Exposição Prolongada à Ficção Científica  

   um blog de Luís Filipe Silva


17 Fevereiro 2024

Manifesto a desfavor dos manifestos.

Não à liberdade para dizer que sim!

Não à ditadura das manhãs! Queremos dias que comecem à hora do chá, ou terminem antes de almoço; dias feitos apenas de tardes e crepúsculos. Queremos janelas entaipadas e luzes acesas até o sol ir bem no alto, e saudar com um «bom dia» quem apareça a meio do serão para o pequeno-almoço. Porque há-de a meia-noite estar condenada a acontecer em plena escuridão? Que venha às três da tarde, se lhe aprouver!

Não à prisão do espectro que submete as cores à sua ordem! Que se torne verde cor primária, e que se faça do azul, o primeiro da sequência – ou então o último –, e se ponha no centro o violeta, para lhe dar oportunidade de brilhar.

Pela emancipação das notas musicais! Faça-se cada uma, livre e solta, desligada das pautas e divorciada das escalas, senhora do seu destino, sem que a considerem um passo intermédio entre outras duas quaisquer.

Contra a hierarquia das letras, que dita quem se pode agrupar e quem jamais se junta! Torne-se o «J» vogal, ande o «T» de mãos dadas com o «F» e o «Z», ponha-se a maiúscula no final da frase em vez de no começo. E contra a exclusão dos acentos e sinais de pontuação! Que sejam considerados membros de pleno direito dos alfabetos, uma vez que contribuem em igual medida para a legibilidade dos textos.

Contra a tirania das capas que oprimem o miolo dos livros! Porque se afirmam representantes, mesmo que mintam; porque se adiantam ao texto e prometem o que nunca consentiram as respectivas palavras; porque são descartáveis e mudam de edição para edição, ou até pulam para outro livro, com a infidelidade que se lhes conhece; porque se apropriam do prestígio do fólio e se pavoneiam – apenas elas – em todos os anúncios e montras.

Façam-se porta-vozes as folhas em branco, e secundários, os títulos!

Façam-se livros só de notas de rodapé, autónomas e independentes, como há muito merecem! E em nenhuma parte destes livros se inscrevam nem se relembrem os dominadores excertos de base que a elas remetem.

Não à subserviência dos afluentes, esses fluxos menosprezados impedidos de ascender a outra categoria, como se existissem para o mero enriquecimento dos rios em que desaguam!

Contra a ditadura vertical das escadas! Porque há-de ser a horizontalidade apanágio dos passeios? Porque negar aos degraus a ondulação da vida, que, sim, sobe e desce, mas também recua e caminha em círculos? E se o universo é tridimensional, porque equacionar as subidas com sinónimos de êxito (e também lições de queda), enquanto as descidas são a temida via para os infernos?

Não à insistência dos caminhos em determinar destinos! Que seja de quem caminha a decisão de por onde ir.

Contra as curvas, por imporem desvios aos propósitos rectos e confundirem os sentidos! Por obrigarem a seguir para os lados, e por vezes retroceder, quem só pretende avançar. E nesta lógica, contra as rectas também, pela sua entediante e banal previsibilidade que não encerra mistérios nem desafia o espírito humano!

Contra o ir antes do voltar! Que tenhamos por opção chegar sem nunca termos partido.

Não às consequências! Sem estas críticas sentenciosas, todos os actos seriam puros, inocentes, ingénuos ou inspiradores.

A favor da transitoriedade dos nomes pessoais! Porque manter o nosso nome – um nome imposto por outros, antes de se dominar sequer o dom da fala – ao longo de uma vida que, por definição, não é imutável? Varie o nome ao sabor das etapas da vida, dos gostos, humores, ideias, ou das simples horas do dia.

Não aos guarda-chuvas, às galochas e sobretudos! Não às sandálias e aos fatos de banho! Não às camisolas e às saias e às calças! Não à roupa em geral, que se intromete na conversa entre o corpo e a natureza de onde nasceu.

Em defesa do desfecho desgarrado, da conclusão finalmente solta dos argumentos, do final sem início! Que possam mostrar o seu valor, saindo da sombra de tudo o que os precede e que nem sempre lhes faz jus.

Contra a exclusão do que se omite! Porque no pouco está o todo, e no pequeno está o grande, tal como está no pequeno e em tudo de intermédio, e que, não sendo dito e considerado, sedentário se torna, e logo esquecido, e logo incompleto.

E por fim, não a tudo o que atrás foi dito! Que venha o fim das imposições e o descasar dos átomos e a exploração infinita do individual, na consagrado mistura a livre palavras novo que alcançar um das sentido consiga mundo para justo verdadeiramente!

