Conceito de Luís Filipe Silva

Ficção Científica, Fantástico, Surrealismo, Realismo Mágico, Terror, Horror, Ciberpunk e História Alternativa - e por vezes, se fôr de excelente qualidade, ainda fechamos os olhos a um certo Mainstream...

[Conheça o Manifesto]

Conto

 

O Mundo Distante

 

Luís Filipe Silva

 

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O ano de 2025 ficou para sempre gravado na alma de Kato Choi. A pouco tempo de completar o primeiro centenário, aquela que tinha sido apelidada de Grande Depressão insurgiu-se num segundo ataque ao coração das finanças internacionais, alertando os economistas, cuja ciência gozara de um desenvolvimento acelerado, de que a sua recém-conquistada esperteza ainda não constituía páreo para os truques do mundo, e provando também que a idade em nada esmorece os verdadeiros fortes de espírito. O ataque não resultou tão devastador quanto o primeiro, pois aos primeiros sinais de perigo, foram levantadas as defesas keynesianas, velhas mas ainda eficazes; contudo, foi forte o suficiente para abalar as estruturas dos grandes conglomerados nipónicos, que viram na fusão das suas forças o único método de se protegerem contra a crise.

A família Kato pertencia ao zaibatsu Matsuchita há três gerações consecutivas. O avô de Choi fora o primeiro a ingressar nas suas fileiras, como chefe de pessoal, nos primeiros anos da recuperação económica da segunda metade do século XX. Nessa altura, Matsuchita era ainda uma pequena empresa de electrónica, a estudar a tecnologia americana e a melhor maneira de reproduzi-la por um menor preço. Cresceu, ao longo dos anos, adquiriu e foi adquirida por outras empresas. Durante esses anos, o avô de Choi trabalhou arduamente, por vezes a fio, sem descanso - mas ele não notava. Todos faziam o mesmo.

O pai de Choi cresceu naquele ambiente. Aproveitando a oportunidade, inscreveu-se num curso de formação interno e tornou-se técnico de mercado. Durante um dos convívios semanais que o zaibatsu promovia, conheceu a sua futura esposa, que trabalhava no departamento de qualidade. O casamento foi efectuado nas instalações religiosas que a Matsuchita possuía, sob a assistência de todos os 500 empregados locais, por que se consideravam, uns para os outros, mais do que meros colegas de trabalho: uma comunidade. Choi nasceria dali a um ano, e nessa altura, na sua vida não existiria nada mais do que o zaibatsu; providenciava-lhes a comida, a habitação, os cuidados de saúde. Cresceria nos seus recreios, a brincar com os filhos dos outros empregados, e mais tarde frequentaria as suas escolas, onde se formaria em engenharia CAD-CAM, que mais tarde aplicaria ao serviço da organização. Todos os amigos que tinha pertenciam ao zaibatsu, todos os valores pessoais que conhecia eram os defendidos pela grande família Matsuchita, quer no dia-a-dia, quer nos estádios, nas competições de sumo e karaté com os outros zaibatsus. A corporação dava-lhes o mundo; em troca, eles devotavam-lhe todos os minutos das suas vidas.

No ano de 2025 tudo mudou. Matsuchita desmembrou-se, vendendo algumas das suas afiliadas a empresas estrangeiras, e fundindo-se com o zaibatsu Yamato. Mais de três mil empregados foram despedidos, e nesse rio humano encontrou-se subitamente Choi, à deriva.

O mundo dele tinha perdido o significado. A corporação não podia mais continuar a sustentar membros que não lhe pertenciam. Os seus pais, felizmente, conservavam os empregos (que agora não passavam de meros empregos), mas viviam modestamente. Não podia depender deles. Teve de mergulhar de novo no rio humano, e nadar.

