Conceito de Luís Filipe Silva

Ficção Científica, Fantástico, Surrealismo, Realismo Mágico, Terror, Horror, Ciberpunk e História Alternativa - e por vezes, se fôr de excelente qualidade, ainda fechamos os olhos a um certo Mainstream...

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Conto

 

Tríptico: A Paixão de um Imortal

 

Luís Filipe Silva

 

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Painel da esquerda

Ele é um estranho. Continua um estranho, desde que nos conhecemos, essa condição não mudou. Costumava pensar o contrário; iludi-me, ao imaginar que, com um bocadinho de paciência, e um carinho à mistura, aquela casca dura ir-se-ia quebrar, e eu poderia observar o interior, perceber quem era o homem que eu amava, fazer com que uma parte sua se tornasse minha para sempre.

Não que em certa medida isso não tenha acontecido. Mas a parte foi escolhida por ele: a mesma que mostra a todos, no dia-a-dia, um ar de indiferença calculada, ocasionalmente envolvendo-se em assuntos mais delicados, mas nunca com paixão, nem por muito tempo; retira-se mal note que o envolvimento se torna demasiado pessoal, ou quando pensa que está a mostrar muito de si próprio. Oxalá ele não fosse assim. Eu sei que ele tem capacidade para dar, e para receber, mas teme. Teme viver. Teme sentir. E não percebo porquê.

Alguma coisa aconteceu no seu passado, no cofre inexpugnável que jamais me deixará vasculhar. Tão terrível, que o persegue nos sonhos. Ele tenta fugir mas não consegue. De noite, murmura no sono, palavras inacabadas mas cheias de dor; não consigo percebê-las, mas parecem ser quase sempre as mesmas - e há um nome, um nome continuamente repetido: Carolina. «Então, é uma mulher!», pensei, quando o ouvi pela primeira vez, imaginando logo que me estaria a traír. Mas os dias passaram, eu seguia-o, e nada acontecia. Ele não me estava a traír, amava-me; isso podia perceber eu, instintivamente. Uma mulher sabe. Cheguei, portanto, à conclusão que era assunto do seu passado. Mas, se era, porque não me contava nada? E o que seria tão forte que, mesmo após dois anos de estarmos juntos, ainda o fazia dormir com aquele nome na boca - e a inquietação constante, os longos períodos de choro, e o acordar no meio de gritos?

Espicaçada pela curiosidade, efectuei uma pequena pesquisa por conta própria. Fui ao Registo Civil e procurei a certidão de nascimento; queria saber quem eram os pais, onde moravam - talvez pudesse ir falar com eles, com alguém que o tivesse conhecido. Mas, surpresa minha!, não existia nada. Nenhum documento. Nenhuma informação. Nem dele, nem de pais, irmãos, tios, ou o que fosse. Tudo supostamente desaparecido durante um incêndio no Registo, dez anos atrás. E nunca reposto por ele.

Sim, era estranho. Ele, nem Boletim de Saúde tinha. Nada, nada que indicasse que estava vivo.

Mas, então, o que tinha ele que me fizera apaixonar? Já fiz essa mesma pergunta a mim própria, muitas, muitas vezes. E quando tento dar uma resposta, vou deparar sempre com a ocasião do primeiro encontro, a primeira imagem que tive dele. Debruçado sobre um copo cheio de filosofia, num bar. Atraíu-me, a sua figura magra, os olhos serenos e confiáveis, milenários, como os do meu avô: repletos de sabedoria. E no entanto, perpetuamente assustados, os de quem desperta num local que não reconhece e percebe que está perdido. Simultâneamente jovem e ancião. Precisava de uma mãe, percebi no próprio instante. Alguém que recostasse a cabeça dele no colo nos momentos difíceis e a afagasse, em silêncio; alguém que suportasse as suas explosões de fúria e não se queixasse; alguém que o podesse aconselhar e compreender. Um apoio; uma medida de comparação e correcção: alguém a quem pertencer. E eu quis protegê-lo. Suponho que, à minha maneira, também estava a precisar de um filho.

Dois anos se passaram, e nada mudou... a não ser que se instaurou a rotina, uma rotina doce, ao contrário do que seria de se esperar. Não casámos; ele não quis. Deu uma desculpa parva, disse que era um artifício desnecessário a quem realmente se ama. Argumento com o seu quê de romântico, não se lhe negue... mas eu devia ter retorquido que o casamento é também uma forma de exteriorizar esse amor, como o sexo; uma forma de garantir estabilidade e segurança ao casal (não muito certas, com a quantidade de casamentos falhados, hoje em dia, mas porque devíamos parar de tentar?). Não disse. Conhecia bem de mais o tipo dele: fogem quando são pressionados. Precisam de tempo, de paciência, como uma escultura delicada. Por isso aguentei e aguardei; mas principio a suspeitar que não devia.

Porque um dia perguntei-lhe «Já foste casado?»

Começou com a manobra habitual de mudar subtilmente de conversa, sorrindo como se para pedir desculpa - mas eu mantive a posição e perguntei de novo.

Acabou por responder que «Sim».

«E o que aconteceu?»

Suspirou; um suspiro muito profundo. «Ela morreu.»

«Ah. E... o nome da tua mulher era... Carolina?»

Voltou-se para mim como um animal selvagem. Estava furioso. «Nunca! Nunca mais pronuncies o nome dela!»

É inútil dizer que isso me maguou muito. Ainda hoje não esqueci completamente as suas palavras.

«Por que é que és tão teimoso, tão fechado?», gritei-lhe. «Por que é que não queres ser feliz? A vida é tão curta, Raúl, tão curta!»

Ele não respondeu.

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Autor:
Luís Filipe Silva