Exposição Prolongada à Ficção Científica  

   um blog de Luís Filipe Silva


05 Março 2016

Uma Questão Pertinente. Por exemplo:

One implication of rocket propulsion is that there will be relatively long periods during which Newtonian physics govern the motions of dogfighting spacecraft, punctuated by relatively short periods of maneuvering. Another is that combat in orbit would be very different from combat in "deep space," which is what you probably think of as how space combat should be – where a spacecraft thrusts one way, and then keeps going that way forever. No, around a planet, the tactical advantage in a battle would be determined by orbit dynamics: which ship is in a lower (and faster) orbit than which; who has a circular orbit and who has gone for an ellipse; relative rendezvous trajectories that look like winding spirals rather than straight lines.

A verdade é que todas estas considerações acabam por ser demoradas e dispendiosas, como qualquer combate com tropas no terreno. É bastante mais simples encaminhar uma série de asteróides massivos contra o planeta-mãe para destruir a civilização e a ecologia e aguardar que os soldados inimigos em órbita enfraqueçam ou morram pela falta de recursos orgânicos. Os asteróides são arautos perfeitos da destruição: implacáveis pela força bruta da mecânica celeste, inamovíveis sem tecnologia e energia adequadas, e indestrutíveis para todos os efeitos pois, se lançados em número suficiente, uma percentagem devastadora acabará por atravessar qualquer defesa que seja montada. Além de constituirem uma perfeita arma de guerra psicológica, cavaleiros do dia do Juízo Final. Vêm as possibilidades dramáticas? E ainda se diz mal do genocídio...

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28 Outubro 2015

Há Males Que Vêem Por Bem.  O anúncio de mais um capítulo na saga infantil Guerra das Estrelas (que mais adequadamente se devia ter vertido em «Guerra nas Estrelas») faz rodar por instantes o foco do projector na direcção de um género literário, ora incompreendido ora (é bom admitir) auto-inconsistente, mas (berre-se a todo o vapor) em crescente e lamentável ausência dos escaparates físicos e virtuais dos pontos de venda e dos catálogos editoriais (os quais revelam uma crise de afirmação ainda mais profunda do que a do país nos últimos anos). O foco do projector roda e ilumina textos como este - que, em defesa e enaltecimento da jornalista, procura ser educativo, abrangente e cativante, permeado de hiperligações para autores e obras que, acabamos por descobrir, não se encontram traduzidos para a mátria língua (lamente-se um pouco mais a dita ausência). De nossa parte fica o alerta do João Seixas, que «de ficção cientifica, Star Wars tem pouco», o que já é ser generoso. O que teve (e tem) foi uma capacidade de visualização dos temas familiares da literatura em causa, que sem dúvida impressionam (e impressionaram) as mentes mais jovens - em ecrãs gigantes, muito antes do 3D e dos sistemas Dolby Surround, quando era preciso avisar os pais a partir de telefones fixos de que íamos ao cinema e andar com uma biblioteca no bolso era uma ideia insana que nenhum futurista sério se atreveria a propor publicamente. Outros tempos pedem outras tecnologias, e não há blockbuster sem CGI nem lançamento sem respectiva nuvem de apps e outros artefactos informáticos e honras (pagas, desconfiamos) de telejornal. A nossa proposta é simples: não voltem para casa logo após a festa. A verdadeira descoberta começa depois.

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01 Agosto 2015

Desvendar um projecto novo. Porque, como se não bastasse o desafio de incentivar a escrita do género Fantástico (cá na casa, preferimos a variante científica e democrática, que de magos embirrentos já estamos fartos), lembrámo-nos de juntar aquele erotismo que vai além de fricções e misturas. Para desnudar aqui e acompanhar com particular atenção estes presentes e futuros ensinamentos.

Eros. Eros move a existência. Eros é aquele que procura o futuro, negando a morte, revoltando-se contra o império do oblívio, da decadência e do fim. Eros adorna os gestos e intenções sublimadas. Eros sustenta cada propósito individual e colectivo. Eros é um mar que invisivelmente cobre e enche os outros mares que nos conduzem. Eros está em cada pessoa e também em nenhuma. Eros não existe, excepto quando se deixa ver. Eros é, afinal, a contradição de si mesmo. Eros, procurando a vida, necessita do fim. Do fim breve e curto, sendo Eros eterno e perene, brilhando em paixão lenta mas consumindo-se numa explosão finita. Eros é o sexo e a promessa do sexo e a negação do sexo. Eros precisa do esquecimento para sobreviver, e revoltando-se, como se revolta, contra a decadência, também nela encontra sustento.  Eros é sobrevivente exímio, predador e presa, paradoxo completo que se manifesta no colectivo, desde que seja um colectivo feito de indivíduos.

