Exposição Prolongada à Ficção Científica  

   um blog de Luís Filipe Silva


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11 Janeiro 2010

É Assim Tão Importante, o tal «Avatar»? De todas as obras denominadas «Avatar», o primeiro será o de Poul Anderson, possivelmente ainda disponível nas secções fossilizadas de um alfarrabista. Já se passaram muitos anos para poder apresentar uma opinião pessoal (a própria ausência de memória reflecte uma opinião) mas não demasiado tempo para espelhar as críticas unânimes que comparam o filme de Cameron a uma loira estereotipada: muito contorno de superfície, nada de conteúdo. A diferença é que as lembranças do tempo passado com a loira aquecer-te-ão quando fores velhinho e incapaz, e as do filme, nem por isso.

Ainda assim, discordo do repúdio global do enredo. Sim, podia ter sido um filme melhor. Sim, eu queria ter oferecido duas horas e meia da minha vida a uma história que me enriquecesse a alma. Compensou de certo modo o facto de não ter conseguido desviar os olhos do ecrã tridimensional. Mas entendo perfeitamente a opção pelos estrunfes vitaminados. Aquilo não era um filme, mas uma demonstração de propaganda de um produto. Era um catálogo de venda. E todos os catálogos de venda são inócuos, universais e básicos. Cameron dirigia-se aos obtusos executivos de Hollywood e suas assustadiças carteiras. Vejam, disse, a tecnologia funciona, as famílias acorrem ao cinema. Isto vai encher-vos os bolsos. E numa era de desconsolo perante a pirataria desenfreada, os executivos irão perceber a mensagem (os executivos são muito bons a cheirar tesouros escondidos): deixem os filmes ser pirateados, as pessoas voltarão às salas pelo prazer da experiência. Como era dantes. Não existe monitor de PC nem televisão de ecrã plano no mundo que consiga proporcionar a sensação de imersão naquele admirável mundo novo. Tlim, tlim, tlim!

Ao contar uma história simples, ao sacrificar este filme à imbecilidade de um enredo para deficientes intelectuais - mesmo que inadvertidamente -, Cameron, estou em crer, terá feito um grande favor ao cinema, e em grande medida ao género fantástico: os próximos filmes terão de igualar, ultrapassar, contradizer Avatar. Simplesmente porque há mercado.

Aguardo assim com ansiedade os filmes que me tragam aquilo que pedia neste: as planícies vermelhas de Marte, as núvens de Júpiter; Trantor em todo o seu esplendor, Dune trespassado por vermes. Quero ver as naves geração de Robert Reed. Quero entrar em Rama. Paisagens verdadeiramente alienígenas, e não saídas de uma brochura de viagem para o Pantanal, por muito vistosas que sejam. Queria, sim, as grandes e desconhecidas vistas para as quais foi aperfeiçoada a tecnologia digital.

P.S. - Que também fique claro que não lhe perdoo tudo. A revolta de Gaia... er, Pandora, é das mais imbecis de sempre. Um planeta não ataca com flora nem fauna - um planeta ataca com todo o poderio da sua energia geológica. Teria feito mais sentido que Gaia... er, Pandora tivesse deixado cair as ilhas suspensas sobre a força aérea do que atacar os soldados com rinocerontes mascarados. Teria sido impressionante ver Gaia... er, Pandora abrir-se numa cadeia de vulcões gigantescos, vulcões que fariam inveja ao Monte Olimpo marciano (já que tudo é assim tão grande em Gaia... er, Pandora), capazes de expelir materiais para órbita que danificariam e dificultariam o trajecto das naves.

P.P.S. - Já que tudo é assim tão grande naquele planeta, pensem lá o que foi que impressionou o nosso herói no corpo Na'vi? Pois, foi mesmo a treta da trança, foi...

