Exposição Prolongada à Ficção Científica  

   um blog de Luís Filipe Silva


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06 Maio 2010

Há Pouca Ciência Na Nossa FC. Embora a afirmação mereça ser fundamentada numa reflexão posterior, explique-se no entanto que me refiro à actividade de pesquisa e preparação científica fundamentais a uma obra de verdadeira FC.

E sim, podemos graduar a noção de «verdadeira» em diferentes tons do espectro do género; creio, contudo, que todos chegaremos facilmente a acordo: que as narrativas que têem por base um fenómeno conhecido de natureza científica (validado pelos investigadores ou ainda matéria de especulação), motivando, determinando e no final influenciando o decurso da história, irão destacar-se das que se preocupem com o factor humano ou íntimo em cenários futuros, alternativos ou pseudo-tecnológicos, e das que, por muito que atirem com jargão científico e salpiquem com pós de futuro, encontram no conflito entre os personagens, e apenas neste, a razão de ser do enredo.

E hard-SF, na nossa língua portuguesa, pelo menos na variante europeia, é raça que até pode existir, mas nunca foi avistada...

A recomendação de hoje vai então dar destaque, não à ficção mas à ciência. O Património Genético Português – A História Humana Preservada Nos Genes (por que um bom livro de divulgação científica requer sempre um título sério seguido de um sub-título mais explicativo) é um ensaio inesperado mas muito pertinente, que resulta da colaboração entre Luísa Pereira e Filipa M. Ribeiro. Como nestas coisas o currículo é importante, rapidamente se percebe que Luisa é bióloga, doutorada em genética populacional humana, investigadora do IPATIMUP e professora afiliada da FMUP. Filipa, por sua vez, é jornalista científica e mestre em Comunicação e Educação da Ciência. E (revelação terrível!) ambas são mais jovens que este vosso leitor...

É um prazer descobrir que a pequena comunidade científica do nosso país escreve artigos e é publicada e reconhecida internacionalmente – a internacionalização surgindo, não só como característica inerente ao meio como necessidade de sobrevivência face à nossa pequenez. Que haja uma história particular do nosso país que possa e mereça ser contada pelos genes, é um pensamento inovador, razão pela qual este pequeno e curto livro se torna tão interessante.

As autoras estruturam a apresentação de forma clara: primeiro explicam de que se trata e como se pode medir a Genética Populacional – pelo ADN mitocondrial (contribuição da mãe) e cromossoma Y (contribuição do pai). Neste processo, dos que não se reproduzem nem fazem por se reproduzir não reza a História. A seguir levam-nos numa viagem pelas eras, pelo surgimento do Homem e primeiras migrações pré-Históricas, revelando as pistas que se escondem nos genes actuais. O foco centra-se a seguir na Europa e no Paleolítico, explica a contribuição das Idades do Gelo para a actual dispersão humana e acaba por se centrar em Portugal, particularmente nas influências das populações africanas no nosso património genético, olhando para os exemplos de Belmonte e Mértola (exemplo que me é pessoalmente caro) antes de discorrer sobre as «influências» que os nossos digníssimos exploradores quinhentistas foram deixando por esse além-mar fora... As autoras salientam que uma das grandes questões é haver mundialmente maior homogeneidade feminina que masculina, algo talvez explicado por haver maior mobilidade, historicamente, para as mulheres que para os homens, além do factor poligamia.

O livro é conciso, directo, rico em factos, como se pretende. É interessante e bem estruturado – mais estruturado do que o próprio processo de descoberta científica, cheio de saltos, recuos, dúvidas, frustrações, até ao momento de glória em que tudo encaixa. Infelizmente, o que falta ao livro, enquanto material de divulgação científica para um público amador, é precisamente a rota da descoberta, o envolvimento emocional da investigação. É tão-somente uma questão de linguagem, nada mais. Seguir o investigador ou a comunidade científica de revelação em revelação, em particular as que contrariam as ideias vigentes derivadas da arqueologia e da antropologia: em que medida a genética populacional vem iluminar preconceitos ou suposições daquelas disciplinas ? Em que medida complementa os nossos conhecimentos históricos?

As autoras procuram efectivamente enquadrar a genética como uma forma de conhecimento do Eu, do ser humano, e sem dúvida que há ainda muito por descobrir. Não se questiona o fascínio. Mas enquanto objecto livro, penso haver espaço para melhorias.

Ainda assim, mais uma grande aposta da colecção «Ciência Aberta» da Gradiva, que ainda mantém alguma da aura que há uns anos a tornava na série de divulgação científica mais procurada do mercado. Algo que é tão ou mais raro que colecções de Ficção Científica. Para nossa pobreza.

