Conceito de Luís Filipe Silva

Ficção Científica, Fantástico, Surrealismo, Realismo Mágico, Terror, Horror, Ciberpunk e História Alternativa - e por vezes, se fôr de excelente qualidade, ainda fechamos os olhos a um certo Mainstream...

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Manifesto de Tecnofantasia
ou, A Era dos Gutenbergs Alucinados

Luís Filipe Silva -   |  09 Mai 2003

Diz-se que a evolução funciona em etapas. Em saltos gnósticos, do sapo para o girino com pernas, para os primeiros rastejantes em terra, para os pulmões de combustão lenta e queima de oxigénio. A definição não é de Darwin, mas de quem reflectiu sobre o que ele afirmou. Também aqui existe evolução: a lenta mudança das percepções como reacção ao conhecimento acumulado e processado.

Diz-se que no período de gestação cada um de nós atravessa as diferentes fases do passado genético. Guelras surgem e desaparecem num assombro fantasmagório de eras perdidas no tempo, manifestações do que talvez tenhamos sido, sombras de pensamentos que não chegam a ser concretizados. Repetimos o processo na educação dos jovens, ao incutirmo-lhes uma história do raciocínio e descoberta, a que chamamos disciplinas, a experiência de milénios de conhecimento acumulado repetidos nas auto-estradas aceleradas das academias.

Diz-se que a informação tem de estar de acordo com a plataforma que a processa. Processar informação é uma necessidade que os nossos antepassados (que podem ser os nossos pais e avôs), embora a praticassem conscientemente, não tinham ainda percebido ser algo artificial e logo possível de estudo. Tornou-se numa disciplina, logo num método, logo numa tecnologia. E se a informação se adequa à plataforma, o inverso é ainda mais verdade. Processamentos pesados, que resultam da evolução do software, requerem novas plataformas, maior rapidez, maior volume - e ainda acreditamos que acontece por acaso. Que é por acaso que empresas multinacionais desenvolvem protocolos que exigem mais capacidade de processamento; que é por ganância e vontade do lucro que somos obrigados a trocar de computadores e afins a cada par de anos. Que a tecnologia é um acidente de percurso.

O girino que desenvolveu pernas não o fez por acaso, embora não tenha tido vontade na matéria. Algo mais poderoso do que ele (o deus da informação? Os antigos gregos não lhe deram nenhum nome) comandou o destino. O girino era apenas plataforma num meio que tinha mais informação do que aquela que podia processar: ali estava um mundo completamente novo, para lá da praia, um manancial de informação, e ali estava ele, pequeno 286 que não suportava as exigências de um planeta multimédia com alta largura de banda.

A internet desenvolve-se na progressão exponencial da escrita. Há muito tempo os livros eram copiados à mão por artistas dedicados, sozinhos nos seus conventos e nas suas conversas com Deus. A informação não era importante, mas apenas a imagem. O conteúdo, invisível e inútil para todos os iletrados na tecnologia de saber ler, perdia importância perante a magnificiência das iluminuras e o contorno seguro, equilibrado das palavras. A língua, o latim, era pertença de poucos, pois os comuns falavam uma linguagem suja e adulterada - a mesma com que hoje em dia amamos, educamos os filhos, condenamos os traidores, e elogiamos os mortos. Mais tarde, muito mais tarde, viria Gutenberg com a sua tecnologia copiada de além-terras, trazendo a multiplicação das notícias, o fácil acesso aos livros, mas também a banalização e a vulgaridade. A imprensa foi a internet do século XVI.

E tal como a palavra escrita passou a fala com a proliferação da rádio e das gravações, e estas por sua vez passaram a imagem e mentira com o desenvolvimento do filme e dos efeitos visuais, tal como o século vinte viu serem divulgadas duas tecnologias de armazenamento de informação com igual importância à da imprensa, o mundo iria ainda assistir a uma evolução compacta, repetida, em diferido, da evolução do conhecimento. A internet começou como a imprensa, difícil de perceber, feia, apenas com texto em ASCII, apenas com conteúdo, mas com capacidade de reprodução; mas rapidamente se assistiu à rádio na internet, aos RealPlayers e QuickTimes, à fala; e logo se evoluiu para a imagem, para os filmes, para a televisão. Exponencialmente. No espaço de dez anos.

