Conceito de Luís Filipe Silva

Ficção Científica, Fantástico, Surrealismo, Realismo Mágico, Terror, Horror, Ciberpunk e História Alternativa - e por vezes, se fôr de excelente qualidade, ainda fechamos os olhos a um certo Mainstream...

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Passatempa Comigo - os Vencedores

Notícias -  Destaques |  09 Fev 2010

Na última semana de Janeiro, foi colocado um desafio aos leitores deste sítio: que nos escrevessem um pequeno texto sobre o brinquedo que mais os teria marcado na infância, mas do ponto de vista do brinquedo. O texto poderia, obviamente, ser ficção ou memória. O passatempo teria por objectivo galardoar os dois melhores textos com exemplares de Brinca Comigo! E Outras Estórias Fantásticas Com Brinquedos, antologia recente do Atelier Escrit'orio Editora que reune contos de David Soares, João Ventura, João Barreiros e Luís Filipe Silva, precisamente sobre o encanto ou desencanto dos brinquedos na infância, vistos à luz do Fantástico.

Foi muito agradável perceber que este desafio se tornou num prazer para os participantes - sem dúvida o passatempo mais concorrido do TecnoFantasia.com, tendo atingido a vintena de colaborações das mais variadas origens. Os comentários de agradecimento dos leitores foram também quase unânimes. Os brinquedos revelaram-se assim uma caminho de regresso a tempos que, com mais ou menos fulgor, são de encanto na memória de todos nós. A todos os participantes, o nosso amplo agradecimento, esperando que se tenham divertido.

Infelizmente existem apenas dois exemplares para entregar, e por isso foi necessário fazer uma selecção. Não havendo uma ideia concreta à partida do tipo de histórias que poderíamos receber, os autores acabaram por si próprios seguir duas tendências distintas: o brinquedo existia puramente em função do dono e os únicos sentimentos eram os do próprio dono; ou o brinquedo existia com vida autónoma, por vezes com sentimentos contraditórios à sua situação de brinquedo. Quase naturalmente, foi neste segundo conjunto de histórias que se encontraram os textos mais marcantes.

Além dos vencedores, acábamos por escolher um conjunto de menções honrosas que não quisemos deixar de publicar, algo que não estava previsto à partida.

Segue-se então a lista, e os contos:

Vencedor - João Rogaciano («Eu, Teddy, Me Confesso»)

Deixem que me apresente: chamo-me Teddy e, como já devem ter adivinhado pelo meu nome, sou um velho e genuíno urso de peluche. Hoje estou preterido e enclausurado numa fedorenta e escura mala. Mas, nem sempre foi assim. Durante muitos anos fui o peluche preferido do Rui, o primogénito do casal Garcia.

Fui oferecido ao Rui, por uma tia inglesa, no seu primeiro aniversário. Desde aí, ficámos amigos inseparáveis: Estava presente quando lhe nasceu o primeiro dente; ajudei-o a dar os primeiros passos. Ensinei-o a ler e escrever, ainda antes de ir para a escola. Também o defendi, quando o Berto lhe tentou bater, no primeiro dia de aulas. Foi a mim que Rui contou os seus amores e me confidenciou que iria casar e deixar a mansão vermelha. Claro que estava presente quando Rui teve o seu fatal acidente: a enorme queda nas escadas que o lançou naquela cadeira de rodas, incapaz de se mover ou de se expressar. Só os seus gritos de terror se faziam ouvir quando me sentava ao seu colo e, em vão, me tentava afastar de si. Foi por isso que me fecharam na escura mala. Hediondo castigo para o meu crime passional.

Vencedor - Carlos Durão Antunes

Não percebo porque é que ele sempre que brinca comigo me atira de cabeça contra o chão. Porque me agarra sempre com tanta violência, me atinge com todo o género de munições imaginadas.

Porque me torna sempre no vilão?

Será por ser um robot cinzento e não cheio daquelas cores berrantes que atraem o olhar?

Deve ter-me desprezo para me deixar todas as noites no meio do caminho, até que o pai dele entre tarde no quarto como se tornou rotina. Nessa altura ele pisa-me, faz barulho e amaldiçoa-me, como se eu fosse culpado de ele nunca ver o filho acordado, para depois me atirar para um canto qualquer.

Mas hoje estou em cima desta prateleira, consigo sentir as minhas rodas a deslizar e vou atirar-me daqui abaixo. Só me pergunto se haverá muitos brinquedos a suicidar-se?
 

Estou partido ao meio no chão mas ainda o oiço a chorar e a dizer que sou o seu brinquedo favorito e que me atirei da prateleira enquanto a mãe o vai tentando convencer de que a culpa é da prateleira que está mal presa e um pouco inclinada.

E só agora é que ele diz que não quer mais nenhum brinquedo…

Menção Honrosa - Filipe Costa

As traseiras lá de casa nunca estiveram tão povoadas como na tarde de Verão em que venci a grande prova da minha vida de brinquedo. Quando o apito soou, alguns miúdos quase nem tiveram tempo de se desviar de mim e dos outros carros à medida que iniciávamos a corrida na máxima força! Sobre aquele piso de pedra irregular, sentia o calor do Sol a incidir na vertical sobre mim, cortado apenas pela fúria do ar que assobiava na minha direcção. Aquilo sim, era adrenalina! Para mim, não havia melhor sensação no mundo do que aquela de trespassar o vento em dois como uma lâmina!