Eros não habita os animais. Eros não habita o animal que habita o humano. Eros é uma função narrativa, efeito secundário das histórias, sombra das curvas matemáticas, a volúpia das palavras escolhidas a preceito que se destinam a evocá-lo. Eros, deus-demónio-mor, não se digna aparecer sem o devido encantamento. Sem os ritmos lânguidos ou o pavor excitante ou o canto doce e suave do porto seguro. Eros despe-nos de máscaras sem garantia de devolvê-las – logo ele, Eros, que é mestre dos disfarces:

Eros Anunciata
A virgindade que se anseia perder. O amante longínquo que não telefona, que pertence a outra pessoa, que hesita. Aquele e aquilo que nos faz sonhar. O prazer que há-de vir e quebrar a monotonia. A promessa de uma aventura, com todos os seus perigos. O segredo em tudo isto. O amor que é só nosso, intenso e luminoso como o sol do meio-dia numa vida cheia de nuvens. Os amantes que se escondem do regime opressivo, do Estado, dos pais, da norma. Pensar no êxtase jovem, em crescimento, que pode habitar pele velha. Tudo é positivo e possível, a este Eros. Tudo é romance.

Eros Asfixia
Este é o Eros das relações sufocantes. Dos maridos abusivos, dos pais dominadores, do parceiro que castra, espezinha, ridiculariza, destroi sem consentimento. O Eros das violações, da imposição pela força, da violência insana, da subjugação interminável, da escravatura pelos Antigos, da perda do eu ao encontro do nada. E não acaba, não acaba, não acaba...

Eros Continuum
Não tem fim nem começo porque é o Eros do mundo quântico, que une partículas e as repele, forma estruturas complexas, dá alento a tudo o que se conhece. Eis o Eros que sustenta feitos grandes por heróis pequenos, que ama e que despreza, que canta e encanta e se desencanta, voando entre paixão e amor e flirt. Quebra corações por onde passa, sempre com o olhar na próxima conquista, impulsionado pela insatisfação como quem, caindo, dobra as pernas em preparo do pulo seguinte. Faz amor antecipando a próxima vez em que fará amor. Repete palavras sedutoras em jeito de ensaio permanente para o grande espectáculo que nunca mais chega. Este Eros apenas se deixa aprisionar por uma força maior do que ele. Um feito tão improvável que, quando acontece, origina ondas de choque que trespassam as eras e fica marcado na História.

Eros Extravaganza
Não se consegue saciar este Eros. Não se consegue aplacá-lo com raças, cores, texturas, fisionomias, contornos. Prometendo-se diversidade, quer o específico. Oferecendo-se o específico, procura o volátil. Tenta o prazer e a dor, o carnal e o imaterial, a segurança do familiar e a ansiedade do desconhecido. Vive pelo prazer e para o prazer, não o absoluto, mas o concreto, o que fica na memória, o que se testemunha, o que deixa marcas na pele. Angustia-se e escreve memórias sobre a sua angústia enquanto planeia conciliar encontros com diferentes amantes. Atrai-o quem lhe oferece a diferença, aquilo que lhe falta experimentar, o que tem ainda de descobrir em si mesmo. Há uma grande dose de onanismo em si, mas até de si se enfada rapidamente.

Eros Imprimatur
O Eros da aceitação social, colectivo, público. O Eros do casal, e o que o casal faz, todos vêem. O que lhe acontece, todos discutem. É o Eros do noivado, do casamento, dos filhos, da casa suburbana, do emprego de escritório, da crise de meia-idade, das esperadas mas pequenas traições. O Eros da glória e do enfado, construido com escolhas e esforço, uma vida na posição do missionário. O mais pacífico e, nos momentos inesperados, o mais explosivo.

