Exposição Prolongada à Ficção Científica  

   um blog de Luís Filipe Silva


Encontra-se em modo de artigo. Para ver as outras entradas vá para a Página Inicial ou Arquivo, no menu da direita.

29 Fevereiro 2008

UM ACONTECIMENTO INÉDITO: Neil Gaiman disponibiliza o conteúdo completo de uma das suas obras gratuitamente na internet (mas, ao contrário de Cory Doctorrow, fá-lo de forma inteligente, obrigando-nos a ler online; quem quiser ler offline que compre o livro). American Gods teve já uma edição em português do Brasil que por vezes surge à superfície nas lojas dos eventos de banda desenhada. Em nosso português, esteve quase, quase para surgir (cheguei a passar boas horas a rever e a discutir com o tradutor), mas no final foi mais um projecto que se perdeu. Enquanto não nos chegam os Deuses Americanos à porta, fiquem com esta pequena fábula sobre os deuses que acompanharam respectivos adoradores e crentes na viagem desde terras além-mar, em busca de oportunidades ou a fugir de desgraças, e desembarcaram em Providence ou Ellis Island, também os deuses imigrantes. Deuses que se encontram a perder terreno para outras formas de adoração e entorpecimento espiritual. Uma ideia que faria sentido desenvolver para o território português, desde há muito salpicado pelas culturas orientais e africanas e agora enriquecido com os povos e imaginários do centro e leste europeu.


Browse Inside this book
Get this for your site

[Link Permanente

27 Fevereiro 2008

A FORMA NÃO REVELA O CONTEÚDO. Em particular no caso de A Caixa em Forma de Coração, que na verdade contém o fato, o fato de um defunto (Alexandre Dumas chamar-lhe-ia O Fato do Finado, e seria uma história de amores perdidos e vinganças imperfeitas que sairia em fascículos todas as segundas, quintas e sábados), comprado por intermédio do eBay (sejamos modernos e electrónicos - basta de vasculhar sotãos de casas abandonadas e bafientas ou garage sales da louca assumida de um vilarejo do Midwest ou sequer receber o artefacto como herança ou engano pelo correio) e que chega com fantasma incluido – aparentemente não vinha nas instruções nem na descrição do produto. O que parece um bónus comercial em breve se torna num defeito de fabrico, mas como neste caso se comprou em leilão a um particular e não a uma empresa com assistência ao cliente é impossível devolver. E assim se fica em casa com o espectro de um velho que o acompanha a si enquanto se levanta de noite e fica a aguardar que fale, para entãO acordar e o degolar com uma navalha hipnotizadora.

Leitura divertida, está-se a ver.

O protagonista é um maluco por artefactos esquisitos. Tem um filme snuff em casa. Compra destas tretas na internet. Foi cantor de hard rock. Aparentemente está tudo relacionado. Teria de comprar o fantasma porque o fantasma não o procuraria depois de morto, embora o tivesse a ele como alvo pois o que o motiva é uma história de vingança pessoal. É o que lhe diz a vendedora, quando a contacta pelo telefone. Aparentemente é, ou foi, irmã de uma rapariga que este protagonista, pós-carreira e pós-meia idade a viver das royalties dos discos, fez robolar na cama algumas vezes e depois despachou de volta para casa – e ela foi e aparentemente cortou os pulsos por causa disso. O protagonista teve tantas saudades dela que menos de uma semana depois da devolução à procedência já estava enrolado com outra de igual (tenra) idade. Vício ou amor? Mas o protagonista não devia ser uma pessoa boa? Se não é, should we care?

Na Americanilândia, supostamente sim. E como manda o ditame, mais tarde descobriremos que existe uma pessoa dentro dele com coração – não o que vinha dentro da caixa que tinha esta forma, porque lembrem-se, dentro da caixa vinha um fato, um fato que acaba rapidamente queimado e a caixa não volta a ser mencionada. Aliás, a caixa nem tem importância alguma nesta história, bem vistas as coisas. A história é sobre um fantasma hipnotista que consegue levar-te a cortares a goela, a tua ou a de outrém, sussurando ao teu ouvido – ou melhor, na tua mente, pois os fantasmas não têm cordas vocais e logo não conseguem produzir vibrações sonoras. Sim, estas regras lógicas são importantes. É importante lembrar que é preciso morrer ou matar daquela forma complicada e demorada. Qualquer outra mais simples e directa – do género: sussurrar que um dos braços se contorce subitamente enquanto se conduz, provocando um acidente fatal – é fazer batota. Para se deslocar, o fantasma precisa de uma camioneta fantasma (expliquem lá esta em termos gnósticos, hmm?). Não é de admirar então que tenha medo de cães fantasma – embora os cães só lhe possam fazer mal se estiverem vivos, pois se morrerem desaparecem para um limbo qualquer, saem da história, acabam ali as filmagens e vão correr atrás das cadelas nas praias de Malibu. Pronto, mas isto é que já não nos dizem. Apenas que desaparecem. Esperem lá, já me perdi. Estamos onde?