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20 Agosto 2023

Ler é um acto solidário. 

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07 Agosto 2023

Assim em França como... Negrito meu. «Il n'est donc pas exagéré de dire que, globalement, les traductions de l'anglo-américain font vivre les collections de science-fiction des éditeurs français et que la publication d'auteurs français est largement au prix de celle des auteurs américains.» (Gouanvic, 1994).

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19 Março 2023

Quando Waters se põe a balir durante os acordes de abertura de «Sheep» (Animals), a tão óbvia associação com os despojados da sociedade que nem requer explicação, confesso que me encolhi de constrangimento. Se por um lado, é admirável que um artista defenda as suas metáforas ao extremo, por outro, estando o magnífico ecrã suspenso repleto de ovelhas voadoras, aconselha-se um pouco de subtileza para ajudar à digestão. Que vida foi a tua, cantor, que te faz imitar um ruminante diante de milhares de espectadores em plena terceira idade? Bem, e depois surgiu o balão em forma desse animal a rodopiar sobre a plateia, dando uma volta completa ao recinto, e eis-nos mergulhados em pleno imaginário pinkfloydiano.

As legendas esclarecem que o álbum foi concebido em homenagem a Orwell. De facto, as referências aos porcos, aos cães e às ovelhas abundam, e ajudará ao entendimento algum contacto prévio com o Triunfo dos Porcos. Ouvi com interesse particular, por ser a primeira vez que retornava às composições desde que traduzira o livro para a Livros do Corvo (publicado durante o frenesi que se seguiu à entrada das obras em domínio público), e queria aperceber-me se a minha reacção mudara. Mas Waters optou pelas peças mais sinfónicas, e a mensagem esbateu-se. Considero Animals a segunda obra menos marcante da pentalogia final (após The Final Cut), e sobreviveu principalmente pela imagem icónica do porco sobrevoando a central eléctrica de Battersea. Sinto agora a falta de um tema dedicado ao cavalo Maciço.

Que temas políticos façam parte do arsenal de Waters não espantará ninguém. Por outro lado, que a sua abordagem seja superficial e demagógica, com fortes inclinações esquerdistas, é talvez o mais apropriado a um roqueiro: se Bono e Waters e Geldorf tivessem realmente um pendor estadista, fariam comícios e não espectáculos. Ainda assim, não se lhes pode censurar os idealismos, porque também os tivemos, quando éramos jovens e a música representava um estado de graça, uma forma de imortalidade perene, a que desaparece com o retorno do silêncio. Não mudámos o mundo como sonhado, pois este pesa e há (espanto!) quem empurre do lado contrário. Nós evoluímos para versões cínicas e desencantadas - ou desconfiadas das crenças -, mas as canções da nossa adolescência cristalizaram no tempo, obrigando os seus criadores a uma eterna rebeldia que, com a repetição, se mecaniza e nega a espontaneidade de nascença. Aquilo que This is not a drill nos oferece é uma reinterpretação - uma mudança subtil da mensagem de algumas músicas, insólita e inesperada por, precisamente, as modernizar, e neste processo, dar-lhes barbas e cabelos brancos, trazê-las novamente para a nossa beira.

A mudança começa a sentir-se logo ao início, quando Waters se senta ao piano colocado em palco e, exibido em grande plano pelas várias câmaras dispostas ao longo do perímetro sob o controlo magistral da regie, apresenta a sua proposta da noite: estamos todos juntos num bar. O que há num bar? Um espaço intimista em que nos podemos sentar, tomar um copo, conhecer pessoas e conversar. Falta-nos muito conversar, afirma aquele que, no início do espectáculo impôs com veemência, a quem discordasse das suas opiniões políticas, que «bazasse» do recinto («fuck off to the bar», para ser mais exacto. Roger says «fuck» a lot). E depois apresenta a primeira parte de uma peça nova, composta «durante o Covid», que integrará um futuro álbum. É Waters vintage, com as habituais diatribes sobre a insensibilidade da guerra («napalm com cornflakes»), a violência policial (com vários exemplos retirados da imprensa, ainda que limitados ao mundo ocidental, porque só nós é que somos maus), e a exploração pelos ricos (evocando o episódio dos Water Protectors em Standing Rock)... mas o tom tornou-se quase resignado, em vez da denúncia irada; qual síntese de si mesmo, nos temas e até nos acordes e na estrutura, cujo encerramento ilustra um posfácio, ou índice, do muito que já se disse. Eis um homem com uma missão, como diriam os seus conterrâneos.

