Exposição Prolongada à Ficção Científica  

   um blog de Luís Filipe Silva


21 Novembro 2021

Estava muito discreto num canto da livraria. De imediato, percebi que era diferente, íntimo, incómodo. Uma colectânea de entrevistas, crónicas, excertos, comentários, apontamentos históricos - e muita memória. Uma forma diferente de retratar uma vida, com vinhetas, quais instantâneos de uma mostra. Em formato gráfico mas também teatral - cada parte, separada pela indicação «cai o pano»; cada passo, um prenúncio da tragédia. Infelizmente, conhecemos o desfecho antes de abrirmos a primeira página. Um poeta merecia melhor. A tristeza dos poetas é precisarem de ser homens antes de se tornarem eternos.

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04 Novembro 2021

Teimo em fazer um texto sobre Dune. Vou na terceira versão. A que prometo sintética e definitiva:

  1. Ignora-se o filme de Villeneuve por nossa conta e risco. É incontornável enquanto obra cinematográfica, e em particular enquanto contribuição para a FC. Afirma: "Pode-se fazer grande cinema fantástico com a seriedade dos clássicos".
  2. Mas tanta seriedade amarra a visão, impede-a de tornar-se uma peça de arte esplendorosa. As casas de Atreides e Harkonnen são demasiado reconhecíveis por um século XXI globalmente ocidentalizado, meras caricaturas para uma fácil identificação do espectador. Precisávamos de cor, ornamentação, costumes bizarros, sons e os ritmos próprios de cada mundo. A avalanche de sensações que assolavam os viajantes à chegada a um novo mundo, impossíveis de antecipar na ausência de Google Maps e documentários (compare-se com a recriação visual da cultura Maia em Apocalypto, por exemplo). Atreides não passa de um ducado higiénico e certinho - e Harkonnen também, mas poupam na luz - , mas ambos sem povo, nem comércio, nem aliados ou (outros) inimigos. A fidelidade ao texto original tem um limite, quando o próprio se esqueceu também de tais pormenores.
  3. A comparação com a obra de Lynch é inevitável, mas injusta, pois pertencem a gerações muito distintas. Cada realizador utilizou os meios disponíveis na época e pelo estúdio. Onde Lynch teve de encurtar e acelerar, Villenueve pode passear descontraído. Onde Lynch se viu obrigado a explicar em detalhe, Villeneuve sabia poder confiar no Povo da Internet para apontarem e explicarem todos os detalhes misteriosos. Lynch arfa, Villeneuve respira. Sobreviveria o Dune de 1985 sem as vozes off, sem as introduções demoradas? Duvidamos… (Sejamos sinceros: Lynch é o pré-requisito de Villeneuve, que reaproveitou a lição aprendida, aplicando muitas das mesmas técnicas narrativas para as audiências desconhecedoras do livro.)
  4. Recordo a história como sendo mais manipuladora e intriguista do que na realidade é. Rever, foi uma revelação, em parte igual a descobri-la pela primeira vez. Na época, transmitia ensinamentos: que as pessoas têm motivos ulteriores aos que afirmam ter, expressos não em palavras mas hesitações, murmúrios e naturalmente, escolhas - e se as identificarmos correctamente, não só nos protegemos das suas influências como podemos tornar-nos os titereiros. Mas nesta revisão, descubro que a manipulação é insuficiente e desconexa. Leto sabia caminhar para uma armadilha… teria realmente ido sem preparativos? Sem assegurar aliados e fazer a especiaria refém, em caso de ataque? Que império é aquele, permitindo escaramuças entre casas na principal fonte de riqueza de toda a gente? Porque não exigem as outras casas em terem representantes locais, para manter a casa local debaixo de olho?
  5. Já agora, a cerimónia da Madre Superiora, quando testa o filho de um nobre na sua própria casa com promessas de dor e agonia... quanto tempo se manteria incólume uma Ordem que assim procedesse? E testa-se assim, com uma só prova, à pressa? Que força de carácter é afinal testada quando a alternativa a perder a mão é a morte pelogom jabar, se até um cobarde saberia optar?
  6. Diz-se que Herbert foi escrevendo, sem rever, para cumprir prazos. É uma pena, porque perdeu-se estrutura e intenção, e a suposta obra-prima fica aquém do que podia ter sido. Por outro lado, é uma obra dos anos 60, das revistas de FC, do mercado de literatura popular norte-americano, e se algum empolamento ocorreu, deriva do que neste género se pode equiparar à expansão do Universo: do grão de areia nasce o mundo, do quintal forma-se o país, do romance barato nasce o culto.
  7. Ficam os efeitos especiais fotorrealistas, diálogos competentes (e shakespereanos, se comparados com os de Lynch), pormenores inteligentes (como o revirar de pupilas durante o cálculo dosmentats) e actuações empenhadas. Houve quem descodificasse diferentes trajectórias no percurso de Paul Atreides - tiro o chapéu a tais críticos pela minúcia da peneira a partir de material tão pobre...
  8. A personagem mais interessante continua a ser a Jessica, mãe do messias, a concubina que jamais será duquesa e no entanto ousou sonhos de grandeza quando desafiou a ordem religiosa que a tinha colocado naquele lugar de poder e deu à luz um filho varão. O seu percurso de vida e as suas estratégias de sobrevivência num mundo dominado por homens e fanáticas produziria uma história muito melhor. Resta-nos o consolo de ter sido encarnada por Annis e Fergusson, duas actrizes bastante carismáticas e encantadoras, ainda que diferentes.