Eros Vulgaris
Este Eros anuncia-se à distância. Vem de chinelos nos pés e charuto na boca, a berrar conquistas e suar de insegurança, alto, vibrante de energia e coberto de caracóis na peitaça, enquanto crianças e cães correm e riem ao seu redor. Livre de mal-entendidos e concepções fantasiosas, tem pele translúcida que tudo deixa ver, ambições limitadas mas bem definidas, e, quando joga, calha-lhe sempre a mesma cartada. Seguramente que nunca protagonizou os teus sonhos amorosos, mas, de quando em vez, em ocasiões bem determinadas, é desta leveza que precisas. Mas ai de ti se te faltar coragem ou lucidez, pois acordarás quarenta anos depois com ele, ainda, sempre, ao teu lado.

Eros Transcendentia
O amor sem agentes, sem falas nem protagonistas, longe de audiências, que não precisa de palco nem cortinas nem da ajuda do ponto. O amor sem carne nem figura, nem tempo, nem local. O amor tão puro e impossível de alcançar, porque começa e termina em si mesmo, em puro sentimento, em abstracção alquímica. O amor autista por não precisar do Outro. O amor auto-fágico. Eis o Eros mais raro de todos, de mais breve existência, e também o mais valioso. Anos de preliminares não garantem o seu aparecimento. É preciso transpôr o Além, abnegar-se do familiar e do preconceito, esquecer o humano. Deus brinca às escondidas connosco, fugindo do nosso olhar e compreensão a vida inteira, excepto durante um breve segundo, não anunciado, inesperado, em que se mostra. Um segundo rápido que logo se esvai. Em que estaremos distraídos. Em que o impuro estará distraído. Mas vê-l’O, vê-l’O!... há-de compensar o sacrifício de tanta dedicação.

Até 31 de Dezembro.

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15 Julho 2015

Sim. 

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06 Janeiro 2015

O Grande Irmão do Grande Irmão é aquele de que ninguém se lembra. É aquele que aparece de mansinho e se encosta a um canto de braços cruzados, empurrando os óculos demasiado largos e demasiado grandes contra a cana do nariz, expondo as favolas de coelho num sorriso de desconforto mal oculto pelo bigode ralo e pubescente enquanto coça, comprometido, as borbulhas do acne. Passa pela vista de quem rodopia na pista de dança, causa estranheza ao pessoal da festa, provoca comentários jocosos ou de comiseração, atrai a antipatia dos predadores de fraqueza. Ninguém lhe dá importância, e certamente que não o consideram ameaça. Ameaça é aquele que chega de olhar feroz, que não admite críticas nem comportamentos individualistas, que estabelece normas e modas e temas. É aquele que impõe ao espaço em redor uma imagem de si mesmo. É o que absolutamente nega o Outro. Ao redor dele, calam-se as conversas, desaparecerem sorrisos e graças. A música tem de ser aprovada por ele e os passos seguirão um manual de decência. O Grande Irmão atravessa o espaço da festa com passos calmos e vem colocar-se ao lado do seu Grande Irmão. Não se temem, ainda que se respeitem. São aliados. O primeiro precisa da antipatia e do ressentimento violentos que fermentam no espírito do segundo; este, por sua vez, precisa da força e da brutalidade que o primeiro lhe oferece. São imparáveis, em conjunto. São doenças diferentes que formam uma combinação fatal, o vírus mais o cancro. O que ataca de frente e o que corroi por dentro. Mas reconhecê-los é difícil. E difícil é entender quando agem em conjunto, quando nem sempre eles próprios reconhecem o papel que virão a desempenhar. Um pode chegar antes do outro. E vestir pele de cordeiro, balir, misturar-se no rebanho e acreditar, piamente, que o faz para o nosso bem:

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14 Dezembro 2014

Leituras. Comentários sobre livros recentes (repletos de parêntesis):

Eu Mato Gigantes, de Joe Kelly e J. M. Ken Niimura, lançado pela Kingpin Books, que opta pela estranha opção de um título bilíngue na capa, embora o miolo se encontre em português europeu. Necessidade de chamar a atenção a um público seguidor dos lançamentos e destaques internacionais? Bem, felizmente tais pormenores não comprometem uma história de crescimento e descoberta adolescente, contada a preto-e-branco com um traço económico inspirado em (mas não totalmente fiel a) estilos manga. Barbara, a rapariga cujas bizarras bóinas (?) com orelhas de coelho narrativa e personagens secundárias aceitam sem questionar, mais corajosa que a sua esquálida figura faria supor, com resposta pronta na língua (e ausência de bofetadas correctivas, o que nos indica estarmos perante uma «educação moderna»), anda pela escola a berrar a colegas e professores que mata gigantes, uma afirmação arrojada que não se ouvia na banda desenhada nem na animação desde os tempos da Disney.

