Exposição Prolongada à Ficção Científica  

   um blog de Luís Filipe Silva


01 Agosto 2021

Já aqui aflorámos em curta, mas pertinente, passagem a existência de um pequeno e discreto ensaio intitulado Breve Historia de la Fantasia, que quase soa a português se não fosse castelhano. A autora, Sílvia Pato, é descrita como autora de ficções situadas neste género fantástico, cujo historial percorre, e também de manuais de formação, sem dúvida fonte da sua destreza explicativa, pois o ensaio em questão é de fácil e leve leitura, sem deixar de ser informativo e abrangente - reconhecendo que a Fantasia tem uma extensa tradição anterior aos primeiros laivos da língua inglesa e dedicando uma boa parte dos seus capítulos à evolução desde a Antiguidade Clássica. Infelizmente, quando se adentra naquilo a que podemos chamar de Modernidade, parece perder de vista a costa, e mergulha quase exclusivamente no cânone histórico anglo-saxónico, viajando de Inglaterra para os Estados Unidos e tocando nos familiares marcos, de Tolkien aos pulps à New Wave, os que conhecemos de cor e, portanto, pouco questionamos. Aquilo em que inova, ou a mais informa, está no percurso paralelo da Fantasia em espanhol (principalmente, a de Espanha, mas também refere pontualmente a da América Latina), a nível da literatura, cinema e banda desenhada, a que dá relevante atenção - o que é de louvar. Também de louvar um destaque ao Fantástico no Feminino, à contribuição das mulheres para o género, que nem sempre tem recebido a devida honra de menção nos compêndios. No final, o que importa são os livros e os autores referidos, e esses são muitos, pelo que o livro acaba por ser um excelente guia de leitura. Portugal merecia uma História como esta.

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25 Julho 2021

Zot! é uma banda desenhada sobre super-heróis que, a certo ponto, desiste de falar sobre super-heróis e prefere focar-se nos dramas humanos de jovens de liceu, em finais dos anos 1980, que se encontram embrenhados nas suas lutas pessoais contra os monstros mundanos da vida, obviamente tão ou mais terríveis que os piores vilões das histórias. É uma inesperada e cativante reviravolta que, infelizmente, há que procurar nas produções independentes, pois escasseia nas DC e Marvel e outras que tais à nossa volta.

No entanto, e para sermos justos, esta BD nunca chega a mergulhar profundamente naquele género capaz de despertar paixões de intensidade futebolística - o único verdadeiro super-herói é um adolescente de nome Zacarias, que não tem super-poderes mas umas magníficas botas que o fazem voar, e uma confiança própria da idade enquanto luta contra os maus, intensificada pela realidade alternativo em que nasceu: uma semi-utopia tecnológica povoada de vilões, que, embora extraordinários e assustadores, no final, acabam sempre derrotados. Depois, preso na nossa Terra, anseia por praticar o Bem, mas, vulnerável a agressões físicas e balas, rapidamente percebe as limitações da sua falta de extra-capacidades.

Mantendo os pés na Terra, McCloud apresenta-nos Jenny, uma adolescente do nosso mundo que sente uma paixão ambígua por este rapaz. Será o olhar dela, o que seguimos, serão as suas opiniões e sentimentos que discretamente dão cor às pranchas de um opressivo preto-e-branco. McCloud aproveita técnicas do mangá, então pouco divulgadadas no mercado norte-americano, e mistura-as com uma precisão de traço e enquadramento que não destoariam num manual de geometria. O compêndio publicado em 2006 reune as histórias das edições individuais entre 1987 e 1991, a partir do número 11, ignorando a fase inicial a cores, que por enquanto apenas se adquire nos alfarrabistas. É assim uma história que começa a meio, ainda que rapidamente se apanhe o fio à meada da narrativa, e que inicialmente brinca connosco e com a possibilidade de Zot não passar da fantasia de uma jovem desgostosa das imperfeições do mundo. É também durante este período que McCloud aproveita para subverter o seu próprio estilo, e dar-nos uma lição de como, recorrendo à expressividade visual do meio, a perspetiva do Outro (neste caso, do vilão) pode ser uma total deturpação da nossa experiência.

