Exposição Prolongada à Ficção Científica  

   um blog de Luís Filipe Silva


Encontra-se em modo de artigo. Para ver as outras entradas vá para a Página Inicial ou Arquivo, no menu da direita.

04 Maio 2010

A Minha Recomendação de hoje chega-nos dos confins da memória. Estava-se em 1984 e noutro país: um país de escudos que mantinha fronteira com Espanha, apenas tinha uma ponte olissiponense sobre o Tejo e o microprocessador dominante não era Intel mas algo chamado Z80A que sustentava uma pequena caixa chamada Spectrum na qual muitos dos actuais programadores-séniores aprenderam o ofício.

Nesse ano, um ano mágico para a FC, que chegou a assistir à publicação mensal de quatro livros da colecção de bolso da Europa-América, aos quais se acrescentava a contribuição unitária da colecção Argonauta (compare-se com o raquítico número de quatro a cinco títulos por ano de hoje em dia), mantinha-se, ainda que de forma pouco convicta, uma colecção de bolso que juntava todos os «géneros menores» no mesmo prato: a BolsoNoite da Europress. Livrinhos pequenos de identificação cromática por tema, cujos números alternavam entre Western (tons amarelos), FC (tons azuis), Terror (tons negros) e Policial (tons vermelhos).

A Europress tinha uma tendência para publicar os mais conhecidos autores de pulp fiction nacional dos anos 70 (Roussado Pinto e Luis de Campos) – creio que o próprio Luis de Campos chegou a dirigir a colecção – e inclusive andou à procura de originais portugueses de FC. O primeiro livro do género seria a novelização do filme Tron, em 1983 (o qual me levou a ter uma nota menos boa num teste de História pois na véspera, ao invés de embrenhar-me nos estudos, perdi algumas horas a ir ao cinema e a desvendar o livro – há traumas que marcam, mas que valem a pena...), e desde então a colecção lá ia sendo publicada com ritmo irregular.

Obviamente que prestava mais atenção aos títulos de FC que dos outros géneros, embora então cultivasse um leque de leituras muito diversificado, graças ao tempo e ao interesse, que eram mais latos. A BolsoNoite incluia autores pouco habituais da Argonauta e da Europa-América, em particular o John Brunner. Após um interregno, chegaria a incluir, disfarçadamente, Um Caso de Consciência, de Blish, e A Rosa, de Harness, numa fase posterior de tentativa de reanimação falhada por parte da editora. Foi no entanto a primeira colecção a apresentar-nos C. J. Cherryh, e em particular, Vaga Sem Praia.

Vaga Sem Praia é uma novela curta e relativamente ligeira, que decorre na cidade de Kierkegaard do continente de Sartre do planeta Liberdade. Nessa terra, vive uma cultura humana cujo cerne da existência é o desenvolvimento do Eu. Não o Eu enquanto oposição perante o universo, mas o Eu enquanto medida de todas as coisas. O Eu enquanto centro e motivo de existência da própria realidade. Daqui decorre um conflito inevitável entre percepção e possibilidade, posto a nu pela interrogação do artista. Este artista é Herrin, cuja maestria com o cinzel e a pedra o tornam no mais popular e conceituado cidadão de Kierkegaard, despertando inveja e ressentimento em Waden, que faz o papel de político e de protagonista opositor nesta história (só mesmo na literatura é que os artistas são mais influentes que os políticos...) Para complicar são apresentados alienígenas e humanos Invisíveis, à margem da sociedade, ignorados por decreto social, cuja existência deverá ser integrada no fim para se atingir uma verdadeira compreensão do cosmos e em grande medida do Humano.

Se esta descrição não parece entusiasmante, o problema é da descrição e das décadas que separam a minha leitura, e não do livro. É, creio, um livro para jovens, ou para mentalidades jovens, ainda capazes de questionar o instituido e aceitar o diferente. Apresentar-nos de forma vívida sociedades de seres como nós mas que pensam de forma inesperada, com sistemas de valores quase incompreensíveis, é uma das grandes e antigas competências da FC. Este livro vale por isso, e pelas questões de identidade que coloca (o que é o Eu? Em que medida o Eu determina o valor do Outro?).

Pensar que em tempos se conseguia escrever FC assumidamente filosófica, ambientada em terras estranhas para disfarçar parecenças com a nossa... Pensar que, mais do que a dificuldade de publicar-se obras recentes de FC, encontrar hoje um editor que apostasse numa obra destas - cuja natureza está na especulação intelectual e não no ritmo trepidante da acção - é uma probabilidade estatística inferior à congelação de uma panela de água quando colocada ao lume...

Se correrem, vão encontrá-la nesta Feira do Livro – espero. Costumava ser vendida no meio de packs de 3 títulos da colecção.  Com um pouco de sorte, mesmo passados tantos anos, continuará ainda à vossa espera.