Nessa ocasião, a Coreia do Sul, não afectada pela crise, começava a desenvolver estruturas de produção de aparelhagem electrónica mais sofisticadas e económicas que as japonesas - aproveitando o mesmo golpe de pirataria que o Japão efectuara contra a América. Precisavam de técnicos e engenheiros qualificados, e dispostos a trabalhar por um salário pequeno. Choi seguiu no primeiro avião da Korean Air Lines em que conseguiu encontrar assento. Ao seu redor, encontrou velhos conhecidos, todos de olhar igualmente saudoso e esperançado.

Aterraram sob a vigília de um céu indiferente e céptico, a cor negra das suas nuvens transmitindo de forma perfeita o oráculo da futura existência deles naquela terra estranha. Porque eles eram japoneses, e japoneses tinham sido também aqueles que, no século anterior, haviam tomado à força o chamado país da calma matinal, que então ainda estava unido; aqueles que haviam arrancado as terras aos seus donos, e as feito convergir nas mãos de alguns poderosos. Os avôs dos seus pais tinham feito passar os testemunhos daqueles dias de pobreza e fome, dependentes da oferta de trabalho e da (muito rara) benevolência de algum proprietário. Os Coreanos eram um povo orgulhoso; não encaravam com ligeireza os anos de História em que tinham servido de bola com que a China, o Japão, e mais tarde, a América e a antiga União Soviética haviam jogado o seu futebol muito particular. Estavam a cobrar, por fim. A sua vingança reflectir-se-ia no mercado ocidental, quando as pequenas estruturas deste que principiavam a tomar forma fossem de novo esmagadas pela competência do oriente. E para que ninguém esquecesse a lição, todos os produtos que exportavam levavam o símbolo, não das respectivas empresas, mas do país: uma máquina tipográfica medieval, por que eles, coreanos, haviam inventado a impressão com tipos móveis cinquenta anos antes de Gutenberg ter introduzido a tecnologia na Europa.

Mas por que um país não se pode socorrer unicamente da sua própria esperteza, resignou-se à intromissão de uns quantos indesejáveis que o ajudassem na sua sede de vingança. Deram-lhes cargos importantes, quase todos de chefia, mas despejaram-nos no gueto demarcado pela pobreza das linhas arquitectónicas e pelo afastamento relativo à cidade e a qualquer tipo de comércio de rua. Forneceram-lhes algumas parabólicas, para que pudessem falar pela Rede Digital mundial, mas não os quiseram mais próximos de si que isso.

A princípio foi difícil, como todos se recordariam mais tarde; a adaptação a uma nova terra, a um povo que os olhava depreciativamente e que insistia em não querer compreender o que eles diziam. Choi frequentou de imediato um curso-relâmpago da língua coreana, organizado pela empresa onde trabalhava, e que lhe foi frutífero, dada a sua capacidade recém-descoberta para a poliglotonia - apesar de o coreano ser uma língua hermética, sem antecedentes linguísticos comuns a qualquer outro país, exceptuando alguns termos chineses. Ultrapassou-se a dificuldade, e a ameaça da solidão com o contrário desta: a solidariedade. Reavivando o espírito dos defuntos zaibatsus, o gueto juntou-se em festas semanais, onde afirmavam a sua língua natal e as suas tradições milenares.

Com o passar dos anos, acabaram por ser aceites como quaisquer outras pessoas, até por que o ódio da xenogenia se dissipa quando o elemento de estranheza se transforma no elemento da proximidade. Contudo, após esses anos, passaram mais anos, e com eles o mundo mudou.

O mundo mudou para os que tinham prosperado durante a crise. A recessão económica, aliada com a grave explosão populacional, foi o bastante para voltar a insurgir nos corações a chama da defesa patriótica contra os que passavam a ser vistos como intrusos. Velhas querelas reacenderam-se, ataques de guerrilha ao gueto (agora já englobado pela cidade grande) partiam janelas, assustavam crianças e incendiavam um ou outro carro. Símbolos antigos de ódio foram desenterrados dos baús e expostos nas ruas, e certas palavras ganharam significados maldosos.

