Conceito de Luís Filipe Silva

Ficção Científica, Fantástico, Surrealismo, Realismo Mágico, Terror, Horror, Ciberpunk e História Alternativa - e por vezes, se fôr de excelente qualidade, ainda fechamos os olhos a um certo Mainstream...

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Conto

 

Ionesco à Solta

 

Luís Filipe Silva

 

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(...) tudo se resume a uma frase (...)
in Luís Filipe Silva, Ionesco à Solta

 

Uma tarde Bernard Croixix tardou em voltar do trabalho na propriedade agrícola, apenas para ser encontrado horas mais tarde debaixo de um irrigador em funcionamento, desnudo e imóvel e praticamente catatónico, de mãos e pés profundamente enterrados no solo, e dezenas de pequenos tubérculos a brotar-lhe das costas - e assim teve início.

 

Arthur sempre a criticara pela escolha de literatura com que se fazia acompanhar na faculdade, sagas de fantasia compostas por múltiplos tomos de gigantescas proporções, ao nível de pegar nos livros e agitá-los no ar perante os colegas, reclamando contra a natureza de um imaginário tão fútil e desgarrado da existência humana, e contra a excessiva quantidade de palavras, como se - dizia ele - uma história reduzida à essência não pudesse ser contada em meia dúzia de frases elementares... tornando-a pequena e ridícula em frente à turma, menosprezando o gosto dela apenas porque era o de uma mulher... pelo que foi com um sorriso disfarçado que ela recebeu a notícia de que ele fora um dos primeiros afectados pela epidemia e que se transformara, vejam só!, num grifo.

 

«Vejam como de tão singela estrutura deriva toda a ecologia terrestre, como embebido no código se encontra a chave para qualquer organismo, como a partir da sua leitura correcta se pode recriar todos os seres que povoaram e povoarão este planeta», dizia o professor num estado afogueado, saltando vertiginosamente de esquema em esquema, quase em estado de veneração perante as imagens de ADN projectadas no quadro, tão excitado que se tornava assustador, «embora seja uma leitura lenta e difícil, pois esta verdadeira biblioteca de Babel da vida apenas se manifesta perante desafios do meio ambiente, e logo a revelação de todo o seu potencial demora milhões de anos, durante os quais as espécies sucedem-se lentamente, os seres nascem e morrem um por um, tão lentamente que é possível que o sol esfrie e a vida na Terra morra antes de se esgotarem as possibilidades... o que é lamentável... isto é, a não ser que demos um empurrãozinho ao processo... », e concluiu com uma piscadela cúmplice de olhos, cujo significado completo os alunos que sobreviveram apenas viriam a perceber anos depois.

 

Aproveitando a distracção dos colegas do Departamento de Saúde perante os gráficos que exibiam as zonas afectadas e os prováveis vectores de transmissão do vírus, Michel puxou as mangas da camisa para não lhe verem as escamas verdes e brilhantes, e ajeitou o colarinho que lhe tapava os traços laterais no pescoço das guelras ainda em desenvolvimento.

 

Depois daquela noite bizarra, Amélia soube que não conseguiria voltar a encarar o marido da mesma forma, que um elo fundamental se quebrara entre eles, pois agora percebia finalmente o que sempre sentira faltar ao casamento, aquele contacto primordial, a capacidade de ser verdadeiramente entendida e apreciada, que ele sempre fora e sempre seria incapaz de ver, mesmo após tantos anos juntos, e que agora a voz, uma mera voz durante um mero par de horas, a voz sem olhos, a sua voz que brotava, num volte-face de extrema ironia, da boca dele enquanto dormia, essa voz conseguira tão bem...

 

«Receio, meus senhores, no estado de pânico em que a nação se encontra», disse o Primeiro-Ministro, de olhar pesaroso como nenhum dos conselheiros lhe testemunhara, ao assinar o acto de criação de zonas de quarentena, «teremos acabado de entregar aos militares uma excelente desculpa para o genocídio.»