A verdade é que gigantes parecem existir na sua vida, em particular aquele que vive no andar de cima (a classe média americana, recorde-se, não habita em apartamentos como os europeus) e de quem não se fala – e tão pouco dele se fala que as legendas saem riscadas (é um efeito minimalista mas eficaz). Barbara, tratando-se de uma adolescente mestre em jogos de tabuleiro (também aqui encontramos uma possível leitura de intervenção contra os estereótipos femininos na BD), vai passar pelos inevitáveis contratempos de integração social e bullying (nada mais cativa os geeks do que descreverem-se como vítimas, mas fica a pergunta: e isto não é também um estereótipo?), ao que não ajuda o seu conhecimento enciclopédico sobre gigantes.

Os autores conseguem estabelecer um clima de mistério e revelação gradual muito eficaz, em grande medida ajudado pela sugestão de um terror inominável que coexiste com a placidez de uma terreola de província e é capaz de suplantar o abuso diário, físico e emocional, que recebe dos seus conterrâneos. Barbara não é rapariga para se assustar facilmente, pelo que aquilo capaz de assustá-la se torna verdadeiramente perturbante no contexto da narrativa. É assim uma pena que o momento de revelação opte por uma interpretação simbólica desse terror e o inscreva numa circunstância de vida (nem por isso menos atemorizante, mas já fora do reino do Fantástico) comum a quem é ou foi filho. O acto final perde força, e só o carisma de Barbara, por quem nos afeiçoámos nos dois primeiros terços, é realmente o motivo para termos continuado (pois queremos saber se vai acabar bem).

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21 Junho 2014

Nesta era de minuciosa consubstanciação do imaginário, capaz de sobrepor actores de carne e osso (ou pele e osso, em alguns casos graves) com colegas digitais e ampliar cenários minimalistas para vistas amplas e inexistentes, verdadeira utopia do espectáculo que nem o mais optimista dos fãs conseguiria, há duas décadas e picos, antever com voz e pés firmes sem vacilar na dúvida do exequível, há quem denuncie uma sensação de cansaço, de saturação, de ennui (puxando ao snobismo) pela ubiquidade das ditas ICC (imagens-criadas-por-computador, se o tuga não desdenhasse dos acrónimos vertidos na [que devia ser] sua fala) em tudo o que é cinema de género ou não-género, sacrificando enredos e subtilezas à perfeição pixilada, apontando holofotes ao que outrora se manteria na sombra e enchendo os planos de extras mais convincentes e controláveis que os de Griffith (embora custem praticamente o mesmo por cabeça).

A decisão artística já foi ultrapassada pela comercial: os cifrões ditam que é preferível sobrepor recortes no computador e despachar a coisa no estúdio do que levar a equipa toda em viagem para filmar em locais remotos. Mas, obrigados a contracenar com marcações visuais em palcos minimalistas forrados a verde, os actores decerto que começam a sentir que não passam de figuras secundárias e verdadeiros empecilhos para o grande cabeça de cartaz: o digital. Talvez descubram que são o próximo alvo a abater, quando a tecnologia avançar e as multidões acolham com fervor as primeiras celebridades virtuais (o que, creio, apenas depende da capacidade de produzir rostos e expressões complexas e convincentes em tempo real). O filme Gravidade é revelador, nesse aspecto, mas pelo oposto – recebeu louvores pelo virtuosismo técnico como se representasse o último grito de um cinema moderno, quando esse virtuosismo derivou exclusivamente da necessidade de casar a actuação física com cenários computadorizados. O “making off” revela os níveis de energia dispendidos por actores e equipa ao adequarem as contorções de corpo, iluminação e câmara à ditadura da composição digital – energia que, dizem as boas práticas e a história do cinema, devia ser melhor dispendida a obter a excelência da narrativa e dos desempenhos. Mas Gravidade é o último dos moicanos, o fim da raça. Como exemplo de um possível futuro imediato do cinema, escolheria Avatar, não obstante a abordagem ainda tímida e conservadora. Nele se antevê um tempo em que as figuras virtual e a física de um actor serão indistinguíveis ao nível do pormenor. Em que actuações imperfeitas serão “emendadas” na pós-produção para lhes dar mais intensidade, mais realismo, ou para mudar os diálogos, os manerismos, os penteados, a roupa. No limite, vai ser possível interpretar a Guerra dos Tronos em cuecas e barba por fazer, sabendo-se que o produto final incluirá as devidas armaduras e fatos de época numa paisagem medieval. Vai ser possível mudar o movimento da boca e lábios para combinar com a dobragem e consoante o idioma. Finalmente, teremos os actores compósitos, que resultam da combinação das melhores características de vários performers – aproveita-se a cara de um, as mãos de outro, o tronco de um terceiro, a articulação sonora de um quarto, o andar de um atleta, o dançar de um bailarino, e monta-se uma figura que reune o melhor do grupo. Onde estará aqui a autoria? A veracidade? O individualismo? Será que sequer lhes sentimos falta?