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09 Janeiro 2010

Nos Seus Tempos Áureos a Ficção Cientifica propunha-se como veículo filosófico da Ciência e do Homem - antes de ser a FC como conhecida hoje, ou mesmo a FC como foi iniciada por Júlio Verne e consubstanciada por Gernsback e Campbell. Refiro-me a exemplos como Frankenstein e às obras cosmológicas de Olaf Stapledon, ao trabalho de Lem, Dick e (em certa medida) Ballard. Autores para quem a preocupação subjacente era a colocação do Homem no contexto universal - o estabelecimento de uma perspectiva autónoma do tempo e inclusive do espaço - o aparecimento do ser alienígena enquanto ponto de referência para posicionar o ser humano. Questões válidas, questões de filosofia expressas de forma simplificada, acessível e intuitiva através do formato narrativo, que parece ser um dos melhores veículos de transmissão de informação e partilha de experiências entre as nossas mentes. O debate assentou na ficção como um corcel, mas a ficção não se deixa domesticar tão facilmente, e em breve a problemática da estética invadiria a intenção filosófica. Surge então o experimentalismo, a meta-literatura, o uso da temática especulativa não como cerne da obra mas como evento de superfície, como adorno e luzes cintilantes, enquanto a preocupação da escrita se centrava no conforto da experiência humana (paradoxalmente, negando a própria essência do surgimento deste género literário).

Não ajudaria obviamente que os cenários imaginados fossem apropriados, de forma consciente ou inadvertida, para disseminação de uma ordem social e política, solidificando as convicções defendidas pelo autor ou, mais habitualmente, ideias-feitas que, enquanto indivíduo da sua época, não se preocupara em questionar ou receara que afastasse o público leitor. Existe um muro em todos os nossos pensamentos e um muro mais circunscrito quando esses pensamentos são tornados públicos. A ficção científica seria, não pela intenção, mas pela sua prática, um objectivo condenado a falhar. Desde os tempos áureos, desde sempre.

A diferença nesses tempos é que, ao menos, tentava-se.

Da minha recente experiência de leitura de Blindsight, de Peter Watts, consigo retirar várias observações. Antes de tudo, que enquanto objecto literário, é uma peça confusa, desordenada, que desafia constantemente as noções básicas de ritmo, estrutura e envolvimento. Mas enquanto exemplo de ficção científica... uau! Transborda ideias e especulações sobre a natureza da consciência e da inteligência. Questiona o significado do ser humano, não na forma de um discurso florido e prosaico, mas como entidade de processamento de informação imperfeita e incapaz de atingir a compreensão plena devido precisamente às suas imperfeições e modo de funcionamento. É tão raro encontrar actualmente uma obra desta estatura, de tal arrojo epistemológico, que há que passar palavra e ansiar que a garrafa transportando esta mensagem alcance aquele ser solitário do outro lado do éter que possa sentir-se igualmente fascinado pela importância do tema. Sim, tenho perfeita consciência do escuro imenso que nos separa.

Este é o tipo de livros que arruma num canto todas as demais obras popularuchas que seguem o fluxo das modas. Hoje em dia são vampiros, amanhã zombies, ontem foram colónias lunares e tiros no vácuo. O recreio será sempre mais apetecível que a sala de aula, mas sem a aprendizagem, sem o trabalho, brincar não tem sentido.

Infelizmente - e isto é uma discussão para outras calendas - existe um excesso de brincadeira no nosso mercado, o que é o mesmo que dizer uma inexistência de obras fulcrais, as que definem a ficção científica. Não se deve culpar os editores (bem, não demasiado) porque, como todos, são vítimas de um hedonismo sufocante que descontroladamente enche as artérias do mercado de substâncias nocivas até matar o organismo. As nossas livrarias estão cheias de hamburgueres e nem sequer dos saborosos. Só pelo pecado de ofuscarem o brilho e impedirem a acessibilidade de obras como a acima mencionada todos esses livros mereciam o auto-da-fé.

Deixo-vos com um filósofo alemão, Thomas Metzinger, cujo trabalho sobre a consciência humana e o processo da modelização do «eu» se encontra no cerne de Blindsight. Entre as ideias radicais e inovadoras está a noção que a inteligência não requer uma consciência do próprio (self-awareness), que esta não passa de uma função auto-reguladora da mente - ou seja, tudo o demais, tudo o que somos e pensamos e sentimos é na verdade um efeito secundário, natural mas dispensável e muitas vezes contraproducente, do funcionamento da mente. Que tal este ponto de partida para a criação de extra-terrestres?...

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