre a extinção do formalismo e explicar a leigos as implicações deste acontecimento requer a educação da massa leitora.

Uma decisão muito complicada num género capaz de excomungar obras que sejam incapazes de diluir a pílula didática no líquido narrativo.

Chiang estrutura o conto em três continuidades cénicas: a da explicação, a do desenvolvimento da problemática científica, a dos efeitos no casamento e respectiva evolução emocional. Além disso, toma uma decisão ainda mais fundamental, a de ser breve.

Estas decisões expõem de forma clara o raciocínio autorial e demonstram como cada peça encaixa nos desafios intrínsecos à escrita de ficção (sobre) matemática.

1) Explicação: Chiang abre o texto com um parágrafo que nos demonstra de forma simples o que significa a divisão aritmética em termos formais, e em que medida a divisão por zero, que dá o titulo ao conto, desnuda um dos paradoxos fundamentais da matemática, pois conduz a um resultado contraditório com o próprio raciocínio e é capaz de derrubar um dos princípios sagrados, a da unicidade dos números. Um é igual a um, sabemo-lo, mas tal contradição permite argumentar que é igual a dois ou a qualquer outro número (mais pormenores), a não ser que se recorra ao artifício do «infinito», ou uma outra forma de dizer, «é melhor ignorar isto».

Exposição do problema com um conceito simples ilustrado pelo título. Enquanto exemplo para demonstrar, numa oficina de escrita criativa, como se pode abrir um texto de FC complexa, é quase perfeito.

Contudo, ainda não existe história. Para isso, precisamos de introduzir figuras, um local, uma época, um conflito - ingredientes básicos:

2) Conflito-base: o do cientista perante si mesmo. A protagonista, Renee, é uma matemática brilhante que, é-nos dito, desde tenra idade é bastante sensível aos padrões da composição do mundo – por outras palavras, a realidade, para ela, é demonstrável e descrita pela matemática. Nesta crença reside a beleza e a solidez da existência.

As a child of seven, while investigating the house of a relative, Renee had been spellbound at discovering the perfect squares in the smooth marble tiles of the floor. A single one, two rows of two, three rows of three, four rows of four: the tiles fit together in a square. Of course. No matter which side you looked at it from, it came out the same. And more than that, each square was bigger than the last by an odd number of tiles. It was an epiphany. The conclusion was necessary: it had a rightness to it, confirmed by the smooth, cool feel of the tiles. And the way the tiles were fitted together, with such incredibly fine lines where they met; she had shivered at the precision.

É uma sensação humana, compreensível. Mas ao mesmo tempo estranha para o ser humano «normal». Encantamo-nos com a harmonia de uma paisagem e a de uma música – encanto que deverá muito a um padrão calculatório subjacente – mas não a este ponto. O mundo é o que é, o que existe. Não requer decifração.

Obviamente, o cérebro do matemático pensará de forma diferente. Chiang tenta mostrar-nos, mas logo a seguir desfere o golpe: existe uma demonstração formal, inabalável, de que a matemática é um sistema que se auto-contradiz. De que 1=2, 1=3, um número qualquer é igual a outro número qualquer.

E Renee, para quem tal consistência é sagrada, é o veículo de tal descoberta. O que a vai destruir como pessoa.

3) o drama humano: Carl, marido de Renee, é uma pessoa «normal», que faz uma pergunta «normal»: a matemática que conhecemos é-nos útil de forma prática? Sim. Então, qual é o grande problema?
É a falta de sentido, diz ela.

“Now mathematics has absolutely nothing to do with reality. Never mind concepts like imaginaries or infinitesimals. Now goddamn integer addition has nothing to do with counting on your fingers. One and one will always get you two on your fingers, but on paper I can give you an infinite number of answers, and they're all equally valid, which means they're all equally invalid. I can write the most elegant theorem you've ever seen, and it won't mean any more than a nonsense equation.”

Para atingir os conceitos mais esotéricos da matemática, é preciso atravessar um território de premissas e pressupostos, assentes num formalismo. Mas os pressupostos têm uma tendência para se irem apoiando em outros pressupostos, como a estrutura de um prédio assenta em pilares ou o software aplicacional confia no sistema operativo. Se um dos pilares fundamentais racha... a casa vem abaixo.

Renee desfez a ilusão. O prédio ruiu. Podemos viver nas ruínas, mas não há beleza nem sentido.