O que uma geração estranha, a outra entranha. Este cinema novo não será o nosso, mas crianças ainda por nascer irão acolhe-lo com toda a naturalidade. Não vai demorar até que o virtual se intrometa no real, e vice-versa, a ponto de comprometerem uma separação.

Isto não significa que o cinema filmado, ou uma variante, desapareça. A História deu suficientes provas de que a tecnologia funciona por acumulação – não foi por fabricarmos carros que não há carroças, mas sim e apenas porque o rácio eficiência/custo é substancialmente melhor. O uso de actores, cenários e formas tradicionais de filmagem irão manter-se para os extremos da equação, para os nichos: filmes de autor, filmes de iniciantes. Mas estes não pagam as contas dos estúdios, que subsiste pela faixa de cinema a metro, onde se enquadram as aventuras, as comédias românticas, os policiais bem-comportadinhos, as adaptações de livros famosos, o cinema de massas, e que acolherá de braços abertos a nova forma de fazer bem e barato. It’s only and always about the money, boys and girls. Nada apraz mais um investidor do que garantias de resultado; e a garantia é tanto maior quanto menor for o nível de mão-de-obra. Veja-se: é inviável reunir elencos para voltar a filmar cenas que não ficaram bem, ou mesmo o filme inteiro, trocar o sexo ou raça de um personagem, mudar diálogos após as primeiras exibições... se o filme for inteiramente digital, não só a possibilidade surge como se tornará cada vez mais barato poder optar.

Tendo esta perspectiva em mente, é possível encarar Debaixo da Pele como um exemplo antecipado desse cinema de nicho, minimalista e saturado de realidade, como se, de algum modo, tivesse viajado para o passado de modo a dar origem à tendência em que se irá enquadrar.

(Sim, afinal o propósto do texto é falar da obra realizada por Jonatham Glazer.)

Antes de apreciar a originalidade do filme, é preciso entender que nada tem de original. Os anos 70 foram ricos em experimentalismo narrativo no cinema (os paralelos com Nicolas Roeg são óbvios e referidos por diversos criticos, e aqui acrescentaria Antonioni e Polanski, embora com ressalvas) ao qual este filme presta homenagem nas sequências iniciais, que a ignorância classifica como abstractas mas cujo significado, após uma ponderação retrospectiva, permite revelar como essencialmente concretas: retrata alguém que nasce, alguém que se adapta, alguém que aprende a falar, alguém que se transforma. Desde o início que a realização se mostra desconfortável e distante. Ao invés de começar com uma voz off acolhedora, à la Blade Runner original, qual comandante de avião que nos assegura de um vôo estável, somos precipitados numa queda vertiginosa, sem piloto nem controlo. Iremos embater na terra e morrer, ou entrámos em órbita segura? Não há forma de saber sem chegar ao fim, e chegar ao fim é deixar de saber, para sempre.

A desorientação é, no entanto, ilusória. Nós – filme e audiência – somos filhos da mesma geração. Não podemos impedir de trazer expectativas e modos de leitura no bolso, quando entramos na sala, e não podemos fazer com que se calem nos momentos de pânico. O truque de Glazer é, aqui, encher-nos de mundano, saturar-nos de realidade, de sequências que parecem oportunas e não planeadas, de actores que não são actores nem se apercebem que entraram num mundo fictício, em sublime aderência ao cinema verité, para, quando surgir o elemento Fantástico, este se revele como estranho e anti-natural, produto de uma manipulação visual que é, e sempre devia ser, considerada intrusiva. Graças a esta saturação, torna-se possível entender as sequências da sala escura, em que as vítima são «absorvidas» com um rigor novamente minimalista, como metáfora mas também como acção de tecnologia avançada, alienígena – precisamente a dualidade de leitura que distingue a Ficção Científica quando conceptualmente bem feita.