Estamos na América, Nova Inglaterra, embora felizmente não nos quedemos pelo Maine e cheguemos a Nova Orleães, uma cidade supostamente alternativa pois não foi invadida pelas águas e o pai do protagonista – um homem dominador que abusava espiritualmente dele e da mãe, e quase lhe castrou a veia artística – solta os últimos suspiros nesta terra, tendo esperado décadas pelo regresso do filho e pela oportunidade em entrar no livro. E quando entra, diga-se literalmente que é a matar.

E depois temos a agradável sidekick, a que, sem saber, foi ocupar o lugar da outra, a que se matou, ou foi matada – embora esta seja gótica e dada ao sobrenatural – mais um item da colecção do cantor de rock? –, uma miuda de vinte e poucos anos que se perde de amores pelo cinquentão que não sabe estimá-la (era útil saber onde é que se consegue arranjar disto na vida real). Ela recusa-se a procurar assistência médica para a infecção que apanhou do fato e que lhe está a consumir a mão. Ela vai ser um portal. Ela anuncia que vai ser um portal. Tudo chegará através dela. Mas no momento da verdade, apenas contribui com o sangue com o qual se desenha uma porta no chão. Talvez isto faça sentido. Talvez se abrirmos a porta.

Ah, dissemos há pouco que os mortos não falam. Isso depende dos mortos. Outros telefonam. Telefonam sem ser a pagar no destinatário, eis o grande mistério. Mas só depois de se enforcarem. E contam como foi. Embora tenham visto o fantasma apenas uma vez e fugido a sete pés. O fantasma que hipnotiza e que ordena às pessoas que se matem. Embora com estes não tenha falado. Aparentemente só funciona para aqueles com quem não fala. Os que ficam e que o vêm a toda a hora conseguem ir-se safando de investida após investida sucessiva, em particular se têm cães que os defendam. Mas cães vivos, porque os cães mortos dão logo à sola e abandonam os donos. Ah, e não queimem o fato, porque se não não se livram do fantasma. «E a caixa em forma de coração?» Qual caixa?... Ah, sim, a tal.

Ser coleccionador de objectos bizarros não safa o protagonista. Afinal esse foi só um plot device que justificou que o protagonista comprasse a bizarria pela internet. Não há nada na colecção privada que sirva de amuleto ou protecção. A não ser a miuda. A miuda que vai ser um canal. Mas que afinal é só uma porta. Afinal esta é que possui uma daquelas ardósias com as quais se contacta com os mortos. O que é estranho é que estes escrevam as palavras na totalidade e não procurem aquelas abreviaturas populares dos SMS. Não há telemóveis do outro lado? «Mas olha, já pensaste bem se o fantasma se pusesse a escrever coisas como PQ QQ :’( = 1 :-* MORTE LOL («porque uma qualquer lágrima de desalento equivale a um beijo de morte – riso sinistro»). Assim não assustava ninguém. E ser-se a assombração principal numa história de terror não é para brincadeiras. Afinal, é o papel da sua vida... er, pós-vida?»

