Exposição Prolongada à Ficção Científica  

   um blog de Luís Filipe Silva


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10 Março 2009

Jeff VanderMeer Está a Escrever um novo romance (Finch) e partilha alguns conselhos de escrita. Os mais recentes referem-se à elaboração de cenas do que em bom português passo doravante a designar por «porrada da grossa» (action scenes).

Alguns destaques pessoais, com acentuação minha a negrito:

First, though, if going in no one gives a crap about the characters, who the heck cares that they’re in danger. That’s key. Then you have to think of it in terms of the craziest Hong Kong cinema mixed with your own personal mental unhingement: because you’ve got to imagine being in the middle of that. You’ve got to make some preliminary diagrams of the set-up so you can see it clearly, and then you’ve got to wed that to something visceral.

(...) See, the key to an action scene in this age of the big-budget blow-em-up action flick, besides a touch of personal lunacy and cleverness, is making it seem chaotic and confused without it actually being chaotic and confused. And that usually means less is more.

(...) And then it needs the dying fall, when you come back to earth, and the state of world before the battle is restored, and yet changed in some fundamental way. Something’s been lost even as experience is gained. And your hero, s/he’s pretty banged up, but he’s still staggering along…

E possivelmente a mais valiosa das sugestões:

I’ve spent probably 20 to 40 hours on that one scene. That’s the definition of crazy: choreographing the details of something that’s ink on paper so it can hopefully become three-dimensional in the reader’s mind. Doing research on just how a gun that fires fungal bullets might work. Imagining and re-imagining the dialogue for that situation.

Resumindo a receita:

  • elaborar personagens suficientemente complexos e profundos que potenciem a empatia do leitor (normalmente conseguido pelo autor através da simples técnica de auto-encurralamento, ou seja, levar o personagem mais tímido e apagado a revelar-se, no momento crítico em que devia comportar-se como toda a gente esperava e soçobrar aos gritos nas garras do monstro, a dar a volta à situação e ser o único a conseguir escapar-se - algo que não só desperta a atenção do leitor como motiva o próprio autor e o desafia a re-equacionar o contributo deste personagem subitamente desperto na narrativa, daí o «encurralamento»)
  • ter capacidade de visualização e imaginarem-se efectivamente no meio da cena (em jeito de exemplo, a situação de casos extremos e violentos: qual a sensação efectiva de esganar alguém até matá-lo? De violar uma criança? De ver a família chacinada antes os vossos olhos? De sair ileso de um acidente que vitimou quatro jovens a caminho de uma noitada e saber que a culpa foi inteiramente vossa? - imaginarem-se de repente na situação em causa e perceberem como reagiriam, lembrando-se que são humanos e que a primeira tendência será, se for esse o vosso pendor, de inventar uma desculpa apressada e culpar a sociedade ou o nevoeiro ou a outra pessoa, e não vós mesmos); analisar as consequências morais e éticas do desenlace;
  • ter em atenção o que os outros fazem: os leitores não existem numa cela solitária sem janelas cujo único contacto com o mundo é as vossas preciosas palavras. Os leitores cometem constantemente o pecado de enterrar a foice em seara alheia, seja por ler outras obras seja por ligar a televisão. E os leitores são, como as crianças, implacáveis na crítica e comparação das obras e dos criadores, vilipendiando-vos à primeira falha e percebendo de imediato se isto ou aquilo foi «inspirado» (leia-se: decalcado) d'aquilo ou d'aqueloutro. Infelizmente, ao contrário das crianças, os leitores não vos confessam tais pensamentos cara-a-cara, mas simplesmente deixam de comprar os vossos livros;
  • loucura pessoal: sim, o autor tem a presunção de pensar que fala e escreve algo suficientemente interessante para que os outros percam horas do seu precioso tempo de vida a ler. A única forma de garantir o respeito destas pessoas e o retorno à leitura é de o autor tornar-se verdadeiramente numa pessoa interessante, conflituosa, exacerbada, opinativa (com fundamento) e interessada nos outros e no mundo. Caso contrário duvido que tenha algo para dizer. A construção da personalidade da pessoa-autor é um processo lento e demorado tão essencial à qualidade da escrita quanto o trabalho investido nas obras em concreto.
  • trabalho: sim, trabalho. Suar e fazer o que custa. Amargar com a porra do texto no lombo e repisá-lo e revirá-lo e deitar fora. Ficar acordado até altas horas a pensar no enredo, abrir os olhos já com a preocupação em mente. Questionar todas as decisões para descobrir quais as que não conseguem abdicar e desenvolver o texto em torno das mesmas (porque nessas estará o coração e alma da obra). (E não, lamento, mas despejar o primeiro conjunto de frases soltas que vos vier à cabeça sobre o assunto, efectuar uma revisão apressada ou nem sequer isso, e submeter o resultado a um concurso literário, percebendo-se perfeitamente que o autor não respeitou o próprio texto sequer o suficiente para o limpar e pôr decente, lamento imenso mas in my books isso nem sequer conta como uma flexão para o mínimo de cem que seria necessário.)