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07 Setembro 2021

O futuro que talvez seja, mas na capa lemos O Futuro Que Não Foi, isto é, El futuro que no Fue - aunque no el original, pois o autor é catalão, e a língua, sabemo-la arma de arremesso - e marca o regresso de Daniel Torres ao universo de Roco Vargas, personagem que escreve ficção científica e funciona como mal-disfarçado avatar daquele seu criador. Agora estamos perante um fac-símile: a revista com as aventuras gráficas de Archí Cúper (sentem o estrangeirismo?) na cidade terrena de Montebahia que, como todo o Sistema Solar interior, se encontra controlada pelas MercAgências, as ditas agências publicitárias. Sim, a publicidade não só se tornou norma como também a força motriz de toda a economia, a ponto de nenhuma instituição social, incluindo as forças armadas, poder existir sem o devido patrocinador. Tudo é oportunidade de venda, incluindo o polícia disposto a perdoar a multa se o infractor assinar o produto que ele representa. (Por outro lado, a sanção financeira não deixa de existir, e só na nossa ingenuidade poderíamos crer num mundo em que as forças de autoridade fossem totalmente autónomas das influências do poder político e financeiro... será, pois, o nosso mundo a metáfora da versão de Torres, e não o inverso?) À ubiquidade dos anúncios chamam os habitante de Ruído, uma conotação quiçá demasiado benevolente, pensamos, ao apreciarmos a cacofonia horrenda da cidade nas vinhetas amplas, que os traços do desenho a fingir-se de pulp de certa forma apaziguam. Embora publicado em formato álbum durante 2021 pela Norma, a história divide-se em capítulos intercalados com notícias e anúncios de época - como tinha de ser. Não é que o enredo seja original, e o formato até permitia maiores voos. Archí é detetive privado e sósia de Robert Mitchum, a quem Roco/Torres atribui uma missão simples: resgatar o objecto roubado a um milionário e que, subitamente, todos procuram pois ameaça perturbar o status quo económico. Montebahia é confusa e inóspita, mas deixa-nos com saudades por mais, bem como a sensação de que, ainda assim, é mais digerível do que o nosso mundo. Recomendado.

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02 Agosto 2021

Um rápido destaque para a retoma da e-zine Somnium, publicação oficial do Clube de Leitores de Ficção Científica do Brasil, com organização do incansável Marcelo Bighetti, num número 116 magnífico sobre pandemia e esperança: 19 contos em mais de 200 páginas. Lá pelo meio, aparentemente, surge um certo português que aqui não nomeamos. Boas leituras de verão!

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01 Agosto 2021

Já aqui aflorámos em curta, mas pertinente, passagem a existência de um pequeno e discreto ensaio intitulado Breve Historia de la Fantasia, que quase soa a português se não fosse castelhano. A autora, Sílvia Pato, é descrita como autora de ficções situadas neste género fantástico, cujo historial percorre, e também de manuais de formação, sem dúvida fonte da sua destreza explicativa, pois o ensaio em questão é de fácil e leve leitura, sem deixar de ser informativo e abrangente - reconhecendo que a Fantasia tem uma extensa tradição anterior aos primeiros laivos da língua inglesa e dedicando uma boa parte dos seus capítulos à evolução desde a Antiguidade Clássica. Infelizmente, quando se adentra naquilo a que podemos chamar de Modernidade, parece perder de vista a costa, e mergulha quase exclusivamente no cânone histórico anglo-saxónico, viajando de Inglaterra para os Estados Unidos e tocando nos familiares marcos, de Tolkien aos pulps à New Wave, os que conhecemos de cor e, portanto, pouco questionamos. Aquilo em que inova, ou a mais informa, está no percurso paralelo da Fantasia em espanhol (principalmente, a de Espanha, mas também refere pontualmente a da América Latina), a nível da literatura, cinema e banda desenhada, a que dá relevante atenção - o que é de louvar. Também de louvar um destaque ao Fantástico no Feminino, à contribuição das mulheres para o género, que nem sempre tem recebido a devida honra de menção nos compêndios. No final, o que importa são os livros e os autores referidos, e esses são muitos, pelo que o livro acaba por ser um excelente guia de leitura. Portugal merecia uma História como esta.