Quando a extrema-direita subiu ao poder, Choi pegou na noiva, uma farmacêutica de Inchon, e, com o filho a dois meses de nascer, atravessou a fronteira do famoso paralelo 38, em direcção à cidade costeira de Wonsan. Como do primeiro êxodo, não foi sozinho; consigo iam os mesmos rostos, os velhos olhos resignados, a desencorajadora apatia da derrota. Choi contemplou os companheiros (que não conhecia) que com ele viajavam nas traseiras de um veículo de carga, com uma mistura de familiaridade e relaxamento, que o surpreendeu. Tinha-se apercebido de que se sentia como se tivesse retornado a uma espécie de "lar", e que os anos passados na fábrica de computadores de pulso, nada mais significavam do que um breve piscar de olhos, irrelevante. Tentou explicar a sensação à esposa, para apaziguá-la, mas ela ia imersa no desempenho do seu papel de mãe-ave, defendendo o bebé contra perigos que desconhecia.

Tinham saído da Coreia do Sul a tempo; uma onda de raiva inundou em um só instante a totalidade do país, cobrindo-o de leste a oeste de notícias sobre ataques a imigrantes e minorias rácicas. Os amigos que Choi deixara em Pusan, não estavam sozinhos no rol das vítimas da perseguição - o que de si, constituía motivo suficiente para se negar a suprema inteligência da raça humana. Para a felicidade dos refugiados, a Cruz Vermelha Internacional tinha conseguido instaurar na Coreia do Norte um serviço de apoio que, essencialmente, os ajudava no plano económico, fornecendo-lhes trabalho e habitações - tinham aprendido com os problemas da Etiópia e da Guerra Turco-Síria, que limitarem-se a distribuir comida só resolvia as situações até à próxima refeição.

A febre acabou eventualmente por se extinguir, submersa na sua própria ânsia de destruição. Alguns dos refugiados viram aí a sua oportunidade para retornar, mas Choi aproveitou a ajuda da missão humanitária, e dirigiu-se para o Japão. Recebera a notícia de que os seus pais haviam-se juntado ao honroso grupo dos seus antepassados.

Voltar a casa, após tanto tempo, revelou-se frustante. Kato Choi não era mais o homem que tinha sido. O sentimento de apaziguamento que sentira nos primeiros anos na Coreia, e que tinha sido idêntico ao que o assolara enquanto fugia pela segunda vez, não estava presente em si enquanto atravessava as ruas de Tóquio, apreciando o reflorestamento da cidade e a nova arquitectura baseada num material extremamente resistente, mas muito parecido com papel de bambu. Aquela deixara de ser a sua terra. Ele tinha pertencido à Matsuchita, não ao país dos samurais; e essa, tinha desaparecido havia muito. Desiludido, pegou na miúda e na mulher, e retornaram a uma também mudada Seúl.

Choi tem agora cinquenta anos, mais um filho, e está divorciado pela segunda vez. Vive num modesto apartamento de oito divisões, semi-inteligente, auferindo desafogadamente o regime de segurança social, que foi criado para desencorajar algumas pessoas de procurar emprego e assim diminuir um pouco as pressões sociais que tinham causado os extremos das décadas passadas. Ele não se incomoda, uma vez que os rendimentos são quase tão elevados como se trabalhasse, e ainda tem tempo para se cultivar dignamente. Tornou-se num viciado na Rede, não a largando por força de nada - nem para ouvir o filho, que queria ser escritor, ao retornar de um encontro de artistas, queixar-se que a nova moda temática consistia na descoberta dos valores e das culturas ocidentais, e na sua introdução na literatura. "Logo o Ocidente!", dizia ele, enquanto Choi assistia calmamente a um desafio de sumo, imerso em recordações agradáveis. "Se ainda fosse a Malásia... algo perto de casa. Mas os Europeus? Portugal? França? O que nos interessa o que pensem, o que façam, ou o que lhes poderá acontecer? Estão tão longe!..."

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Autor:
Luís Filipe Silva