Conselhos apropriados a toda a escrita e não apenas a cenas de porrada da grossa. Relativamente a estas, apenas acrescentaria ao artigo de Jeff a necessidade de adequar o estilo para comportar frases curtas e energéticas, essencialmente descritivas, que devem encaixar-se umas nas outras sem repetições de sujeito e verbos, e que toda a sequência deve seguir um ritmo variado e progressivo, com momentos de pausa entre instantes de movimentos e consequências físicas. Sugestão pessoal: escolher uma banda sonora que reflicta o tipo de sequência de acção pretendida (heavy metal, pop, música clássica) e ouvi-la antes ou durante a escrita para conduzir o espírito ao estado de agitação adequada, um pouco em paralelo do que os actores costumam fazer.

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07 Março 2009

Um Pequeno Filme Virtual para este sábado. Além da história simpática, embora não se perceba porque não se limita ele a entrar em contacto com ela através daquele meio a que ambos têm aparentemente acesso (terá sido culpado de alguma coisa? Terá sido ele a pô-la naquele estado? Vejam como esta aceitarmos a possibilidade desta singela dúvida consegue alterar, no final, a percepção da história e inclusive do tipo de história que presenciámos), um pormenor que talvez não seja fascinante para muitos apesar de o ser para mim: a qualidade e rigor que foi aplicada na determinação do user interface - o ritual de abrir a mão esquerda com um pequeno solavanco para sustentar o painel redondo, o uso da mão direita como auxiliar de selecção, os mostradores digitais localizados entre pulso e palma, a união de certos dedos para activar opções específicas, o uso posterior das mãos como orientadores dos parâmetros do sistema (aumentar os blocos, pintar as cores).

Notem como não é sequer necessário que nos seja mostrada a sequência de passos completa - intuímos na perfeição que qualquer tentativa de desenho e ajuste passou primeiramente pela escolha de uma opção («desenhar bloco», por exemplo), que essa opção terá tido várias sub-opções disponíveis («encolher», «expandir», «rodar», «deslocação guiada», etc) e que no final os dedos e as mãos funcionam como meros apontadores (os ratos daquele computador) que «arrastam» e «definem».

Notem como a atenção dada a este nível de detalhe permite emprestar à pequena dança do actor (suponho que a interpretar contra fundo verde em estúdio vazio, o que não deixa de ser um virtuosismo de imaginação) uma coerência forte, e que é esta simples coerência que permite suster, enquanto espectadores, a nossa descrença (o princípio pelo qual funciona uma obra de ficção na mente do leitor) e envolvermo-nos na possibilidade deste mundo desconhecido.

Este é o tipo de pormenor, aliado ao rigor, a que os autores recém-chegados à Ficção Científica, provenientes de outras áreas, não dão grande importância, mas que é, em último caso, a essência do género. Os instrumentos de trabalho que estes autores estão acostumados a utilizar torna-os mais aptos a lidar com o material em questão na óptica da história, ou da capacidade lírica, ou do percurso interior - o que não deixaria de ser válido, mas que não produz o efeito de encantamento e de absoluta impenetrabilidade na estranheza da situação que os mecanismos da Ficção Científica permitem, quando aplicados correctamente como neste caso. Somos obrigados a seguir a narrativa até ao final para que esta finalmente nos aceite, nos permita entrar e nos revele o segredo que manteve guardado tanto tempo, um processo não distante do próprio processo da descoberta científica. Aliás, se há algo que a FC e a ciência partilham é uma convicção absoluta de que o universo é mais interessante de conhecer que o ser humano - e se nesta preferência possa residir um certo repúdio pela complexidade e confusão da experiência sentimental, são temas curiosos mas demasiado complexos para esta nota matutina e breve...

Neste caso trata-se de uma história simples, como convém a uma curta, e inclusive sabe que não será pela originalidade do enredo que brilha (embora as nossas expectativas sejam correctamente ludibriadas e o final não seja o que esperávamos, o que é também a torna num bom acto de storytelling).

É este tipo de esmero, fruto de uma preparação e de um trabalho efectivo sobre as possibilidades do mundo inventado que a história nos abre, que deverá existir por base da concepção de uma boa obra de Ficção Científica. Infelizmente, para meu grande pesar e desapontamento, os exemplos em português que eu, e outros colegas, tivemos oportunidade de apreciar recentemente eram omissos neste cuidado, nesta preocupação essencial. Mas sobre essa questão falarei mais no futuro. Fiquem-se com o filme. (Via Jorge)


World Builder from Bruce Branit on Vimeo.

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