Como transmitir tal desalento ao leitor? Chiang não o faz pela maestria da prosa; não tenta sequer mostrar-nos o que é conviver com esse conhecimento, dia após dia, a não ser pelas manifestações externas, e algo óbvias, de depressão e afastamento, que acabam por se transformar numa tentativa de suicídio. O marido dela está atento e salva-a; um sub-enredo explica-nos que também ele atentou contra a vida, é um sobrevivente das profundezas da alma. Das três sequências narrativas, é o drama humano – o ponto de vista de Carl, que é também a perspectiva do casamento – que impera no fim e que chega à seguinte conclusão: quem habita apenas o seu espaço mental afasta o mundo e afasta os outros e por conseguinte é incapaz de um relacionamento afectivo.

Um final invulgar para um conto que se dedica a uma argumentação científica. Que o desequilibra. Se houve um acumular de tensão a que o enredo terá dado prioridade, não foi o do casamento – este parece surgir como uma solução apressada perante a impossibilidade de a história fugir à pergunta inevitável do leitor: «pronto, a matemática não serve para nada, mas ainda funciona em termos práticos; e daí

Aqui se revela uma grande falácia dos hábitos de escrita – e também de leitura – da FC norte-americana.

A de que o conhecimento tem de ter consequências práticas e palpáveis no mundo extemporâneo.

Fica assim vedada a Chiang a abordagem (vulgar no mainstream) de sustentar na graça da prosa e na argumentação pormenorizada de um conflito interior as implicações filosóficas da história. Nada tinha de acontecer, além da descoberta em si – nada e, afinal, tudo. O olhar do matemático teria oferecido a sua própria apologia, a sua visão de um futuro sem sentido, de progresso arbitrário e frágil. Bem explorado, um terremoto íntimo pode ter maior interesse em termos literários do que o seu congénere físico.

O que teria um Lem feito com a ideia deste conto. Um Borges.

É bizarro observar que a FC é tão propícia à exploração de conceitos grandiosos e complexos como é limitativa...

Como um volumoso depósito de água que não se consegue vedar por completo.

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18 Janeiro 2014

Ver A Arte. Eis um modo incrivelmente simples e sublime:

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16 Janeiro 2014

Leituras de 2014 (4). «Young Zaphod Plays it Safe» (conto) de Douglas Adams. Em The Time Traveller's Almanac. Lido em inglês.

Eis um regresso muito apetecido ao universo de À Boleia pela Galáxia (privilegiando a tradução de António Vilaça na recente edição da Saída de Emergência), em que nos deparamos com uma incursão do Presidente galáctico Zaphod Beeblebrox enquanto ainda era um mero e reles colector de salvados de naves espaciais encalhadas. Acontece que a nave deste conto encalhou no fundo do oceano de um planeta famoso pelas suas lagostas, tão famoso que o piloto, descendente de antepassados provenientes daquela zona, não descansou enquanto não convenceu os camaradas a pousar e provar aqueles belos espécimes de quem tanto se falava – e falava e falava – na família... sem pensar na importância da sua missão, que consistia em despachar a nave contra um buraco negro pelo perigo e secretismo das armas a bordo... seriam umas senhoras lagostas, de facto!

Zaphod é contratado por burocratas que conhecem o verdadeiro conteúdo da nave (oficialmente transportaria «resíduos inofensivos»), os quais insistem em como foram seguidos todos os protocolos e normas de segurança, embora as evidências da nave encalhada – o casco destruído, o convés despedaçado – apontem para o contrário.

Aqui se percebe como o humor de Adams é de uma maestria subtil e destemida, sustentada no uso cuidado da linguagem e na delicadeza como apresenta a ideia, fazendo-nos envolver aos poucos, sem pressas, como se abrisse aos poucos um diafragma ocular sobre uma realidade complexa e desconcertante. À moda dos verdadeiros humoristas da palavra, evita a punch line e esforça-se por explicar o absurdo no contexto narrativo. Aliás, é precisamente por nunca pedir desculpas e insistir no elemento apresentado que consegue obter situações hilariantes, disfarçadas de enredo. Algo que traz bons resultados em meios verbais, como a rádio, mas que se transforma em desastre no cinema e na televisão – conforme já se pode comprovar.

