Exposição Prolongada à Ficção Científica  

   um blog de Luís Filipe Silva


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04 Novembro 2021

Teimo em fazer um texto sobre Dune. Vou na terceira versão. A que prometo sintética e definitiva:

  1. Ignora-se o filme de Villeneuve por nossa conta e risco. É incontornável enquanto obra cinematográfica, e em particular enquanto contribuição para a FC. Afirma: "Pode-se fazer grande cinema fantástico com a seriedade dos clássicos".
  2. Mas tanta seriedade amarra a visão, impede-a de tornar-se uma peça de arte esplendorosa. As casas de Atreides e Harkonnen são demasiado reconhecíveis por um século XXI globalmente ocidentalizado, meras caricaturas para uma fácil identificação do espectador. Precisávamos de cor, ornamentação, costumes bizarros, sons e os ritmos próprios de cada mundo. A avalanche de sensações que assolavam os viajantes à chegada a um novo mundo, impossíveis de antecipar na ausência de Google Maps e documentários (compare-se com a recriação visual da cultura Maia em Apocalypto, por exemplo). Atreides não passa de um ducado higiénico e certinho - e Harkonnen também, mas poupam na luz - , mas ambos sem povo, nem comércio, nem aliados ou (outros) inimigos. A fidelidade ao texto original tem um limite, quando o próprio se esqueceu também de tais pormenores.
  3. A comparação com a obra de Lynch é inevitável, mas injusta, pois pertencem a gerações muito distintas. Cada realizador utilizou os meios disponíveis na época e pelo estúdio. Onde Lynch teve de encurtar e acelerar, Villenueve pode passear descontraído. Onde Lynch se viu obrigado a explicar em detalhe, Villeneuve sabia poder confiar no Povo da Internet para apontarem e explicarem todos os detalhes misteriosos. Lynch arfa, Villeneuve respira. Sobreviveria o Dune de 1985 sem as vozes off, sem as introduções demoradas? Duvidamos… (Sejamos sinceros: Lynch é o pré-requisito de Villeneuve, que reaproveitou a lição aprendida, aplicando muitas das mesmas técnicas narrativas para as audiências desconhecedoras do livro.)
  4. Recordo a história como sendo mais manipuladora e intriguista do que na realidade é. Rever, foi uma revelação, em parte igual a descobri-la pela primeira vez. Na época, transmitia ensinamentos: que as pessoas têm motivos ulteriores aos que afirmam ter, expressos não em palavras mas hesitações, murmúrios e naturalmente, escolhas - e se as identificarmos correctamente, não só nos protegemos das suas influências como podemos tornar-nos os titereiros. Mas nesta revisão, descubro que a manipulação é insuficiente e desconexa. Leto sabia caminhar para uma armadilha… teria realmente ido sem preparativos? Sem assegurar aliados e fazer a especiaria refém, em caso de ataque? Que império é aquele, permitindo escaramuças entre casas na principal fonte de riqueza de toda a gente? Porque não exigem as outras casas em terem representantes locais, para manter a casa local debaixo de olho?
  5. Já agora, a cerimónia da Madre Superiora, quando testa o filho de um nobre na sua própria casa com promessas de dor e agonia... quanto tempo se manteria incólume uma Ordem que assim procedesse? E testa-se assim, com uma só prova, à pressa? Que força de carácter é afinal testada quando a alternativa a perder a mão é a morte pelogom jabar, se até um cobarde saberia optar?
  6. Diz-se que Herbert foi escrevendo, sem rever, para cumprir prazos. É uma pena, porque perdeu-se estrutura e intenção, e a suposta obra-prima fica aquém do que podia ter sido. Por outro lado, é uma obra dos anos 60, das revistas de FC, do mercado de literatura popular norte-americano, e se algum empolamento ocorreu, deriva do que neste género se pode equiparar à expansão do Universo: do grão de areia nasce o mundo, do quintal forma-se o país, do romance barato nasce o culto.
  7. Ficam os efeitos especiais fotorrealistas, diálogos competentes (e shakespereanos, se comparados com os de Lynch), pormenores inteligentes (como o revirar de pupilas durante o cálculo dosmentats) e actuações empenhadas. Houve quem descodificasse diferentes trajectórias no percurso de Paul Atreides - tiro o chapéu a tais críticos pela minúcia da peneira a partir de material tão pobre...
  8. A personagem mais interessante continua a ser a Jessica, mãe do messias, a concubina que jamais será duquesa e no entanto ousou sonhos de grandeza quando desafiou a ordem religiosa que a tinha colocado naquele lugar de poder e deu à luz um filho varão. O seu percurso de vida e as suas estratégias de sobrevivência num mundo dominado por homens e fanáticas produziria uma história muito melhor. Resta-nos o consolo de ter sido encarnada por Annis e Fergusson, duas actrizes bastante carismáticas e encantadoras, ainda que diferentes.

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07 Setembro 2021

O futuro que talvez seja, mas na capa lemos O Futuro Que Não Foi, isto é, El futuro que no Fue - aunque no el original, pois o autor é catalão, e a língua, sabemo-la arma de arremesso - e marca o regresso de Daniel Torres ao universo de Roco Vargas, personagem que escreve ficção científica e funciona como mal-disfarçado avatar daquele seu criador. Agora estamos perante um fac-símile: a revista com as aventuras gráficas de Archí Cúper (sentem o estrangeirismo?) na cidade terrena de Montebahia que, como todo o Sistema Solar interior, se encontra controlada pelas MercAgências, as ditas agências publicitárias. Sim, a publicidade não só se tornou norma como também a força motriz de toda a economia, a ponto de nenhuma instituição social, incluindo as forças armadas, poder existir sem o devido patrocinador. Tudo é oportunidade de venda, incluindo o polícia disposto a perdoar a multa se o infractor assinar o produto que ele representa. (Por outro lado, a sanção financeira não deixa de existir, e só na nossa ingenuidade poderíamos crer num mundo em que as forças de autoridade fossem totalmente autónomas das influências do poder político e financeiro... será, pois, o nosso mundo a metáfora da versão de Torres, e não o inverso?) À ubiquidade dos anúncios chamam os habitante de Ruído, uma conotação quiçá demasiado benevolente, pensamos, ao apreciarmos a cacofonia horrenda da cidade nas vinhetas amplas, que os traços do desenho a fingir-se de pulp de certa forma apaziguam. Embora publicado em formato álbum durante 2021 pela Norma, a história divide-se em capítulos intercalados com notícias e anúncios de época - como tinha de ser. Não é que o enredo seja original, e o formato até permitia maiores voos. Archí é detetive privado e sósia de Robert Mitchum, a quem Roco/Torres atribui uma missão simples: resgatar o objecto roubado a um milionário e que, subitamente, todos procuram pois ameaça perturbar o status quo económico. Montebahia é confusa e inóspita, mas deixa-nos com saudades por mais, bem como a sensação de que, ainda assim, é mais digerível do que o nosso mundo. Recomendado.

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