Exposição Prolongada à Ficção Científica  

   um blog de Luís Filipe Silva


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07 Maio 2010

Existe Uma Liberdade Intrínseca a um texto mainstream (dir-se-ia «literatura do quotidiano», embora na verdade represente tudo o que não se encontra categorizado como um género) que não consegue ser duplicada pelos autores de Ficção Científica e Fantástico. É uma liberdade patente na voz do narrador e no estilo da história. Os bons textos de mainstream preocupam-se com a experiência da leitura – ao invés de procurarem um estilo transparente, directo, hemingwaysco, sem sabores nem odores, assumem que a percepção da narrativa por via das palavras é diferente, e deverá ser diferente, da percepção visual ou auditiva, e esforçam-se por nos conduzir nessa viagem. O autor de mainstream não se preocupa apenas com a necessidade de contar uma história, mas de como deve contá-la. Obviamente, como em tudo, há exageros ou pressuposições falsas. Um bom autor deixa-se conduzir pelo estilo que melhor serve a história em questão. Os autores menos bons – inclusive os autores que outrora foram bons mas se deixaram estagnar num modo muito próprio de escrever, por que, além de conveniência, também serve de imagem de marca – perdem-se em malabarismos de imagens e metáforas e excessos descritivos e acabam partindo a loiça. Cada história necessita da abordagem que melhor a serve.

Não é por isso de todo disparatado dizer-se, por exemplo, que «havia uma velocidade no teu olhar». É uma questão de contexto. Apresentada assim, despida, corre o risco de tornar-se ridícula. Enquadrada numa descrição sobre a sagacidade do personagem ganha sentido e poesia. O contrário acontece com frases como «o cais é uma saudade de pedra». Esta frase encerra o contexto de si mesma, é uma unidade perfeita, e por isso mesmo serve como epígrafe, citação, descrição e verdade universal, caso seja necessário. Mas é por estes e outros exemplos que o Pessoa é o Pessoa e o autor da frase anterior o mero escrivão desta crítica.

Daí que a experiência de ler mainstream por quem lê exclusivamente obras de géneros, e vice-versa, seja intensamente frustrante. Não se obtém igual tipo de alimento. O leitor de géneros procura a experiência da história, e o texto não é mais do que um veículo eficiente para a mesma. O leitor de mainstream equipara, lado a lado, a história com a efabulação da escrita, e estilos secos e directos apenas podem ser compensados pela relevância do conteúdo - além, claro, dos normais conflitos de expectativas. Possivelmente o mainstream considera que o íntimo é a medida de todas as coisas e que uma história deve considerar o mundo exterior como um incómodo necessário ao centrar-se na evolução da percepção individual, e o género borrifar-se-á tanto para o íntimo do personagem como para o íntimo do vizinho e o que pretende é o deslumbramento infantil de observar a interacção entre objectos, circunstâncias e pessoas enredar-se numa complexidade de padrões e significados. Um encara a existência como uma série de circunstâncias aleatórias das quais pode retirar entendimento, o outro acredita que existem pequenas narrativas ocultas na grande narrativa que é a existência. Como em tudo, ambos estarão correctos, ambos estarão errados.

Onde, por vezes, a distinção entre mainstream e géneros surge mais vincada – e ao mesmo tempo, mais próxima – é na descrição de uma experiência intensamente pessoal. Ao tentar expor-nos algo que imesuravelmente o fere ou encanta, o autor deixa transparecer o seu envolvimento, deixa que a história se conte por si mesma, o que é suficiente para derrubar critérios literários e expectativas. Sabemos assim que estamos perante uma obra-prima.

A Breve e Assombrosa Vida de Oscar Wao poderá não ser essa obra-prima, mas sabemos que contém muita dor e vivência pessoal. Basta folhear os capítulos. A mistura de pontos de vista, a existência de capítulos curtos e saltos no tempo, a inserção quase excessiva de notas de rodapé, dá-nos de imediato a sensação que se trata de uma história com muitas facetas e muitos exemplos mas que é na verdade uma história simples. Que há muito para contar, mas é muito do mesmo e portanto há que saber contá-lo. E sem dúvida, a premissa narrativa é explicada nas primeiras páginas, ao apresentar-nos um adolescente «geek» (em tempos chamar-lhe-íamos totó), gordo e socialmente desajeitado, que encontra na Ficção Científica e nos jogos de computador e R&D o seu pouco encanto com o mundo. Esta travessia por um período tão difícil da vida não é ajudada pela necessidade premente de encontrar uma rapariga, por ser amado e aceite num meio latino com uma pressão cultural intensa pela evidência do homem em cada rapaz.