No final, são os capítulos que abordam os tais dramas humanos que conferem à obra uma incursão singular pelos problemas da adolescência e de como sobrevivermos e adaptarmo-nos aos desafios (muitos deles, injustos) lançados por este mundo - lidar com a sexualidade (a aceite e a socialmente não aceite), a identidade, a família disfuncional, a necessidade de pertencer. A segunda fase desta série é intensamente realista, ainda mais pautada por um traço rigoroso e sem devaneios oníricos - opção que, a meu ver, se torna por vezes sufocante e avassaladora, sem pausas para respirar. Teria sido interessante utilizar este realismo perfeito no mundo de sonho, e alguma indefinição nos traços naquele que é o nosso, de modo a aligeirar a mensagem. Por outro lado, há mensagens que não se prestam a ligeirezas... e McCloud mostra-se indubitavelmente forte nos momentos silenciosos, na sequência de vinhetas vazia de palavras mas que muito dizem.

Não existe edição portugusa, que eu saiba. Quem quiser, terá de encomendar uma das edições estrangeiras. Ou dirigir-se ao sítio Web do autor, que uma década e picos após o último número de Zot! desenhou mais um conjunto de episódios e colocou-os gratuitamente online.

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27 Junho 2021

A Catástrofe Surge À Civilização, ao mundo, como um carro destravado surge ao peão e ao motociclista - na curva da estrada, sem se anunciar, inevitável apesar das precauções e dos esforços, um ponto final súbito que faz da promessa de um romance uma curta novela. Eis um breve relato de um dia de mudança que abalou o planeta. Não fossem dominantes os dinossauros, mas outra espécie mais familiar, qual o futuro que lhe restaria? Aguardamos as vossas respostas, em forma de ficção, aqui.

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06 Junho 2021

Uma das histórias que pensei escrever para uma reedição do Terrarium (muito antes de esta se tornar sequer uma possibilidade) prendia-se com a existência de um transbordo Terra-Anel orbital em frente ao Guincho - uma gigantesca nave que amarava ao largo da costa, em pleno oceano, e ia devorando litros e litros de água para obter o hidrogénio destinado a alimentar a fusão nuclear dos seus motores - enquanto carregava e descarregava passageiros e mercadoria. A impulsão para o espaço literalmente ferveria o Atlântico sob si, criando um microclima tropical, quente e abafado sobre Sintra e Cascais - mais uma forma pela qual a vinda dos Exóticos tinha transformado a nossa existência, e arruinado grande parte da nossa identidade nacional. Vestígios desta ideia subsistem na primeira novela do Terrarium Redux, mas a demanda do protagonista impele-o para longe. Se porventura fez esta viagem, foi durante o seu período de inconsciência, dominado pela vontade de Pandora (cujas últimas cenas escrevi inclusive longe deste mar, no outro lado da península, de frente virada ao Mediterrâneo que não figura sequer no livro). Hoje, passando pelo local em que surgiu a ideia original, recupero a visão do mastodonte negro, visível do cimo do Cabo da Roca, pousado tranquilamente nas ondas possantes, indiferentes às ventanias e chuvadas ferozes. Imagino os visitantes de então que, como agora, agarrados às cercas, sofrendo, não com o frio mas com o bafo quente da humidade, aguardariam a vibração que eriçaria pelos e estremeceria costelas, o prenúncio daquele instante em que lentamente ascenderia aos céus com a leveza de uma folha de papel só permitida pela física avançada (tecnologia de grau 3, inacessível aos humanos). Imagino o assombro misturado com desesperança que ver tal poderio lhes causaria, pois jamais a Humanidade voltaria a ser livre, inocente e dona do seu destino.

