Conceito de Luís Filipe Silva

Ficção Científica, Fantástico, Surrealismo, Realismo Mágico, Terror, Horror, Ciberpunk e História Alternativa - e por vezes, se fôr de excelente qualidade, ainda fechamos os olhos a um certo Mainstream...

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Conto

 

Memórias do Futuro

 

Luís Filipe Silva

 

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Bobby didn't like the world much after a really good movie in any case; for a little while it felt like an unfair joke, full of people with dull eyes, small plans, and facial blemishes. He sometimes thought if the world had a plot it would be so much better.

Stephen King

 

Decidimos hoje o futuro do nosso filho. Seria um médico famoso, especialista em neurocirurgia remota; aos vinte e oito anos descobriria um método prático para remover tecido danificado do cérebro humano e substituí-lo com tecido de crescimento, através da utilização de ultrassons para dar ordens aos nanobôs cirúrgicos, contrariando a prática corrente que preferia a comunicação electro-magnética. A primeira operação com sucesso seria executada num paciente que tinha vivido em estado vegetativo durante quinze anos, e que a família mantivera vivo, a aguardar que a tecnologia se desenvolvesse para o salvar. Esse paciente encontrava-se hoje a brincar alegremente nas praias do sul: tinha onze anos e não fazia a mínima ideia que, na data em que receberia o doutoramento, uma pequena veia iria rebentar no seu cérebro e o faria mergulhar num sono profundo e demorado. Os pais, tendo sido avisados do destino do nosso filho, vieram cumprimentar-nos e agradecer-nos por tudo o que de bom ele lhes iria trazer.

Foi a primeira comprovação real de que tínhamos decidido bem, embora a escolha daquele futuro tivesse implicado uma fatia muito grande dos nossos ganhos actuais e futuros. Mas as opções eram limitadas. A geração vindoura atravessaria um período calmo em termos sociais, sem desafios nem crises que implicassem o surgimento das grandes personalidades públicas. Poderia ter sido músico ou escritor, ou mesmo estadista. Médico pareceu-nos nobre. O meu pai foi médico, de uma forma modesta e limitada, pois os meus avós não tinham muitas posses. Trabalhou durante décadas num pequeno consultório com vista para o centro comercial, sem viajar nem fazer grandes gastos, para me poder dar o melhor futuro que lhe fosse possível. Empenhou-se ao máximo, mas eu nasci e cresci sem dívidas. Foi o meu maior mentor na vida. Queria que o meu filho lhe seguisse as pisadas.

Felizmente, era tudo uma questão de dinheiro, agora. Não conseguia imaginar como seria no tempo do meu pai. Como teria para ele sido possível arriscar e confiar no futuro sem saber o que iria acontecer, sem se poder planear o progresso e o desenvolvimento do filho. Morreu cedo de mais, antes de me ver pai, antes de ser avô, um homenzinho triste e derrotado pela vida, a quem a mulher abandonou para se casar com um artista. Não queria que o mesmo acontecesse comigo. Não queria ficar na ignorância do que estava reservado à minha descendência - um livro a que nunca conheceria o fim.

Talvez o meu pai não aprovasse o que ajudei a montar. Naqueles tempos, a ideia do livre arbítrio confundia-se com a identidade do "eu", e qualquer ataque à liberdade do indivíduo punha em causa a legitimidade da prática ou da invenção. Mas não seria mais perigoso manter a sociedade desgovernada, sem um plano e uma orientação, à mercê do progresso e dos caprichos humanos? Não seria mais perigoso deixar os assassinos potenciais à solta, desenvolvendo-se no meio de nós, alguns tornando-se em ditadores políticos ou religiosos? Gostariam que o vosso filho se tornasse num deles?

Tínhamos os meios para controlar a situação. A informação gera mais informação, o progresso tende para o progresso. Quando a sociedade se tornou demasiado complexa, passou-se oficialmente o controlo para as inteligências artificiais, que na prática já o detinham. O futuro, pelo menos em traços globais, tornou-se moderadamente previsível e muito mais seguro. Sabia de antemão quem era o meu filho. O que o fazia mexer, o que o irritava. Com quem se casaria. Quem o abandonaria.

Ele, contudo, não podia saber, para não contrariar o destino que estava traçado. Podia romper para sempre connosco, se descobrisse antes de tempo. Mas só lhe iríamos contar quando ele próprio compreender, quando também for pai. Sabíamos desde já que iria barafustar, mas acabaria por compreender. Pois que pais, podendo, não desejariam o melhor para os seus filhos?

 

Conto galardoado com o Prémio Feira do Livro Amadora 1999
(c) 1999 Luís Filipe Silva

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Autor:
Luís Filipe Silva