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04 Maio 2010

A Minha Recomendação de hoje chega-nos dos confins da memória. Estava-se em 1984 e noutro país: um país de escudos que mantinha fronteira com Espanha, apenas tinha uma ponte olissiponense sobre o Tejo e o microprocessador dominante não era Intel mas algo chamado Z80A que sustentava uma pequena caixa chamada Spectrum na qual muitos dos actuais programadores-séniores aprenderam o ofício.

Nesse ano, um ano mágico para a FC, que chegou a assistir à publicação mensal de quatro livros da colecção de bolso da Europa-América, aos quais se acrescentava a contribuição unitária da colecção Argonauta (compare-se com o raquítico número de quatro a cinco títulos por ano de hoje em dia), mantinha-se, ainda que de forma pouco convicta, uma colecção de bolso que juntava todos os «géneros menores» no mesmo prato: a BolsoNoite da Europress. Livrinhos pequenos de identificação cromática por tema, cujos números alternavam entre Western (tons amarelos), FC (tons azuis), Terror (tons negros) e Policial (tons vermelhos).

A Europress tinha uma tendência para publicar os mais conhecidos autores de pulp fiction nacional dos anos 70 (Roussado Pinto e Luis de Campos) – creio que o próprio Luis de Campos chegou a dirigir a colecção – e inclusive andou à procura de originais portugueses de FC. O primeiro livro do género seria a novelização do filme Tron, em 1983 (o qual me levou a ter uma nota menos boa num teste de História pois na véspera, ao invés de embrenhar-me nos estudos, perdi algumas horas a ir ao cinema e a desvendar o livro – há traumas que marcam, mas que valem a pena...), e desde então a colecção lá ia sendo publicada com ritmo irregular.

Obviamente que prestava mais atenção aos títulos de FC que dos outros géneros, embora então cultivasse um leque de leituras muito diversificado, graças ao tempo e ao interesse, que eram mais latos. A BolsoNoite incluia autores pouco habituais da Argonauta e da Europa-América, em particular o John Brunner. Após um interregno, chegaria a incluir, disfarçadamente, Um Caso de Consciência, de Blish, e A Rosa, de Harness, numa fase posterior de tentativa de reanimação falhada por parte da editora. Foi no entanto a primeira colecção a apresentar-nos C. J. Cherryh, e em particular, Vaga Sem Praia.

Vaga Sem Praia é uma novela curta e relativamente ligeira, que decorre na cidade de Kierkegaard do continente de Sartre do planeta Liberdade. Nessa terra, vive uma cultura humana cujo cerne da existência é o desenvolvimento do Eu. Não o Eu enquanto oposição perante o universo, mas o Eu enquanto medida de todas as coisas. O Eu enquanto centro e motivo de existência da própria realidade. Daqui decorre um conflito inevitável entre percepção e possibilidade, posto a nu pela interrogação do artista. Este artista é Herrin, cuja maestria com o cinzel e a pedra o tornam no mais popular e conceituado cidadão de Kierkegaard, despertando inveja e ressentimento em Waden, que faz o papel de político e de protagonista opositor nesta história (só mesmo na literatura é que os artistas são mais influentes que os políticos...) Para complicar são apresentados alienígenas e humanos Invisíveis, à margem da sociedade, ignorados por decreto social, cuja existência deverá ser integrada no fim para se atingir uma verdadeira compreensão do cosmos e em grande medida do Humano.

Se esta descrição não parece entusiasmante, o problema é da descrição e das décadas que separam a minha leitura, e não do livro. É, creio, um livro para jovens, ou para mentalidades jovens, ainda capazes de questionar o instituido e aceitar o diferente. Apresentar-nos de forma vívida sociedades de seres como nós mas que pensam de forma inesperada, com sistemas de valores quase incompreensíveis, é uma das grandes e antigas competências da FC. Este livro vale por isso, e pelas questões de identidade que coloca (o que é o Eu? Em que medida o Eu determina o valor do Outro?).

Pensar que em tempos se conseguia escrever FC assumidamente filosófica, ambientada em terras estranhas para disfarçar parecenças com a nossa... Pensar que, mais do que a dificuldade de publicar-se obras recentes de FC, encontrar hoje um editor que apostasse numa obra destas - cuja natureza está na especulação intelectual e não no ritmo trepidante da acção - é uma probabilidade estatística inferior à congelação de uma panela de água quando colocada ao lume...

Se correrem, vão encontrá-la nesta Feira do Livro – espero. Costumava ser vendida no meio de packs de 3 títulos da colecção.  Com um pouco de sorte, mesmo passados tantos anos, continuará ainda à vossa espera.

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