Mas entretanto chega-nos a viragem insólita. Waters faz de Syd Barret o Moisés do seu percurso musical - foi ele quem lhe afastou as águas da dúvida, embora nunca visse a terra prometida -, e usa o ecrã multimédia para conversar conosco, contando uma história de origem, a de dois amigos com um grande sonho. E termina: «When you lose someone you love, it does serve to remind you: this is not a drill.» A música é, obviamente, Wish You Were Here.

Estamos assim perante um Waters contemplativo, sensível... manso? É difícil relaxarmos na presença de um urso, mesmo quando não ruge. Ausentes dos rol de fotografias, memórias, agradecimentos e menções, ficaram David, Nick e Rick, como se Pink Floyd fosse um sonho breve.

Não obstante, a percepção crescente é que estamos perante um espectáculo muito menos agreste e revoltado que o anterior, Us + Them - este, sim, menos rock que comício, excessivo e inclusive desagradável... tão desagradável que quase recusei repetir a experiência (e não fosse a idade avançada do artista, talvez optasse por ficar em casa). Imagino que Waters não ficou insensível às reacções intempestuosas que então despoletou, ou alguém próximo lhe bichanou ao ouvido que devia mudar de tom, que pensasse no legado, e ninguém atura velhos rabugentos. Lá tentará abordar o tema da Ucrânia - parecia mortinho por fazê-lo -, mas a mera crítica à NATO, perto do final, rapidamente o convence de que os portugueses não vão naquelas cantigas, e volta logo ao reportório para não estragar a magia da noite (não sei o que terá acontecido no espectáculo seguinte).

A cenografia é absolutamente espantosa, com um palco no meio do recinto, completamente cercado por público, em forma de cruz, sobre o qual pende um ecrã contínuo de igual formato. Neste, close-ups em tempo real dos vários membros misturam-se com uma sequência de imagens em que se completa e reinventa o tema das músicas. Se «Bravery of Being Out of Range» é Waters igual a si mesmo, conotando os presidentes americanos de recente data como criminosos de guerra, mas omitindo qualquer referência ao actual carniceiro dos Urais, já a nova versão de «Us + Them» torna-se um espantoso hino à diversidade, ao encher o ecrã de pessoas: rostos humanos. Desaparecem, a seguir, e dão lugar ao triângulo prismático de Dark Side of the Moon, que enche o recinto do chão ao tecto, meia dúzia de prismas de um lado ao outro do palco. Sobre o ecrã negro, surge um traço que o vai queimando como um laser, e que a seguir se transmuta: é agora batimento cardíaco, a seguir, muda de cor, duplica e triplica, forma um arco-íris, e por fim, desdobra-se em padrão xadrez multicolorido, no qual reaparecem os rostos. Uma evidente, e poética, expressão de união na diferença. O espectro da raça humana. E no entanto, canta-se «Brain Damage/Eclipse», há muito criada sob outro espectro, mensagem de alienação e loucura. Estão a gozar conosco? Mesmo na dúvida, as palmas são inevitáveis.

Retoma o triste «The bar». Explica demoradamente de que «roubou» dois versos a uma canção de Bob Dylan, e dedica-o à esposa. Ficamos também a saber que o irmão mais velho faleceu no início do ano - e quando surge a fotografia da família, vemo-lo como o sobrevivente final daquele pequeno núcleo, aquele que acabaria sozinho. Canta novamente sobre o episódio marcante da sua raiva, e consegue ser ainda mais pessoal do que anteriormente. O irmão chegou a conhecer o pai. «I was mercifully spared / Of the moments that they shared / 'cause I was only five months old when Daddy died». O ecrã cobre-se de fumo, apaga-se, também o cantor morreu.

Termina-se «outside the wall». Tal como o melhor álbum de sempre - mas este, o muro final, é intransponível. Resta apenas o legado, a memória, e a insistência da denúncia. «Some stagger and fall, after all it's not easy». Pois, mas como reconheceste atrás, «it's so easy to get lost, isn't it?».

Bem, regressaste, Roger. Mesmo se for por pouco tempo, e não por completo, ao menos uma parte de ti regressou. Já tínhamos saudades, artista.