A verdadeira originalidade do filme não está realmente na estrutura nem na abordagem, mas na confiança extrema que deposita na audiência. É um pulo de fé por parte de realizador, argumentista actores e produtores que vai contra a grande maioria... não, direi contra todo o cinema de género. Confiança numa perícia de entendimento das pistas narrativas só possível a uma geração nutrida em massivas doses diárias de ficção televisiva. Confiança de que, embora desprovido das setas indicadoras e dos sinais de aviso a que está habituado, o espectador consiga orientar-se a tempo de apreciar a história. E é uma história surpreendemente terna.

Neste ponto, convém explicar que a minha leitura não foi inocente. Cheguei ao filme com o conhecimento pleno de Debaixo da Pele, a obra de Michel Faber que a Difel editou em 2001 com tradução de António Pescada, e da qual me queixei profusamente numa resenção publicada no suplemento DNA (do Diário de Notícias). Em causa estava o enquadramento numa tradição de Ficção Científica, a do extra-terrestre entre nós, invisível e nocivo (outras variantes apresentam-no alternadamente como visível e/ou benéfico). Este extra-terrestre cultivava artificialmente o nosso aspecto, em particular o de uma condutora boazona que percorria as desoladas estradas da Escócia a fazer vítimas dos penduras a que ia dando boleia. Qual o propósito? Engordá-los em cativeiro e despachá-los para o planeta natal como deliciosas iguarias. A premissa não é inédita: nos anos 50, Damon Knight escreveu um conto que seria adaptado para um episódio da Qunta Dimensão e assim ficaria famoso: alienígenas avançados surgem na Terra na posse de um curioso livro intitulado «To Serve Man», e cuja interpretação imediata pelas populações ignorou que «servir» pode ter dois sentidos muito distintos... É obviamente uma sátira que revela o quão predispostos estamos a fazer leituras preconceituosas de situações que podem esconder um foro muito diferente. E como sátira, funciona: é curta, é mordaz, é divertida. Precisamente o que o livro de Faber não é. A ironia dilui-se no monólogo interior da condutora alienígena que se queixa das operações a que foi submetida para se parecer com um ser humano e na crescente resistência em continuar a actividade predadora; na pormenorização dos encontros, das boleias, do que acontece às vítimas. A visão perturbante da pele, do visível, do físico, como principal meio de inclusão e exclusão, que o filme explora com destreza, é aflorada mas acaba por esvaír-se no meio das outras preocupações e distrações. Faber percebe correctamente que um romance não subsiste num único conceito e enche-o com a variedade necessária para cumprir o mínimo de páginas, e contudo devia ter-se ficado pelo conto. Porque o problema é este: a leitura da Ficção Científica impele ao questionamento dos pressupostos. O que há na carne humana que possa interessar a extra-terrestres? Não havendo a sensação de pecado pelo acto canibal, porque não comer os herbívoros ou mesmo os carnívoros do nosso planeta? Aos animais ninguém sentiria a falta e seriam mais fáceis de recolher e criar do que pessoas... E se a intenção é mesmo comer pessoas, por algum motivo inescrutável, porque escolher a Escócia ou outro país desenvolvido em que existem registos de nascimento, meios de vigilância, forças policiais consolidadas, que acabariam por descobrir padrões nos desaparecimentos das vítimas, e não outros países mais selvagens, mais populosos, cuja instabilidade social ou repressão política permitiriam que tais actos permanecessem impunes e desapercebidos? Questões como estas tornam-se empecilhos e bloqueiam o apreço da obra para o fã experiente no género. Dirão: «mas que grandes chatos!, para quê questionar o impossível, será que acreditam mesmo em ET’s e mudanças de pele e outras coisas infantis? Aceitar o ET é aceitar que se comporta de uma forma não humana, e por isso, é legítimo que tenha uma inclinação natural por escoceses à boleia... E de qualquer forma não é tudo metáfora?»

Bem, sim e não. Sim, no limite é tudo metáfora. Mas tem de ser uma metáfora bem articulada. Tem de ser convincente. Há que distinguir o fã que, com a sua longa dose de exposição a referências literárias e debates sobre os pressupostos do género, consegue abordar a obra com espírito crítico do leitor a quem a problemática se coloca pela primeira vez e é naturalmente incapaz de digeri-la enquanto lhe é apresentada. Ser-se específico é dar destaque às contradições e às inferências implausíveis, é dar o flanco ao inimigo.