Mas a internet não é tudo. Não é o mundo real, embora o mundo também lhe pertença. É mais uma sombra na evolução das nossas ideias, na gestação da nova forma de estar da humanidade, cujo parto será daqui a... dez anos? Dez séculos? Dez milénios? Dez milhões de anos? O mundo real é agora a nossa tecnologia, que surge sobreposta à Natureza de forma ainda tão aberrante como eram artificiais as cenas «acrescentadas» pelo George Lucas na Edição Especial da Guerra das Estrelas, já de si sobre um mundo inventado (e é idêntica a nossa reacção perante o argumento tecnologia versus natureza).

A tecnologia invade de tal forma os nossos sonhos que não somos espécie sem ela. Não sabemos mais caçar nem comer. Não nos reproduzimos sem tecnologia. Não amamos nem odiamos sem ela. Os nossos filhos aprendem as lições de uma vida que a cada instante nos obriga a lidar com a tecnologia que nos impusemos a nós mesmos, não a da Natureza. A Natureza já nos ensinou tudo: a tecnologia é mais exigente na informação que põe ao nosso dispôr. Atraídos pela riqueza, adoramo-la, mas estamos a chegar ao limite. Algures, de qualquer forma, a plataforma terá de se adaptar.

Em tempos idos surgiu o Mito, primevo, único. O Mito e o Sonho juntaram-se, e deram origem à Fantasia. A Razão interpõs-se, e chamou ao casamento Ficção Científica. Mas a Informação estragou tudo ao inventar o Ciberpunk. O ruralismo não explica mais o nosso mundo. A ficção científica transforma-se e abarca tudo, mas nesta desmultiplicação perde o farol, o nevoeiro é denso. Os sonhos são outros, e não são nossos.

Estamos na era da TecnoFantasia. De pegar no híbrido que já foi resultado do enxerto da ficção na ciência, e dar-lhe finalmente forma. Se era algo desconhecido para os nossos tais antepassados, já não o é para nós. A ficção convive com a ciência no nosso dia a dia, e já não se chama ficção científica, mas Realidade. Todos os sonhos a partir deste momento têm este dado como adquirido.

A TecnoFantasia é o realismo mágico da era tecnológica. É o mito dos cientistas experimentais. É o imaginário infantil da geração informatizada. É a palavra de boca do homem de negócios. É o título que se transacciona no mercado das expectativas sociais. A TecnoFantasia sabe que o mundo já não pertence à Natureza, que é tão artificial, obediente e cego como um termóstato. Sabe que habitamos todos numa realidade virtual que funciona por consenso e regras e agendas temporais comuns. Sabe que o mundo entra em sintonia pela necessidade internacional de encontrar um ponto de entendimento e organização. Sabe que a plataforma actual não comporta mais a informação que processa.

Alguns visionários afloraram ligeiramente a ideia da TecnoFantasia. No estrangeiro, Michael Swanwick com The Iron Dragon's Daughter, Bruce Sterling com Distraction e artigos científicos, os contos de Greg Egan, todos os livros do Neal Stephenson. Em Portugal, a GalxMente de Luís Filipe Silva seria o prenúncio, muito incompleto, da ideia, Pedra deLúcifer de Daniel Tércio uma hipótese possível, e Terrarium de João Barreiros, um elogio fúnebre (inconsciente) da ficção científica disfarçado de homenagem ao género.

O TecnoFantasista interpreta o mundo enquanto repositório de informação. A realidade tem tanto valor quanto a virtualidade, e ambas são indistintas. As interacções baseiam-se em regras, e essas regras existem numa completa independência da geografia. As leis de Newton misturam-se com as leis da retórica no infoespaço: depende da dimensão em que o jogo decorre - a do espaço, a da memória, ou a da ficção.

O TecnoFantasista conhece o mundo e está atento aos mínimos indícios. Por vezes, perde a noção de floresta e só consegue ver árvores ou arbustos; a culpa não é dele: enquanto plataforma imperfeita, não consegue processar, compreender.

A TecnoFantasia continuará a desenvolver-se, com este nome ou com BI falso. Nestas páginas encontrarão uma tentativa de afastar o nevoeiro. Mas não se encham de esperanças. O dia pode ainda tardar a nascer.

Luís Filipe Silva, 25 de Março de 2000

(c) Autor do Texto, (c) Luís Filipe Silva, 2003/2007. Não é permitida a reprodução não autorizada dos conteúdos.

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Luís Filipe Silva