Exposição Prolongada à Ficção Científica  

   um blog de Luís Filipe Silva


Encontra-se em modo de artigo. Para ver as outras entradas vá para a Página Inicial ou Arquivo, no menu da direita.

21 Junho 2008

UMA FÁBULA DA NOSSA CIVILIZAÇÃO? Quem é neste caso a criança fechada numa sala escura, sacrificada pelo bem da Utopia? Quem é ela, para si? Quando fecha os olhos, qual é o rosto que o assombra?

Em Omelas, ela está escondida da vista pública, guardada no cofre, deixada lá a sofrer. Contudo, assim é fácil: longe da vista, longe do coração. A capacidade humana para a empatia pelo sofrimento dos outros só chega a determinado ponto: a partir daí, os velhos mecanismos de sobrevivência passam a funcionar, e o pensamento normal é «antes ele do que eu». Le Guin teria conseguido uma história diferente, e uma análise mais profunda sobre o comportamento humano, se a sociedade obrigasse a que, quando a criança sacrificada morresse e fosse necessário substituí-la, todas as crianças de determinada idade fossem sujeitas a escolha; para poderem gozar a perfeição e a felicidade daquela forma de vida, todos os pais, todos os adultos e jovens, teriam de aceitar que um filho, um irmão, um amigo, lhes poderia ser retirado e teria de viver o resto da vida preso numa cela sem voltar a ter contacto humano, sol, liberdade (e, dadas as condições, possivelmente essa vida não seria sequer longa).

Aliás, vamos ser perfeitamente dramáticos e vamos colocar todas as crianças nessa cela, durante a fase de selecção, vamos fazê-las temer e borrar-se de medo da possibilidade de nunca mais sairem, vamos colocar pressão sobre essa sociedade para que escolha a vítima o mais rapidamente possível. As famílias querem as crianças de volta, assombrados pela lembrança dos dias terríveis em que, na sua infância, eles próprios habitaram aquele lugar horrendo. Vamos inclusive, para tornar o pecado absoluto, obrigar que a escolha seja feita por voto unânime. Todos têm de ser culpados, não há cartuchos em branco neste pelotão de fuzilamento. Não há a possibilidade de redenção. Vamos tornar todos cúmplices, nesta sociedade-modelo perfeita e absoluta e feliz, da condenação consciente à miséria de um inocente apenas para benefício próprio. Se não escolherem, as crianças não saem. Se alguém não votar, as crianças não saem. Se alguém votar diferente, as crianças não saem. E uma escolha tem de acontecer. Mesmo para os pais da criança. Sacrificar o seu filho único. Escolher um de entre os seus rebentos. Pode ser o teu irmão, pode ser a criança do vizinho que vinha bater-lhe à porta em noite de festa.

A escolha feita dá lugar ao alívio dos restantes pais, ao alívio das crianças libertadas, à possibilidade de retomar a normalidade dos dias; excepto para um. Excepto para uma das crianças, condenado para a vida, sem possibilidade de recurso.

Na verdade, para todos. Agora que tinham participado num sacrifício consciente e deliberado de alguém que consideravam inocente (não era um estrangeiro, não era uma minoria, era alguém integrante na comunidade), estavam moralmente tão presos quanto a criança, igualmente fechados numa cela, embora esta fosse dourada e cheirasse a campo.

Sim, teria sido uma história bastante diferente.

Desistiriam de Omelas, vocês que tinham passado por este trauma? Iriam para uma cidade desconhecida, outro país? Fugiriam para o campo, tornar-se-iam eremitas? Será que no fundo dos vossos espíritos não teriam receio de que a outra cidade tivesse rituais bizarros, ainda mais cruéis, mas sem dúvida desconhecidos (porque obviamente nunca ninguém menciona o assunto), a que tivessem de se sujeitar? Será que desta vez não seriam vocês os sacrificados?

O contrato social é algo terrível. Todos nós temos crianças fechadas naquela cave, a sofrer, a morrer aos poucos. Há quem consiga não viver com isso. Mas é parte integrante da condição humana. Estamos todos conscientes disso, ou a própria autora, tendo descrito uma sociedade utópica e imaculada, não perguntaria «Acreditam no que vos conto? Aceitam a realidade do festival, da cidade, de toda esta alegria? Não? Deixem-me então mostrar-vos mais uma coisa.» 

E se chegaram até aqui sem perceber o contexto inicial da minha mensagem, obrigado por isso, e resta-me apenas informá-los que me refiro ao conto «The Ones Who Walk Away From Omelas», da mestre Ursula Le Guin, publicado no período de activismo político da sua obra literária, e cujo texto podem aceder através de um link indicado neste blog. Infelizmente não está traduzido para português. «Aqueles que se Afastam de Omelas» poderia ser uma tradução possível, embora na minha opinião «Aqueles que Desistem de Omelas» seja o mais correcto.

E depois de o lerem, vão comprar Os Despojados na colecção da Europa-América. Dificilmente encontrarão outro romance no qual a especulação social, a consciência ética, a postura política e a dissertação filosófica estejam tão bem integradas. 

(Stephen King, em A Tempestado do Século, concebeu um cenário parecido, mas neste caso não se tratava de manter um estatuto de civilização, mas de um grupo de pessoas ameaçadas por ser todo-poderoso e demoníaco, e forçadas a escolher (por loteria) e entregar-lhe uma criança, para salvar as vidas de toda a cidade. Fazem-no por uma questão de sobreviência, não para manterem o conforto de uma civilização com sofás e televisões e carros e cinemas. Uma questão ética totalmente diferente.)

[Link Permanente

15 Junho 2008

Cinco Horas de Terror em Directo. Passados dez anos do trágico 16 de Junho de 2017, que para sempre ficará na história da Europa como o dia das Cinco Horas de Terror, será transmitida amanhã no Canal 99, numa emissão directa e em simultâneo com canais europeus e alguns norte-americanos, uma recriação dos acontecimentos que captivaram a atenção do mundo e obrigaram a profundas alterações na indústria da aviação comercial. Este teledrama conta com a participação de uma vintena de actores e mais de duas centenas de figurantes, que irão actuar em cenários construídos para o efeito nos mais diversos centros de produção europeus. A transmissão será particularmente exigente a nível logístico, pois irá envolver a coordenação em directo entre vários países, bem como a sincronização precisa do ritmo narrativo – um relógio irá acompanhar o desempenho dos actores, desde o início do ataque informático ao momento em que os 120 aviões foram levados a despenhar-se, numa tentativa de recriação precisa dos momentos cruciais. A história, elaborada a partir dos relatórios oficiais, procura ser um testemunho isento, apresentando em igual medida o ponto de vista das vítimas, dos militares, do Parlamento e dos terroristas, e não poupará sequer as explicações técnicas de como conseguiram estes penetrar nos sistemas de controlo de tráfego aéreo. Afirma o press-release que é também intenção, além de manter viva a memória, relembrar as lições aprendidas e as medidas tomadas posteriormente para tornar a aviação comercial mais segura. [Agência Nacional de Notícias, 15.06.2027]

[Link Permanente

Site integrante do
Ficção Científica e Fantasia em Português
Texto
Diminuir Tamanho
Aumentar Tamanho

Folhear
Página Inicial

Arquivo

Subscrever
Leitor universal