Muito abuso de pai e mãe sobre os pobres e indefesos descendentes existe neste romance. Não há adulto ou criança que não tenha sido vítima de uma mãozinha demasiado pesada ou demasiado excitada, e então, lição não aprendida, torna-se por sua vez, ao crescer, também abusador. Isto não seria de desconfiar, mas se vos disser que o autor é Joe Hill, e que Joe Hill também se poderia chamar Joe King, e que este King provêm das gónadas do famoso Stephen, e que o autor-filho procurou e ainda procura activamente disfarçar a informação de quem é o autor-pai... a mostarda chega ao nariz, a porca torce o rabo, quem sai aos seus não degenera, o bom filho à casa torna e o mau ainda mais depressa. Porque trata-se de terror. Não romances de cordel, aventuras navais com esquadras napoleónicas, road novels inspirados numa beat generation esquecida mas endereçados à geração pós-X (Y? Z?). É terror, é a profissão do pai. E com isto, Joe Hill quer fazer-nos crer que a sua escolha de género temático não tem nada com o que assistiu lá em casa. Escrevendo um livro em que um pobre artista quase não sobrevive face a uma figura do pai dominadora e é obrigado (com as desculpas inevitáveis do enredo) a acabar com ele. Como diria o gato de Cheshire, o sorriso conhecedor é a última coisa a desaparecer.

Diga-se de passagem que o livro tem um ambiente nefasto e que a acção não perde tempo a instalar-se. Não estamos em território Henry James, o fantasma surge logo e começa a impôr-se praticamente nas primeiras 30 páginas, ainda antes do primeiro intervalo comercial. Até na literatura existe o medo do zapping. E como se ganha à página, nada da maçuda backstory do romance do século XIX que éramos obrigados a engolir por inteiro antes do início do enredo. Frases curtas, prosaicas, práticas. Uma atitude hands-down típica norte-americana.

Que não é bem apanhada pela tradutora. O que não admira, pois o livro está feito, como a maioria (era capaz de afirmar) da literatura comercial norte.americana, num estilo coloquial, simples, directo, sem artifícios linguísticos e procurando efectuar um rapport emocional de identificação do leitor com a época presente. Isto é conseguido pelo recurso a lugares-comuns e expressões idiomáticas (a tradutora preferiu traduzi-las quase sempre de forma literal, o que as torna por vezes incompreensíveis – quantas expressões idiomáticas nossas fazem sentido se apresentadas literalmente numa língua estrangeira? – e perdendo-se por completo a carga emocional ligada ao quotidiano), e por apresentar a rotina dos personagens salpicada com marcas comerciais e objectos, que fazem muito sentdo para um norte-americano e quase nenhum para nós (para seu mérito, a tradutora lá vai soltando as inevitáveis notas de rodapé a explicar as marcas mais notórias).

Relativamente a este último caso, vou dar um exemplo, que não surge no livro, mas apenas como ilustração do efeito. Imaginem que o protagonista gosta de Reese’s Pieces. É louco por Reese’s Pieces, desde a infãncia, o que condiz com a sua função – é investigador de fenómenos relacionados com ovnis. Um norte-americano da minha (sua?) geração ficará imediatamente identificado com este simpático protagonista. Saberá que o Reese’s Pieces é um doce extremamente viciante que combina chocolate e recheio de manteiga de amendoim, vendido em tabletes pela Hersheys (esta própria uma empresa conhecida pelos chocolates). Adorado pelos miudos, em particular desde que viram o E.T. do Spielberg devorá-lo num dos mais inteligentes product placements da História. Não é apenas uma marca, é a identificação de uma geração. Como traduzir isto, se o produto não existe em Portugal? Poderia alterar o produto para «Coma com pão» e a empresa para «Nestlé», haveria algum reconhecimento, mas o efeito não seria, nem de longe, o mesmo.

O que os autores norte-americanos reconhecem (porque a sociedade deles os expõe mais a isso e porque são mais descontraidos nas artes do que nós) é que as marcas fazem parte da identidade cultural de um indivíduo ou de uma geração, e que podem ser usadas como instrumento de caracterização literária. Para o bem ou para o mal (o excesso conduz ao vazio, como em tudo). Não parece haver saídas fáceis para os tradutores, nestes casos. Mas seria interessante promover o debate.

No final, o somatório dá nota positiva ao romance de Joe Hill, publicado entre nós pela Civilização. Uma tradução mais cuidada era o que se pedia – para o preço em questão – , e ao autor um maior trabalho de maturação na lógica do romance, que funciona exclusivamente a um nível visceral e imediato, mas que quando se começa a tentar compreender a lógica do plot... É o primeiro romance do rapaz, e pode ser que entretanto aprenda algumas coisas. Lá em casa, pelo menos.

[Link Permanente

Site integrante do
Ficção Científica e Fantasia em Português
Texto
Diminuir Tamanho
Aumentar Tamanho

Folhear
Página Inicial

Arquivo

Subscrever
Leitor universal