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02 Maio 2021

Repousa Lyonesse no fundo do mar, ou talvez nele se agite, como a Atlântida escondida debaixo do diáfano manto oceânico, filha renegada ou ambiciosa, que se lançou aos céus mas acabou em terra, exposta e desprotegida como o são as cidades - pois a terra não é mais do que a complacência resignada das águas, que, neste planeta, tudo cobrem e tudo sustêm. Um dia, aquilo que se ergueu além da superfície e tentou fugir submergirá de volta ao eterno sono submarino, esquecerá que o universo existe e ali dormirá até ao último dos dias. O oceano é maior devorador de cidades que o tempo. O oceano destrói as suas ruas e os seus imponentes minaretes, mas o tempo guarda-lhes a memória. O oceano fá-las humildes, o tempo fá-las mitos. Garfos, sinetes, restos de cerâmica, uma estatueta de barro partida, um prato de latão decorado com heróis irreconhecíveis e batalhas que perderam o eco… objecto a objecto, as cidades tentam fugir ao esquecimento com a cumplicidade das marés: pedaços que dão à costa quais palavras sussurradas numa noite ventosa, sugestões de histórias maiores, que ninguém conhece mas todos adivinham. Demonstrando que nenhum autor é imune ao poder dos mitos dos seus, Vance desculpou-se com Lyonesse (ou Léonois noutros berços) para prestar vassalagem ao rei Artur – o seu rei Autor –, e fixou-lhe território, uma época, um povo. Sabendo, contudo, que o fim estava anunciado, que as badaladas já se ouviam ao longe. Perguntais se Lyonesse existiu, se Atlântida foi verdade, e isto vos digo: que importa esta pergunta, se, afinal, elas se encontram, nas nossas frases, ao lado da eternidade?

Pompeias Anunciadas: até 31 de Agosto.

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24 Abril 2021

Se seguis este blogue, sabei por este anúncio que a Editorial Divergência aceitou a minha proposta de organizar uma antologia temática dedicada ao final dos tempos, a esse terrível e temido período de destruição, tragédia mas também de potencial renascimento. Há quase uma década que esta proposta circulou pelas (poucas) editoras do Fantástico, entre Portugal e Brasil, até ser aceite pela Divergência, com quem já organizei O Resto É Paisagem - livro que teve o seu sucesso possível para uma literatura, afinal, não tão emocionante e popular entre nós, como o é, ao longe, noutros países. Emoção é o que se quer, desta vez: descrições exuberantes, mistérios insondáveis, hecatombes de arrepiar a espinha. Inspirada pelos filmes de Hollywood, a antologia quer, antes de mais, demonstrar que também em língua portuguesa se podem - e sabem - contar histórias de grande espectáculo (ainda que com orçamentos mínimos). No papel, ou no ecrã, todos os efeitos especiais são possíveis, e todos têm o mesmo custo, como não se cansava de lembrar, fruto da experiência, o saudoso António de Macedo. Mas não se limitem a esta breve apresentação, pois outra, mais extensa, aqui se encontra, acompanhada do regulamento Fixem a data: 31 de Agosto deste ano. E acompanhem este espaço, no qual deixarei periodicamente interrogações, pistas, mapas, empurrões, imagens, e outras promessas de acepipes que vos anime o palato, como autores e como leitores.

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09 Março 2021

Não obstante a possível, e cruel, leitura política e social do ditado «De pequenino se torce o pepino», infelizmente é normal encontrarem-se evidências da sua pertinência em citações como esta (negrito nosso), em que se comenta uma condição cultural tão peninsular quanto infeliz, e que pode estar (estará, certamente) na raíz do desapego de longa data, também da literatura portuguesa, com os temas do Fantástico:

Estas publicaciones también se popularizaron en España, pero caracterizadas por un tono más educativo y moralizante que las que se imprimían en otros países europeos. Cuando en la península se publicaba La Educación Pintoresca (1857-1859), en Francia nacía La Semaine des Enfants, un semanario parisiense con leyendas y cuentos de hadas que contrastaba con las historias aleccionadoras hispanas. El realismo español había enraizado en todos los ámbitos literarios y la literatura infantil y juvenil no iba a ser una excepción; de hecho, la mayoría de los escritores que se ocupaban de ella lo hacían con fines claramente instructivos. Los mundos fantásticos poblados de hadas y as medievales no tendrían un eco destacable en sus historias hasta finales de siglo.

Pato, Breve Historia de la Fantasía, p.81, Ediciones Nowtilus, 2019.


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