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19 Fevereiro 2023

Se o pecado que podemos cometer com a grande literatura é de ignorá-la, quando surge, a sua virtude - ou inefável milagre - é o de conseguir renascer, qual semente que aguarda no solo gelado pelos raios anunciantes do Estio. Mas Stoner teve de esperar primeiro pela transposição da barreira da linguagem de modo a ressurgir em força, como merecia. Seria o outro lado da cerca menos inóspito? Que irónico uma obra americana que trata da paixão pelos livros e pelo conhecimento ter de receber da velha Europa o reconhecimento devido pela sua maestria. Porque é de paixões que este livro trata. O momento em que Stoner se apercebe do amor pela literatura é de uma beleza singular, descrita com precisão e pragmatismo. Tivessem os romances de cordel igual maturidade emocional... mas quem sabe se podemos sentir por um ser humano, alguém que se mexe, reclama, tem marés, padece de humores, muda com as estações, tanta intensidade de sentimento como a que nos desperta um texto escrito? Objecto talvez inanimado, imóvel, constante, mas também, que nunca se cala, que ressuscita ante a mais simples leitura, reagindo ao espaço e ao tempo com o mesmo fervor dos seus pares mais recentes, qual solução química exposta ao ar. Afinal, é eterno e não sabia. Haverá maior amor que o sentido pelas infinitas possibilidades dos parágrafos? Stoner mostra-nos que não. Banal foi a sua vida - excepto nos livros, e é com um livro que a dele termina, um livro nas mãos, sempre um livro nas mãos, a capa que se fecha, última página lida, um suspiro ausente. Na sua mundanidade, alcançou a glória. Deixando o personagem uma discreta marca, na forma de um par de obras de juventude, ligeiramente elogiadas, embora vincadamente ignoradas - contudo, quem sabe o que lhes acontecerá depois do final, na sequela que, espera-se, jamais se faça? Quem sabe que pós-vida terão, ainda que a vida dos livros só termine quando queimado o último exemplar? Devia Stoner ter sido um protagonista mais exigente, ambicioso, aventureiro? Acontece que a alma condiciona as nossas escolhas, e os caminhos que trilhamos são os da voz do narrador da nossa vida. Ele optou pelo enredo conhecido, porque quis descobrir o próximo capítulo, não desistir a meio. E depois, terminou, como todas as histórias. Como todos nós. Obrigado, John Williams, por apontares tão factualmente, mas de forma perfeita, aquilo que nos une. Nunca saberás que Stoner foi a tua Katherine. Mas ela voltou para nós. Sim, ela voltou.

capa do livro

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12 Fevereiro 2023

Para que serve o «Cânone»? Não, não questiono a necessidade de haver obras célebres, porque todos precisamos de referências, de pontos de encontro, nem que seja para melhor nos desentendermos, mas, sim: para que serve a edição da Tinta da China, assim denominada? E porque motivo (que não o provocativo para chamar a atenção e ganhar uns cobres - falo de motivos literários legítimos) teve este título? Se a própria introdução avisa que «(...) não vale a pena procurar nele o cânone da literatura portuguesa», não seria mais apropriado chamá-lo «Não o Cânone»? Mas, se o é, porque é o nome que lhe deram, será esse fantasmagórico cânone o dos autores de quem aqui se fala, ou os autores que aqui daqueles falam? E quem os escolheu, a uns e a outros? Menos claro: a quem se destina o livro? Para leitores que deviam conhecer, à partida, todos os autores aqui debatidos? Não terá sido para descobri-los que, precisamente, esse leitor terá adquirido o livro? E porque motivo somos lançados, em certos episódios, no meio da selva, em contra-insurreições de guerrilha antes de conhecermos sequer os lados e os ideais? Afinal, havia guerra? A importância de Herculano é medida pelo que Teófilo pensava dele? E porque há-de ser Teófilo uma autoridade nessa matéria? Não convém perceber, primeiramente, quem foi Herculano - o que comia, o que vestia, se arrotava após a ceia? Que documentário ignorámos, que podcast nos passou ao lado? Ficaram-se as orientações editoriais pelo caminho? Não merecia o Jorge de Sena melhor sorte - uma primeira introdução à sua obra e preocupações, antes de ouvirmos as suas lamentações pela presumida falta de reconhecimento em vida? E defendê-lo com excertos dos seus textos, que o artigo sobre Espanca, apesar de resvalar para igual pecado, ao menos aplica como redenção? Sejamos justos: porque não usar textos de todos estes autores, juntá-los no palco, conceber um livro polifónico, apaixonado, em que cada qual defende, como sabe e pode, o seu talhão? Faz sequer sentido discutir as indiferenças coevas de obras que sobreviveram à morte do autor, sabendo que de outras, talvez então populares, não se fala? (Fernando Namora, anyone?) Se quaisquer discussões sobre cânones pretendem criar mais perguntas do que respostas, eram estas as perguntas que queriam despertar? E para concluir, podemos, por favor, ter um livro apenas com artigos do Miguel Tamen, dos poucos que, aqui, brilharam como pérolas - infelizmente breves - de equilibrismo entre sabedoria e sensatez, articulando perguntas difíceis e essenciais sobre a literatura, e alguns dos seus atletas, com a leveza aparente de que só os mestres são capazes?