 

Aprendera em muito tenra idade que se a vida lhe oferecesse ovos, devia fazer deles omeletas, e se bem que a Sra. Evione sentisse a falta da receita para a situação particular, decidiu não questionar o que o destino lhe reservara e cuidar das suas plantas, como boa jardineira que aprendera a ser após a meia-idade, adubando devidamente a terra, regando-as e à família todas as manhãs e procurando ignorar as vozes lentas, arrastadas e vegetais, os olhos mortiços, outrora cheios de vida, outrora seus filhos, que a incitavam a juntar-se-lhes a eles, a fixar raízes, a endurecer a pele, a ficar assim, estática, como as árvores.

 

«Se estamos todos ligados, se respiro o ar que exalaste e alimento-me da planta que fez em tempos parte de ti e os organismos da nossa pele percorrem gerações durante o nosso aperto de mão, onde é que eu acabo e tu começas, onde está o mundo exterior a nós?», mas a rapariga, embora em lágrimas e fascinada pelas enormes asas que lhe cresciam das costas e se curvavam sob o tecto do corredor, não quis sequer tocar-lhe no rosto ou sentir a textura das penas, com medo do contágio, e fugiu nessa noite num barco militar para o refúgio instalado nas ilhas, para longe dele, para sempre.

 

Amélia começou a chegar cada vez mais tarde do emprego, quando já fosse noite e o marido tivesse adormecido entretanto, pois apenas queria estar com aquele homem maravilhoso que habitava dentro dele, aquele homem que ele jamais conseguiria ser enquanto desperto, aquela voz que a desnudava com palavras, aquele ser que começava a amar.

 

Petra não tinha parado de gritar desde que vira o primeiro casulo emergir de entre as pernas, e agora que eram às mãos-cheias no meio do chão e continuavam a sair por entre as coxas ensanguentadas, e que ele próprio não conseguia parar de pisar, um por um, Alberto amaldiçoava-se por não ter chamado o controlo sanitário e deixar que fossem eles a provocar o aborto.

 

O Secretário de Estado engoliu em seco ante as conclusões apresentadas, sentindo os olhares de crítica calada dos conselheiros do ex-Primeiro-Ministro ainda no activo, sabendo que aguardavam que falhasse (ele que durante anos ansiara por protagonismo e poder, e agora, tendo alcançado finalmente os objectivos no espaço de meses por exclusão de substitutos saudáveis, percebendo que não estava pronto, jamais estaria pronto), engoliu a bílis de pânico que lhe subia do estômago e pediu, com uma voz que tentou controlar, que lhe explicassem com mais detalhe porque pensavam que o organismo em causa era uma arma genética, e quem seria o culpado.

 

Mas que interessava às gentes daquela aldeia que o viajante tivesse apenas uma normal deformação do tronco, uma doença de nascença já conhecida de outros tempos e baptizada até com nome científico, totalmente inofensiva, se aos olhos deles parecia um dos infectados, que lhes interessaria as súplicas do rapaz para não ser queimado vivo, se eles já não eram pessoas mas animais encurralados a um canto a lutar pela sobrevivência?

 

Não penses que entregas o meu filho, pensou Marisol quando Juán lhe passou o panfleto e começou numa argumentação cuidada do que deveriam fazer - como se ela não percebesse a cobardia dele, o medo profundo pela criatura negra, estranha e bela em que o miúdo se tornara, um felino primordial que ela alimentava a ratos para os vizinhos não desconfiarem e que ainda assim, ainda assim, continuava a ser o seu grande orgulho, Antes entregar-te-ia a ele.

 

Compreendeu finalmente, para seu grande espanto, que jamais passaria daquilo, de uma voz à distância, incorpórea, que lhe ecoava dentro da alma e todas as noites lhe mostrava como a sua vida era um enorme e vazio espaço de solidão, uma voz que não podia tocar nem beijar nem amar fisicamente sem acordar o marido e encarar nos olhos a razão da sua amargura

 

O que ninguém assumiria, por questões de vergonha e pudor, era que as buscas nocturnas feitas pela calada e resultado de denúncias anónimas, trazia a todos uma sensação de alívio, pois na manhã seguinte haveria menos um monstro ou deformado a passear-se entre eles na zona de quarentena.