[Link Permanente

03 Maio 2010

Não Se Pode Entrar Em A Criança Roubada de Keith Donahue (Ed. Saída de Emergência) sem levar na bagagem o famoso poema de Yeats, «Come away, O human child! / To the waters and the wild / With a faery, hand in hand, / For the world's more full of weeping than you can understand», que funciona perfeitamente como sinopse e aviso. Estamos perante um romance de seres mágicos da nossa infância, pequenos e traquinas que trocam as vidas dos humanos incautos, não por maldade mas por uma rebelia irritante e que por vezes resulta num drama pessoal. Henry Day é um normal miudo de sete anos que se aventura nos bosques e não regressa. Atacado por um bando de trasgos, é rapidamente afogado num lago próximo para iniciar o processo de transformação. Partir deste mundo não devia ser um processo tão imediato. Transformado também ele em trasgo ainda sem perceber bem o que aconteceu, recebe o nome de Anyday e em troca abandona toda a vontade de regressar a casa, de afastar-se da nova família, de crescer. E para que os pais não suspeitem, em seu lugar surge um velho trasgo, uma criança roubada à família alemã um século antes. Os trasgos, é-nos dito e mostrado, forçam-se a crescer, moldando o corpo a qualquer fisionomia e vontade. Também nos é dito que esta capacidade de metamorfose desaparece à medida que o trasgo continua longe do bosque e da vida antiga, o que representa uma capacidade de absolvição e regresso à sociedade.

É um romance calmo, calmo como a época em que decorre. Estamos numa zona rural nas imediações de Chicago, na década de 1940. Percebe-se que nos entranhamos no passado, num ritmo e forma de existir que ainda entendemos mas que nos é agora tão alienígena como qualquer cenário espacial. Funciona quase numa perfeição de terra mágica, este mundo sem computadores e telemóveis e sistemas sofisticados de detecção. Não é à toa que Donahue centra a narrativa numa época em que não se sente compelido a explicar e inventar um sistema no qual seres mágicos ainda existam no campo, tão perto de habitáculos humanos. É como se, na nossa conquista pela racionalidade e entendimento científico do mundo, tivessemos desalojado a capacidade para o mistério. Talvez se consiga ler aqui um dos motivos pelo actual predomínio cultural da Fantasia sobre a Ficção Científica. Talvez seja ler de mais.

O romance prossegue , alternando os capítulos entre o novo e falso Henry Day, e o Henry Day que já não é por ser agora um trasgo. Ainda que tenha dois actores a representar diferentes rumos da sua vida, o verdadeiro Henry Day morreu, e o romance, ciente disto, conduz estes actores em papéis que desconhecem, para os quais são forçados a actuar por instinto e sem guião. O falso Henry Day tem por preocupação regressar definitivamente ao mundo dos humanos, envelhecer, ter uma família, morrer. Anyday, até encontrar uma criança que possa roubar para si, terá de esperar as décadas ou séculos necessárias, deixar que o mundo que conhece desapareça; ainda por cima, como manda a tradição, os trasgos que o são há mais tempo têm precedência. Henry Day cresce; Anyday, como o Peter Pan de outro conto, mantém-se inalterado, criança, rebelde, selvagem, isolado.

Esta é a grande mensagem do romance, e tanto maior se torna por ser irredutível. O romance não consegue impedir um maior interesse em Henry Day que em Anyday. Ainda que lhes devote igual número de palavras, apercebemo-nos que Anyday está a ser guardado para um confronto final com o trasgo que o veio substituir. Todos os capítulos são passos nessa direcção – ainda que haja um interesse romântico mais ou menos sublimado, o romance não consegue verdadeiramente decidir se os trasgos são crianças selvagens ou adultos em tamanho pequeno, e opta pela solução mais oportuna, que é de considerar – ainda que não o diga expressamente – que a existência do trasgo é transitória, que não funciona como sociedade mas como um conjunto de seres nos bastidores, a aguardar a indicação para saltar para o palco. Esta sensação contrasta violentamente com os desafios narrativos do novo Henry Day, que luta para se enquadrar numa época e sociedade que não é a sua, temendo a cada instante ser descoberto pelos pais e professores e amigos. O talento fala com mais força, e não consegue evitar um apreço pela arte de tocar piano, algo que o antigo Henry Day nunca demonstrara. Isto, e outro conjunto de sinais, leva o pai a desconfiar, com resultados trágicos. Ainda assim, o novo Henry Day acaba por enquadrar-se na nova vida, cresce, aparece, torna-se também ele pai de família e começa a suspeitar e temer os malditos trasgos.

É como se o romance se deixasse derrotar à partida e reconhecesse um desinteresse pelo fantástico que ele próprio inventara: que não há fascínio verdadeiro na criança eterna, na criança que não cresce. Que a criança não é mais do que uma fase de um ser complexo, que precisa de afastar-se e esquecer-se de si mesmo para contar uma história. A amnésia funciona como o grande veículo de transformação desta história, sem a qual os personagens não conseguiriam superar as transições abruptas e funcionar imaculadamente na nova condição. A memória surge como um ladrão furtivo, roubando paz e semeando ansiedade – a lembrança de Anyday pelo conforto dos seus sete anos, de Henry Day jovem por um lar germânico do passado, do Henry Day adulto pela existência nos bosques. O passado é um lugar alienígena ao qual não regressaremos, nem sequer em memória.

No fim surge a mudança, imposta pelo mundo. Também este cresceu enquanto não estávamos a ver, tornou-se complexo e exigente e desalojou a magia que nele restava. Os trasgos, um dia, terão páginas no Facebook e marcarão encontros de Bookcrossing por este país fora. Talvez seja assim que roubam, hoje em dia, as nossas crianças.

[Link Permanente

Site integrante do
Ficção Científica e Fantasia em Português
Texto
Diminuir Tamanho
Aumentar Tamanho

Folhear
Página Inicial

Arquivo

Subscrever
Leitor universal