capa do livro

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28 Janeiro 2023

Eis a primeira resenha do ano, numa leitura que não despertaria interesse, se não tivesse escutado uma palestra do autor no último festival de FC em Avilés. Obra e criador são dois seres irmanados, mas não realmente gémeos, sendo a primeira fruto de um necessário compromisso entre vontade e capacidade, uma negociação de caminhos, e o segundo moldado por tudo o que se lhe impõe, como a sociedade, a condição humana, a vida. E contudo, ditadores e outros quejandos sempre tenham procurado calar a obra pelo amaldiçoamento de quem a fez, com a habitual justificação de uma pureza do pensamento (técnicas apropriadas entretanto pelas polícias colectivas dos supostos bons costumes, e de quem lhes dá ouvidos e autoridade). Que a associação com ditaduras tenha sido tão imediata revela, talvez, o cancro óbvio que assombra a Utopia descrita em Ceifador. Tradução de uma série juvenil (por moda, dizemos agora jovem-adulto, mas o que é este, realmente, senão um adulto pleno que ainda não se cansou de o ser?) em que os seres humanos vivem para sempre, por obra e graça de uma medicina milagrosa que tudo repara (cair de um arranha-céus é tão irrelevante quanto fazer um golpe no dedo, e até se desperta com memórias intactas!), arriscando, portanto, esgotar os recursos da Terra e encher o planeta de membros desta espécie teimosa. A solução para o excesso populacional? Ora, é tornar as pessoas voluntárias à força no jogo da extinção pessoal - por outras, palavras, matá-las. Entra em cena uma casta de assassinos que dita o fim dessa medicina milagrosa capaz de recuperar o corpo, nas vítimas por si escolhidas. Agindo sob um sistema de quotas, esta premissa faria as delícias de qualquer assassino em série - ou não, talvez a obrigação transformasse um hobby em trabalho, tirando-lhe o gosto... Os praticantes dessa Ordem chamam-se Ceifadores, e a prática da ceifa, uma colheita - opções de tradução adequadas e que ficam na memória. A História atribuiu-lhes imunidade praticamente total, pois matar ceifadores é punível com uma colheita imediata, a não ser que estes se suicidem. Mas até isto acontecer, são obrigados a ir matando sem piedade.

O que dizer desta premissa? Para começar, é uma interpretação curiosa, e bastante cínica, dos futurismos juvenis que se multiplicaram nas últimas décadas, apresentando-nos o que LeGuin chamaria de utopia ambígua: a perfeição com odor fétido. É um futuro particularmente sádico, e possivelmente traumatizante, pois a morte de um amigo ou familiar, se causada por mão humana e escolha deliberada (em vez de ser uma característica inevitável da vida), deixaria marcas na sociedade - aliás, o pavor de quem se cruza com um Ceifador é repetidamente descrito. Estamos perante um custo obrigatório sem contrapartida imediata, apenas uma abstracta promessa de eficiência, tal como o pagamento de um imposto... sendo o causador da morte conhecido, caminhando impune e em liberdade, e capaz de vingança se contrariado. Um preço demasiado alto - parece-me - para a aceitação de uma existência imortal, criando elites que a negam. É de admirar que não se ergam vozes dissidentes (ou ficou a revolta relegada para os próximos episódios?).

O enredo centra-se na educação de dois jovens escolhidos para aprenderem estas artes, uma vez que se ingressa nas fileiras por convite e mérito; ambos terão de sobreviver às provações daquela vida e engolirem a mentira - que colher é um acto humano e justo - que sustenta a sociedade. Eis a consequência óbvia: a actividade atrairia psicopatas, que aqui se retratam como sendo os Ceifeiros que colhem vidas alheias com prazer e para ganhar poder e fortuna - e o fazem também de forma colectiva, em espaços públicos, como forma de espectáculo. Perversamente, o livro faz-nos crer que este acto é menos humano que a eliminação do indivíduo isolado, como se esta escolha não se entenda mais pessoal. E tanto mais perverso é, que as mortes acontecem de forma brutal, com dano físico, em vez da pacífica eutanásia adoptada em Soylent Green.

É impossível concluir a leitura sem sentir um gosto amargo, não obstante a simplicidade da escrita que faz passar páginas com facilidade. Shusterman sabe o que faz, sendo este o primeiro de uma trilogia. Numa era em que tanto se fala de saúde mental, esperemos que os habitantes deste mundo encontrem paz de espírito.

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