Latino? Sim, Oscar Wao é de ascendência dominicada, como o próprio autor, Junot Díaz, mas cresce num bairro de Nova Jersei. Oscar é então emigrante em terra estranha, mas transporta nos genes e no pensamento os ecos da terra que o gerou. Esses pensamentos ensinam-no que o fukú existe, que é basicamente a má-sorte, o fado, e que quando assenta numa família e numa pessoa, esta encontra-se condenada a um inferno cristão em vida. Terá sido o fukú que lhe deu aquele aspecto e sina, como foi o fukú que condenou a República Domicana a submeter-se ao jugo de Trujillo, um ditador aqui descrito como um verdadeiro animal selvagem que um povo passivo não foi capaz de destronar (bem, o nosso próprio exemplo acabou destronado por uma cadeira defeituosa e pela senilidade, por isso também não temos muito de que nos orgulharmos). Oscar é fruto de uma família desgraçada pelo fukú, cujo azar foi ter uma filha muito bonita que chamou a atenção do ditador – um apreciador de meninas bonitas – e dos seus lacaios. Quem brinca com fogo...

Junot tem obviamente muito para contar, e quase se atrapalha a contá-lo. É também filho de duas culturas, expatriado cultural, e terá sentido que um único idioma não faria jus à salada linguística que lhe povoa o pensamento. A Breve e Assombrosa Vida é assim um livro inglês salpicado de espanhol, ou talvez o contrário – contraste evidente na edição original, mas que se dilui por completo na edição portuguesa. Diga-se de passagem que a Porto Editora assumiu a atitude corajosa de não italicizar o estrangeirismo, embora por vezes isto perturbe a leitura, pois o castelhano não salta tão à vista como no texto original. A tradução é no mínimo competente, com alguns momentos infelizes, quando procura explicar algumas das citações da Ficção Cientifica... ah, não vos disse?

Oscar Wao é um geek que observa o mundo pela lente das suas leituras. Estas parecem confinar-se a Frank Herbert, Gordon Dickson e Tolkien. Compara Trujillo a Sauron e imagina-se Dorsai. Uma atitude que me pareceria natural num adolescente com tais gostos, esta opção de contra-cultura de Junot Díaz foi enaltecida pelos críticos, quer do mainstream quer do género. Francamente, não consegui encontrar igual fascínio. Os críticos do mainstream louvam o autor por assumir a sua street-smartness e geekiness, como se se tratasse de um topping adicional na sobremesa – como se, efectivamente, e dada a história tão emocional em questão, fosse algo dispensável. Os críticos da Ficção Científica apreciam o respeito mostrado aos autores e temas do género, como se de facto as poucas descrições dos seus hábitos de leitura elevassem esta obra a uma introdução a leigos da complexidade inerente ao Fantástico.

Não encontro outras leituras que de tratar-se de uma história quase incomodativamente pessoal, um colocar a nú de velhas feridas – e há que admirá-la por isso. Um nú não apenas familiar mas de todo um povo e uma geração, que precisava de expor as injustiças por que passou face às injustiças que outros reclamam para si. Os melhores momentos do livro não se referem a Oscar Wao – um alter-ego possivelmente deturpado do autor – mas quando regressa a Santo Domingo e ao passado, quando conta a história trágica dos avós e do conflito com o ditador. São momentos poderosíssimos em que Junot apresenta as suas melhores qualidades de contista. Momentos,afinal, sem referências à Ficção Científica.

Um breve mas assombroso livro, sem dúvida.

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06 Maio 2010

Há Pouca Ciência Na Nossa FC. Embora a afirmação mereça ser fundamentada numa reflexão posterior, explique-se no entanto que me refiro à actividade de pesquisa e preparação científica fundamentais a uma obra de verdadeira FC.