Onde Faber é verborreico, Glazer é inteligentemente comedido. O filme tem o sabor de uma pequena lição de moral contada sem pressas. Permite-se a uma leitura abstracta e filosófica que se pode encaixar em muitas situações de uma vida normal. E como disse acima, é terno de uma forma desconcertante.

As histórias costumam ter uma porta de acesso emocional; sem esta, tornam-se frias, analíticas e decerto pouco populares (o que não significa que não possam ser obras-primas: Ballard e as suas fábulas das Vermillion Sands é o exemplo fácil). Pode ser uma personagem com quem o leitor se identifica, uma situação do dia-a-dia (já notaram que os filmes-catástrofe começam por apresentar a família dos protagonistas numa cena caseira, por exemplo, o pequeno-almoço, interagindo com energia mas em que se percebe o amor subjacente?), um momento na vida (como a morte de um familiar), ou outro qualquer truque que desperte a empatia. Uma história pode ter várias portas, em qualquer ponto do enredo, e diferentes leitores entrarão (e sairão, talvez) consoante a sensibilidade de cada um.

A minha porta de acesso para o filme foi a presença de Adam Pearson, o jovem autor com neurofibromatose que desperta o primeiro acto de compaixão (e rebeldia) da alienígena. É indubitavelmente o momento de epifania para o qual tudo converge, mas é também uma conversa subitamente íntima com alguém que (sabemos pelo que se escreveu na imprensa) está e não está a representar. Quatro ou cinco perguntas desconfortáveis sobre uma vida que não terá sido fácil em sociedade, e quebrou-se a quarta barreira: o filme fala connosco, directamente. Para não termos dúvidas, chama-nos a atenção – no plano aproximado das mãos de Pearson, que Johansson considera bonitas, e nos são apresentadas como tal, mãos singelas de uma pessoa normal sem deformidades, um plano que é desnecessário para efeitos da história mas indispensável para efeitos do percurso emocional da audiência. De súbito, o que parecia estilo de filmagem surge como necessidade. A mensagem perderia o sentido se, até ali, o digital tivesse sido usado com a displiscência de outros filmes. Mas a vida é crua e aleatória, fazendo de nós vítimas e carrascos de um jogo que castiga o íntimo através da pele. Somos corpo ou pensamento? O que somos nós? Quem está debaixo do aspecto de Scarlett Johansson? Dito assim, parece um filme de actores. Mas acaba por ser – como devia ser – o filme de toda a gente.

É um filme isento de defeitos, inconsistências? Creio que não. Estaríamos à espera de os alienígenas terem uma forma de comunicarem entre si, de justiça, de perdão, de segunda oportunidade. Afinal, o problema foi remediado – a vítima fugida acaba por ser capturada, e mais um desaparecimento (em particular, de quem não teria muitos amigos), no limite, iria obrigar o grupo a mudar de poiso. A fuga e o isolamento de Johansson, a procura desesperada do humano, a incompreensão do que é o amor e o perigo (aquele que a acolhe e tenta cuidar dela é dos poucos exemplos abonatórios do género masculino; os homens neste filme são reduzidos ao retrato de predadores sexuais, seja pelo aproveitamento de uma conquista fácil seja pelo acto da violação), tem uma leitura fácil de questionamento da identidade que argumentista e realizador intensificam mas que, pensada a frio pela perspectiva do alienígena, devia antes ser interpretada como uma doença do foro mental – quem nos consideraria saudáveis se andássemos pelos matadouros a tentar estabelecer contacto com o gado? Em grande medida, acaba por ser a convicção de Johansson naquele papel que nos transporta para o seu universo, contida nas emoções, fria e distante observadora, uma actuação auto-referencial sobre outra actuação. Excepto num momento, excepto num momento singelo que a compromete.

A extra-terrestre na demanda pelo ser humano não pode evitar a curiosidade que a impele e da qual se torna vítima. É curiosidade – e não amor – que a conduz à cama do homem que a acolheu. É curiosidade – e não desejo – o que procura satisfazer. E a curiosidade satisfaz-se, observando. Manteria os olhos bem abertos quando o homem se aproximou para o primeiro beijo.

Johansson fecha os olhos. As pálpebras tremem de expectativa. A extra-terrestre de repente age e sente como uma menina?

São mesmo muito chatos, os fãs de FC e as suas picuinhices...

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