Mesmo à distância, sentia o nervosismo do meu dono, pela forma como agarrava o telecomando e premia freneticamente o botão de aceleração. Certamente agia assim por todos os seus amigos estarem a assistir e não querer de todo fazer má figura. Mas o entusiasmo com que no fim, quando passei a meta em primeiro lugar, correu até mim a transbordar de alegria, foi inesquecível! Tinha sido o mais rápido, e pelo menos por um momento, eu era o seu brinquedo preferido!

Atirou-me ao ar como uma bola. Foi de todos o meu voo mais alto!

Menção Honrosa - Susana Sousa («Corações»)

Ela sabia que um dos brinquedos era responsável por aquilo, mas levou algum tempo a descobrir que só podia ter sido eu. Eu, a quem confidenciava medos e desejos, enquanto se agarrava ao meu pêlo puído e murmurava: Nonô, não contes a ninguém, é segredo…
 
Lembro-me do dia em que descobriu as pedras na gaveta. O que fazem aqui estas pedras? Cubos do chão que se pisa lá fora, não pertenciam àquele quarto.
 
Eu sei que vocês de noite andam por aí, mas não deviam sair de casa! Quem foi que andou na rua?
 
E iniciou a sua investigação policial, com interrogatórios e espancamentos. Havia pernas e braços arrancados, cabelos queimados, roupa rasgada. A mim, nunca me tocou, e mantive-me em silêncio.
 
De noite, acordava repentinamente, para ver se apanhava alguém em flagrante. Como me confidenciava os seus planos, eu mantinha-me imóvel, com os meus doces olhos castanhos a apaziguá-la. Nessas noites não saía, e na manhã seguinte não apareciam pedras na gaveta.
 
Uma tarde chegou com um sorriso fulgurante.
 
Descobri, Nonô! Foste Tu! Descobri os corações!
 
Que boa investigadora! Tinha percebido que os buracos na calçada em forma de coração eram obra minha.
 
As pessoas não reparavam, mas quando um pé resvalava para dentro de um buraco, torcia-se dentro de um magnífico coração. Saltos quebravam-se, velhos cuspiam, rodas de bicicleta ressaltavam… num coração. Com tanto amor espalhado por aí, tornavam-se melhores pessoas. E já não a magoavam. Já não magoavam a minha menina.

Menção Honrosa - Carina Monteiro

Na minha condição de eterno peluche, nada mais era, mas muito era já. Chamava-me Musti, a menina que sempre me adorou. Mal me viu, gostou do facto de ser um anómalo pequeno urso azul sem pêlos, a quem um dia coseu o nariz em cor-de-rosa, pois o original caíra de velhice. É de mim que sente mais saudades, quando sai, eu que respiro pó e bafio de todos os interstícios, na mais alta prateleira do quarto. Só para mim tem olhos. Foi a mim que abraçou aquando o internamento no hospital, foi ao meu lado que dormiu, ano após ano, enquanto lhe contava histórias de embalar em incompreensíveis palavras. Foi a mim que contou os segredos mais soturnos de criança. Eu, só eu. E apesar de já não me abraçar, continua a amar-me. Sei que é amor eterno. Pois sempre fui aquele que devora os monstros que habitam a noite. E digo-os saborosos, de almas perdidas e negras. Bem diz a minha menina, aos seus amigos, que devoro almas. Mas não crêem eles em tal. Que não creiam, desde que não façam mal à minha menina, nada de mal lhes acontecerá. Caso contrário, o ursinho azul devorá-los-á.

 

Menção Honrosa - Fernando Queiróz

Sou a Cindy, a boneca preferida da minha criança.

O meu corpo é feito de um polímero termoplástico, o meu cabelo de poliamida e a minha alma de sonhos de uma menina chamada Paula.

É essa a menina que tenho de proteger de todos os perigos do Mundo Que Não Existe.

Esta noite a ameaça não é um mero pesadelo ou um terror nocturno. Esta noite enfrentarei o mais letal de todos os seres: o Amigo Imaginário.

Ele apresenta-se à criança amigável, confidente, compreensivo, abrindo-lhe as portas do Mundo Que Não Existe. Convida-a a entrar… O que não lhe conta é que uma vez lá dentro, nunca mais poderá sair.

Chegou o momento.

O Amigo Imaginário já é demasiado real para eu permitir que ele ainda exista.

Visto-me de rosa para a batalha, armo-me com os meus acessórios de plástico e invisto contra ele.

A Paula nunca se lembrará desta batalha. Dirá à mãe que foi um amigo que me cortou os cabelos, que me arrancou os braços...

Choro? Serão lágrimas? Não. É o meu corpo de polímero termoplástico a derreter.

Sou feliz: Quando ela chegar a adulta apenas serei recordada como o brinquedo que mais a marcou na infância.

(c) Autor do Texto, (c) Luís Filipe Silva, 2003/2007. Não é permitida a reprodução não autorizada dos conteúdos.

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