Apetece fazer excertos do conto inteiro. Fica, contudo, aqui um dos mais cativantes, sobre a invenção das «varetas do aoristo» e de como toda a tecnologia tem efeitos secundários (hint, hint, nudge, nudge) perfeitamente plausíveis e humanos:

Aorist rods were devices used in a now happily abandoned form of energy production. When the hunt for new sources of energy had at one point got particularly frantic, one bright young chap suddenly spotted that one place which had never used up all its available energy was – the past. And with the sudden rush of blood to the head that such insights tend to induce, he invented a way of mining it that very same night, and within a year huge tracts of the past were being drained of all their energy and simply wasting away. [...] The past provided a very cheap, plentiful, and clean source of energy, there could always be a few Natural Past Reserves set up if anyone wanted to pay for their upkeep [...] It was only when it was realised that the present really was being impoverished, and that the reason for it was that those selfish plundering wastrel bastards up in the future were doing exactly the same thing, that everyone realised that every single aorist rod, and the terrible secret of how they were made, would have to be utterly and forever destroyed.

 

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15 Janeiro 2014

Leituras de 2014 (3). «Eu Canto o Corpo Eléctrico!» (conto, bib., tradução de Eurico da Fonseca de «I Sing the Body Electric!»), de Ray Bradbury. Em: A Última Cidade de Marte. Lido em inglês e português.

Um pai procura colmatar a morte prematura da esposa para os filhos pela oferta de um brinquedo novo: uma avó eléctrica! Conduzidos à cidade, entrando na loja de um italiano fabricante de marionetas (porque só se consideram como legítimos os fabricantes de marionetas que sejam italianos?), os miúdos têm de responder a perguntas e deixar provas das suas lembranças, numa sugestão de produto personalizado. E eis que passado o tempo suficiente (tudo funciona com ritmo e espaçamento perfeitamente ajustados às necessidades das crianças, neste mundo que só pode ser de fantasia), chega de helicóptero à casa rural a nova prenda, dentro de um pseudo-sarcófago, que se acciona por intermédio de uma chave, dada à mais pequenita pelo empregado da loja. A avó eléctrica é tudo e mais do que se espera, um andróide perfeitamente funcional que ajusta as feições e reacções a cada criança e nunca se intromete nas suas convicções nem contraria os seus desejos, procurando atraí-las e conduzi-las através do constante esforço de seduzir e agradar (é de ponderar se tal personagem assim subtraída às vontades infantis não acabaria por criar um bando de fedelhos mimados?). A avó eléctrica tem as respostas para tudo, e muito articuladas e filosóficas que são, um perfeito exemplo de inteligência artificial em movimento – como teria um fabricante de brinquedos atingido tal competência cibernética e porque motivos continuaria a fabricar brinquedos, ao invés de se tornar o primeiro multimilionário da indústria robótica, é algo que não chega sequer a ser questionado; talvez se explique no facto de ser italiano?...

Bem, e a avó eléctrica fala pelos cotovelos, dando lições filosóficas sobre a natureza das máquinas e da tecnologia. O que não deixa de ser interessante. Até ao ponto de, quando as crianças ficam suficientemente crescidas, ela anunciar que vai retornar à loja (então não tinha sido comprada? Veio em regime de aluguer? Isso não nos tinha sido dito) e submeter-se às vontades do fabricante: ir para uma nova casa, ser desmontada para se aproveitarem as peças, etc. O que perturba os putos, naturalmente. Eis que, num elegante volte-face de salvação, a avó anuncia que, por uma módica prestação mensal, será remetida a um lar onde passará os anos a conversar com as outras avós eléctricas até ao momento em que os miúdos, já crescidos, precisem dela para os próprios filhos, ou, quando velhotes e regressados a uma débil infantilidade, requeiram os seus serviços de assistente, presumivelmente para mudar arrastadeiras ou esfregar no banho as peles caídas...

Sim, é complicado aceitar um mundo em que tal proposta não fosse respondida com uma gargalhada jocosa, passados os cinco segundos de reflexão financeira. Mas no sonhador mundo de Bradbury ninguém sabe fazer contas...

Não é que se trate de um conto lamechas. O autor tem a devida competência como prosador para salvar cada cena individualmente de se tornar ridícula. Infelizmente, o nível de ingenuidade que despeja sobre o cenário e as personagens acaba por transbordar para além da reduzida margem concedida por um qualquer leitor que pertença ao mundo real e entenda como funcionam as pessoas – sejam crianças ou adultos – e o progresso – que não inventa a inteligência artificial para o bem-estar das famílias sem antes a aplicar, de forma ubíqua e exaustiva, nos principais processos industriais e militares.