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25 Julho 2021

Zot! é uma banda desenhada sobre super-heróis que, a certo ponto, desiste de falar sobre super-heróis e prefere focar-se nos dramas humanos de jovens de liceu, em finais dos anos 1980, que se encontram embrenhados nas suas lutas pessoais contra os monstros mundanos da vida, obviamente tão ou mais terríveis que os piores vilões das histórias. É uma inesperada e cativante reviravolta que, infelizmente, há que procurar nas produções independentes, pois escasseia nas DC e Marvel e outras que tais à nossa volta.

No entanto, e para sermos justos, esta BD nunca chega a mergulhar profundamente naquele género capaz de despertar paixões de intensidade futebolística - o único verdadeiro super-herói é um adolescente de nome Zacarias, que não tem super-poderes mas umas magníficas botas que o fazem voar, e uma confiança própria da idade enquanto luta contra os maus, intensificada pela realidade alternativo em que nasceu: uma semi-utopia tecnológica povoada de vilões, que, embora extraordinários e assustadores, no final, acabam sempre derrotados. Depois, preso na nossa Terra, anseia por praticar o Bem, mas, vulnerável a agressões físicas e balas, rapidamente percebe as limitações da sua falta de extra-capacidades.

Mantendo os pés na Terra, McCloud apresenta-nos Jenny, uma adolescente do nosso mundo que sente uma paixão ambígua por este rapaz. Será o olhar dela, o que seguimos, serão as suas opiniões e sentimentos que discretamente dão cor às pranchas de um opressivo preto-e-branco. McCloud aproveita técnicas do mangá, então pouco divulgadadas no mercado norte-americano, e mistura-as com uma precisão de traço e enquadramento que não destoariam num manual de geometria. O compêndio publicado em 2006 reune as histórias das edições individuais entre 1987 e 1991, a partir do número 11, ignorando a fase inicial a cores, que por enquanto apenas se adquire nos alfarrabistas. É assim uma história que começa a meio, ainda que rapidamente se apanhe o fio à meada da narrativa, e que inicialmente brinca connosco e com a possibilidade de Zot não passar da fantasia de uma jovem desgostosa das imperfeições do mundo. É também durante este período que McCloud aproveita para subverter o seu próprio estilo, e dar-nos uma lição de como, recorrendo à expressividade visual do meio, a perspetiva do Outro (neste caso, do vilão) pode ser uma total deturpação da nossa experiência.

No final, são os capítulos que abordam os tais dramas humanos que conferem à obra uma incursão singular pelos problemas da adolescência e de como sobrevivermos e adaptarmo-nos aos desafios (muitos deles, injustos) lançados por este mundo - lidar com a sexualidade (a aceite e a socialmente não aceite), a identidade, a família disfuncional, a necessidade de pertencer. A segunda fase desta série é intensamente realista, ainda mais pautada por um traço rigoroso e sem devaneios oníricos - opção que, a meu ver, se torna por vezes sufocante e avassaladora, sem pausas para respirar. Teria sido interessante utilizar este realismo perfeito no mundo de sonho, e alguma indefinição nos traços naquele que é o nosso, de modo a aligeirar a mensagem. Por outro lado, há mensagens que não se prestam a ligeirezas... e McCloud mostra-se indubitavelmente forte nos momentos silenciosos, na sequência de vinhetas vazia de palavras mas que muito dizem.

Não existe edição portugusa, que eu saiba. Quem quiser, terá de encomendar uma das edições estrangeiras. Ou dirigir-se ao sítio Web do autor, que uma década e picos após o último número de Zot! desenhou mais um conjunto de episódios e colocou-os gratuitamente online.

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27 Junho 2021

A Catástrofe Surge À Civilização, ao mundo, como um carro destravado surge ao peão e ao motociclista - na curva da estrada, sem se anunciar, inevitável apesar das precauções e dos esforços, um ponto final súbito que faz da promessa de um romance uma curta novela. Eis um breve relato de um dia de mudança que abalou o planeta. Não fossem dominantes os dinossauros, mas outra espécie mais familiar, qual o futuro que lhe restaria? Aguardamos as vossas respostas, em forma de ficção, aqui.

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