Exposição Prolongada à Ficção Científica  

   um blog de Luís Filipe Silva


06 Junho 2021

Uma das histórias que pensei escrever para uma reedição do Terrarium (muito antes de esta se tornar sequer uma possibilidade) prendia-se com a existência de um transbordo Terra-Anel orbital em frente ao Guincho - uma gigantesca nave que amarava ao largo da costa, em pleno oceano, e ia devorando litros e litros de água para obter o hidrogénio destinado a alimentar a fusão nuclear dos seus motores - enquanto carregava e descarregava passageiros e mercadoria. A impulsão para o espaço literalmente ferveria o Atlântico sob si, criando um microclima tropical, quente e abafado sobre Sintra e Cascais - mais uma forma pela qual a vinda dos Exóticos tinha transformado a nossa existência, e arruinado grande parte da nossa identidade nacional. Vestígios desta ideia subsistem na primeira novela do Terrarium Redux, mas a demanda do protagonista impele-o para longe. Se porventura fez esta viagem, foi durante o seu período de inconsciência, dominado pela vontade de Pandora (cujas últimas cenas escrevi inclusive longe deste mar, no outro lado da península, de frente virada ao Mediterrâneo que não figura sequer no livro). Hoje, passando pelo local em que surgiu a ideia original, recupero a visão do mastodonte negro, visível do cimo do Cabo da Roca, pousado tranquilamente nas ondas possantes, indiferentes às ventanias e chuvadas ferozes. Imagino os visitantes de então que, como agora, agarrados às cercas, sofrendo, não com o frio mas com o bafo quente da humidade, aguardariam a vibração que eriçaria pelos e estremeceria costelas, o prenúncio daquele instante em que lentamente ascenderia aos céus com a leveza de uma folha de papel só permitida pela física avançada (tecnologia de grau 3, inacessível aos humanos). Imagino o assombro misturado com desesperança que ver tal poderio lhes causaria, pois jamais a Humanidade voltaria a ser livre, inocente e dona do seu destino.

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02 Maio 2021

Repousa Lyonesse no fundo do mar, ou talvez nele se agite, como a Atlântida escondida debaixo do diáfano manto oceânico, filha renegada ou ambiciosa, que se lançou aos céus mas acabou em terra, exposta e desprotegida como o são as cidades - pois a terra não é mais do que a complacência resignada das águas, que, neste planeta, tudo cobrem e tudo sustêm. Um dia, aquilo que se ergueu além da superfície e tentou fugir submergirá de volta ao eterno sono submarino, esquecerá que o universo existe e ali dormirá até ao último dos dias. O oceano é maior devorador de cidades que o tempo. O oceano destrói as suas ruas e os seus imponentes minaretes, mas o tempo guarda-lhes a memória. O oceano fá-las humildes, o tempo fá-las mitos. Garfos, sinetes, restos de cerâmica, uma estatueta de barro partida, um prato de latão decorado com heróis irreconhecíveis e batalhas que perderam o eco… objecto a objecto, as cidades tentam fugir ao esquecimento com a cumplicidade das marés: pedaços que dão à costa quais palavras sussurradas numa noite ventosa, sugestões de histórias maiores, que ninguém conhece mas todos adivinham. Demonstrando que nenhum autor é imune ao poder dos mitos dos seus, Vance desculpou-se com Lyonesse (ou Léonois noutros berços) para prestar vassalagem ao rei Artur – o seu rei Autor –, e fixou-lhe território, uma época, um povo. Sabendo, contudo, que o fim estava anunciado, que as badaladas já se ouviam ao longe. Perguntais se Lyonesse existiu, se Atlântida foi verdade, e isto vos digo: que importa esta pergunta, se, afinal, elas se encontram, nas nossas frases, ao lado da eternidade?

Pompeias Anunciadas: até 31 de Agosto.

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24 Abril 2021

Se seguis este blogue, sabei por este anúncio que a Editorial Divergência aceitou a minha proposta de organizar uma antologia temática dedicada ao final dos tempos, a esse terrível e temido período de destruição, tragédia mas também de potencial renascimento. Há quase uma década que esta proposta circulou pelas (poucas) editoras do Fantástico, entre Portugal e Brasil, até ser aceite pela Divergência, com quem já organizei O Resto É Paisagem - livro que teve o seu sucesso possível para uma literatura, afinal, não tão emocionante e popular entre nós, como o é, ao longe, noutros países. Emoção é o que se quer, desta vez: descrições exuberantes, mistérios insondáveis, hecatombes de arrepiar a espinha. Inspirada pelos filmes de Hollywood, a antologia quer, antes de mais, demonstrar que também em língua portuguesa se podem - e sabem - contar histórias de grande espectáculo (ainda que com orçamentos mínimos). No papel, ou no ecrã, todos os efeitos especiais são possíveis, e todos têm o mesmo custo, como não se cansava de lembrar, fruto da experiência, o saudoso António de Macedo. Mas não se limitem a esta breve apresentação, pois outra, mais extensa, aqui se encontra, acompanhada do regulamento Fixem a data: 31 de Agosto deste ano. E acompanhem este espaço, no qual deixarei periodicamente interrogações, pistas, mapas, empurrões, imagens, e outras promessas de acepipes que vos anime o palato, como autores e como leitores.