 

«Ora, porque a vida é um teatro do absurdo», respondeu o professor, encarando com uma paz beatífica a dúzia de homens nos fatos isolantes, as armas apontadas, as paredes cobertas de estantes e livros agora derrubados na pressa do arrombamento, o trabalho mais importante da sua vida exposto no ecrã do monitor, e fechando os olhos, antes que conseguissem impedi-lo, premiu o detonador.

 

«Então, quando é que te resolves a contar a este filho da mãe sobre nós os dois?», perguntou-lhe uma noite, com maus modos, a boca dele, enquanto o dono dormia, e Amélia, não querendo enfrentar a resposta óbvia que ambos conheciam, e detestando-se por isso (mas também não aceitando que a pressionassem), abanou o marido suavemente até que acordasse.

 

«Já não sou mais o pai deles...», e ainda assim, apesar de Michel não o admitir, não era mágoa que lhe motivava os actos mas um êxtase líquido, uma pura vontade de mergulhar nos oceanos e descobrir-lhes os segredos, fascinado pelo novo ser em que aos poucos o seu corpo o transformava.

 

Onde estivera um quarto, existia agora uma selva em miniatura, na qual árvores frondosas suportavam lianas e vegetação rasteira, insectos trepadores e até alguns que voavam, lismos e flores cobriam a estrutura da cama, que soçobrara ante o peso e parecia estar a ser aproveitada para materiais orgânicos e metal, pela janela caía o tronco coberto de largas folhas que recebia a luz solar e se imiscuíra na conduta de água com raízes profundas, e tudo estava ligado a tudo, uma perfeita e completa ecologia, com sons à mistura, um tudo-nada de humidade abafada e os olhos da avó - os olhos matreiros mas cansados de velhota no fim da vida - a observá-lo, multiplicados, de cada um dos troncos, com uma energia que não tinha igual.

 

Que poderiam mais dar que não tivessem entregue de livre vontade, quando lhes fora pedido - a eles, cidadãos comuns - que pegassem em armas para os quais não estavam treinados e substituissem os soldados tombados pela doença, e que abandonassem as famílias em prol da comunidade, que mais poderiam dar agora, que escasseavam os meios, os transportes, o combustível, e a esperança?

 

«Não escolho nenhum dos dois», e dito isto, Amélia disparou.

 

Atirou-se do cimo da ponte completamente nu, ao encontro da amante líquida, e embora para ele o momento fosse de júbilo, a quem o visse lembraria uma pedra preciosa em forma de anel, captada nos breves instantes antes de ser entregue às ondas e ao esquecimento, memória rejeitada de um passado traidor e um futuro que não virá.

 

O rosto da investigadora estava, como sempre, abatido e envelhecido por semanas de profundo desgaste e cansaço, mas desta vez ostentava um sorriso aberto, vitorioso, e na mão esquerda um pequeno tubo de ensaio com... (o coração de Joshua parou-lhe durante instantes) a cura?

 

Nenhum feito consciente e planeado da humanidade poderia competir com aquela torre imensa, complexa, um verdadeiro habitat feito de carne, composto por milhares de corpos entrelaçados, nascido do instinto de uma espécie-colmeia e agora refúgio dos últimos milhares de gentes transformadas, que por ela trepavam inconscientes da mira da arma e da lenta mas inexorável, contagem decrescente.

 

«Para concluir a apresentação, caros colegas, e agora que tantos anos passaram sobre o ocorrido, creio que podemos apreciar mais friamente o trabalho realizado na concepção do Shape-shifter, e a eficiência como o mecanismo do retrovírus foi aproveitado, pois nele tudo se resume a uma frase: usar o corpo como matéria-prima para uma nova ecologia, auto-suficiente na maior parte dos casos, é partir da vida para criar uma vida de complexidade superior.»

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Autor:
Luís Filipe Silva