E sim, podemos graduar a noção de «verdadeira» em diferentes tons do espectro do género; creio, contudo, que todos chegaremos facilmente a acordo: que as narrativas que têem por base um fenómeno conhecido de natureza científica (validado pelos investigadores ou ainda matéria de especulação), motivando, determinando e no final influenciando o decurso da história, irão destacar-se das que se preocupem com o factor humano ou íntimo em cenários futuros, alternativos ou pseudo-tecnológicos, e das que, por muito que atirem com jargão científico e salpiquem com pós de futuro, encontram no conflito entre os personagens, e apenas neste, a razão de ser do enredo.

E hard-SF, na nossa língua portuguesa, pelo menos na variante europeia, é raça que até pode existir, mas nunca foi avistada...

A recomendação de hoje vai então dar destaque, não à ficção mas à ciência. O Património Genético Português – A História Humana Preservada Nos Genes (por que um bom livro de divulgação científica requer sempre um título sério seguido de um sub-título mais explicativo) é um ensaio inesperado mas muito pertinente, que resulta da colaboração entre Luísa Pereira e Filipa M. Ribeiro. Como nestas coisas o currículo é importante, rapidamente se percebe que Luisa é bióloga, doutorada em genética populacional humana, investigadora do IPATIMUP e professora afiliada da FMUP. Filipa, por sua vez, é jornalista científica e mestre em Comunicação e Educação da Ciência. E (revelação terrível!) ambas são mais jovens que este vosso leitor...

É um prazer descobrir que a pequena comunidade científica do nosso país escreve artigos e é publicada e reconhecida internacionalmente – a internacionalização surgindo, não só como característica inerente ao meio como necessidade de sobrevivência face à nossa pequenez. Que haja uma história particular do nosso país que possa e mereça ser contada pelos genes, é um pensamento inovador, razão pela qual este pequeno e curto livro se torna tão interessante.

As autoras estruturam a apresentação de forma clara: primeiro explicam de que se trata e como se pode medir a Genética Populacional – pelo ADN mitocondrial (contribuição da mãe) e cromossoma Y (contribuição do pai). Neste processo, dos que não se reproduzem nem fazem por se reproduzir não reza a História. A seguir levam-nos numa viagem pelas eras, pelo surgimento do Homem e primeiras migrações pré-Históricas, revelando as pistas que se escondem nos genes actuais. O foco centra-se a seguir na Europa e no Paleolítico, explica a contribuição das Idades do Gelo para a actual dispersão humana e acaba por se centrar em Portugal, particularmente nas influências das populações africanas no nosso património genético, olhando para os exemplos de Belmonte e Mértola (exemplo que me é pessoalmente caro) antes de discorrer sobre as «influências» que os nossos digníssimos exploradores quinhentistas foram deixando por esse além-mar fora... As autoras salientam que uma das grandes questões é haver mundialmente maior homogeneidade feminina que masculina, algo talvez explicado por haver maior mobilidade, historicamente, para as mulheres que para os homens, além do factor poligamia.

O livro é conciso, directo, rico em factos, como se pretende. É interessante e bem estruturado – mais estruturado do que o próprio processo de descoberta científica, cheio de saltos, recuos, dúvidas, frustrações, até ao momento de glória em que tudo encaixa. Infelizmente, o que falta ao livro, enquanto material de divulgação científica para um público amador, é precisamente a rota da descoberta, o envolvimento emocional da investigação. É tão-somente uma questão de linguagem, nada mais. Seguir o investigador ou a comunidade científica de revelação em revelação, em particular as que contrariam as ideias vigentes derivadas da arqueologia e da antropologia: em que medida a genética populacional vem iluminar preconceitos ou suposições daquelas disciplinas ? Em que medida complementa os nossos conhecimentos históricos?

As autoras procuram efectivamente enquadrar a genética como uma forma de conhecimento do Eu, do ser humano, e sem dúvida que há ainda muito por descobrir. Não se questiona o fascínio. Mas enquanto objecto livro, penso haver espaço para melhorias.

Ainda assim, mais uma grande aposta da colecção «Ciência Aberta» da Gradiva, que ainda mantém alguma da aura que há uns anos a tornava na série de divulgação científica mais procurada do mercado. Algo que é tão ou mais raro que colecções de Ficção Científica. Para nossa pobreza.

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