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09 Março 2021

Não obstante a possível, e cruel, leitura política e social do ditado «De pequenino se torce o pepino», infelizmente é normal encontrarem-se evidências da sua pertinência em citações como esta (negrito nosso), em que se comenta uma condição cultural tão peninsular quanto infeliz, e que pode estar (estará, certamente) na raíz do desapego de longa data, também da literatura portuguesa, com os temas do Fantástico:

Estas publicaciones también se popularizaron en España, pero caracterizadas por un tono más educativo y moralizante que las que se imprimían en otros países europeos. Cuando en la península se publicaba La Educación Pintoresca (1857-1859), en Francia nacía La Semaine des Enfants, un semanario parisiense con leyendas y cuentos de hadas que contrastaba con las historias aleccionadoras hispanas. El realismo español había enraizado en todos los ámbitos literarios y la literatura infantil y juvenil no iba a ser una excepción; de hecho, la mayoría de los escritores que se ocupaban de ella lo hacían con fines claramente instructivos. Los mundos fantásticos poblados de hadas y as medievales no tendrían un eco destacable en sus historias hasta finales de siglo.

Pato, Breve Historia de la Fantasía, p.81, Ediciones Nowtilus, 2019.


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07 Março 2021

Na entrevista de Jonathan Carroll à Locus de Março, o autor refere de passagem a decisão crucial, no início de carreira, em que aceitou o desafio da esposa para passarem um ano na Europa como professores, mas que, para tal, sacrificou uma boa oferta de emprego e a sua conveniência pessoal.

That was 44 years ago. If we hadn't gone, I would have probably been a college professor, all that junk. Not that it would have been an unhappy thing. Just different.

E no entanto, é precisamente nas diferenças que a felicidade mora. Nem todas as vidas alternativas suspiram com saudade de outras escolhas.

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08 Dezembro 2020

Brown e Reynolds formam equipa para escreverem a quatro mãos «Dark Interlude», publicada na Galaxy de Janeiro de 1951 [link]. Uma história em que predomina o tema da relação do sul estadounidense com as questões da raça, mas que inclui também outro, mais dissimulado, sobre a supressão da agência feminina, se considerarmos que nunca se chega a conhecer a verdadeira opinião da esposa da vítima (uma vez que, nesta fase final, a rapariga apenas nos surge através do olhar do irmão). De passagem, um mini-enredo que envolve viagens no tempo, como possível justificação para a ingenuidade do protagonista (bem como para a presença desta narrativa numa revista de FC). O título em questão parece remeter uma outra referência, mas a mais óbvia (o capítulo de Sleepwalkers de Koestler, assim intitulado e que designa a Idade Média, a idade das trevas) não é defensável, pois esta obra só teria edição nos EUA em 1959.

O conto de Brown e Reynolds surgiu entre nós pouco depois da sua publicação original, na antologia O Que É a «Ficção Científica»? (org. Victor Palla, Ed. Atlântida, 1959) - como possível resposta a esta pergunta -, sob o título «Interlúdio nas Trevas» (tradutor anónimo, possivelmente o próprio Palla), e logo a seguir em Nove Novelas de Antecipação Americanas (Estúdios Cor, 1964), sob o título «Interlúdio Sombrio» (tradução de Rafael Alberty, e provável organização do mesmo - afirmação que carece de uma análise mais aprofundada). A repetição de escolha do mesmo texto em duas antologias portuguesas de FC é invulgar para a época e inclusive para edições tão próximas temporalmente, pois o racional comercial de uma editora passaria por apresentar material inédito e assim justificar a aquisição pelo leitor. Ainda que o organizador de Nove Novelas desconhecesse a existência da antologia anterior, e partindo do pressuposto que ambos os antologiadores trabalharam com liberdade de escolha (por outras palavras, sem obedecerem ao índice de uma edição estrangeira de referência), é possível fazer-se uma leitura de tal coincidência - que as temáticas abordadas pelo breve conto ressoaram no inconsciente estético dos editores, fazendo-os acreditar que se tratava de uma boa oferta ao público. Talvez a abordagem humanista, centrada no ser humano e não na tecnologia; talvez a crítica aberta às imperfeições do nosso tempo, em contraposição à sociedade utópica de onde provém o viajante temporal; talvez o comprometimento moral da autoridade, que aquiesce e cala - e portanto, legitima - o crime, tal como percebido no paradigma social luso da época; talvez, por fim, simplesmente a questão racial que se destaca. Subjacente à escolha manifestada, encontramos uma percepção subtil do que a FC «deve ser», ou «deve representar», já nessa fase inicial do género na nossa literatura, em aparente convergência.

(Referências - sempre - indispensáveis: Bibliowiki e ISFDB.)

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06 Dezembro 2020

Neste dia, prendas se oferecem. E melhor prenda não há, que Borges sintético mas infito.

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