Pode haver um nível de encantamento no mundo de Bradbury mas é maior o nível de perigo – pois tamanha ingenuidade é capaz de cegar multidões, dando lugar e poder àquele com o proverbial olho aberto... Dêem-me a escolher e entrarei no mundo atento e desconfiado dez vezes em cada dez.

(Quanto à tradução, opinarei em foro próprio, deixando apenas uma nota de que seria, a meu ver, mais apropriado indicar «Louvo o corpo eléctrico!» como versão portuguesa do título, uma vez que se trata, afinal, de uma citação de Whitman; a edição posterior da Europa-América conseguiu ser ainda apresentar-se mais afastada do sentido e da poética do verso...)

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14 Janeiro 2014

Outras Leituras (1). Crítica publicada no Caderno Literário InDica, n.º 0, 2013.

«Havia em mim um impulso incendiário, uma voracidade para engolir tudo, uma incapacidade para a paz, para o silêncio e para os dias comuns», confessa-nos em jeito de promessa a abertura de Enquanto Lisboa Arde, o Rio de Janeiro Pega Fogo, terceiro romance do jornalista português Hugo Gonçalves. Quem fala é o protagonista: assessor político desempregado que (europeu em tempos de crise) aceitou trabalhar com gente de má fé e que (romântico com tendências literárias) aceitou os avanços da mulher do chefe. Resultado? A inevitável fuga para o Rio de Janeiro.

Traz o Homem dentro de si as sementes da sua destruição? Esta parece ser a crença da estória: não tarda até que o protagonista se perca numa bruma de maconha e mulheres, de amigos ambíguos e missões duvidosas. Ainda que seja no Rio, e muito especificamente, na geografia, nos sons e cores da Cidade Maravilhosa, que se encontra, a si mesmo e a Margot, paixão consumida de carne e alma que faz tanger as cordas da prosa como se fosse violão de rua. É no estilo – vibrante, alucinado, incansável, veloz – que está a grande força do romance. Gonçalves leu os autores do século XX, tece uma prosa que sabe, ora a poesia ora a delírio.

Mas é também um livro de enganos, pois apresenta-se como um relato pessoal do fim do mundo. Este mundo é o Portugal moderno, composto e vestido pelos fundos europeus que, durante quase duas décadas, sustentaram o estilo de vida das gerações saídas do 25 de Abril. Portugal amordaçado pelo défice, pela austeridade e pelo desemprego das classes educadas que esperavam passar incólumes; forçado a emigrar, como a geração iletrada dos anos 60, mas tão diferente desta.

A diáspora, vista pelo marketing da editora, é outra: conta Gonçalves nas entrevistas que, embora com planos de partir para o Brasil, foi despedido do jornal em que trabalhava e chegou à terra prometida com a precariedade de tantos outros compatriotas. O relato pessoal em breve se torna fantasia, ao envolver o rol quase mandatório de figuras da recente memória portuguesa (temos o ex-PIDE, o ex-refugiado do Holocausto, o sobrevivente de Abril, o filho do papá rico), verdadeiro mostruário de defeitos sociais, como se o Rio fosse, ao mesmo tempo, foz e âmbar cristalizado dos últimos quarenta anos de História de Portugal. A reflexão que prometia ser profunda, inovadora e desconcertante, limita-se a repetir os mesmos argumentos dos média e dos cafés, embora com ocasional ironia. E até o romance é interrompido por frequentes notas de rodapé em estilo jornalístico, explicando pormenores da vida e História brasileiras ao leitor luso, como se incerto da sua verdadeira natureza.

No final, representa menos o mergulho de um expatriado na estranheza de outra cultura, outro clima e outra forma de falar a mesma língua, e mais a sua passagem pelos contornos da superficie, com a mandatória visita ao Leblon e à favela, ícones sociais que aparentemente é impossivel desassociar da ideia do Rio de Janeiro. O autor não é ingénuo a ponto de crer em explicações fáceis, pelo que coloca vários personagens locais a alertar-nos que nem tudo o que se pensa da cidade reflete o que realmente é. Contudo, não deixam de ser conversas alheias, entrevistas, e deixa a sensação de um livro que podia ter sido um mergulho mas fica-se pelo surf.

Ainda assim, um surf de mestre. Recomendado.

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