28 Maio 2011
Eis, A Meu Ver, O Rosto Do Verdadeiro Terror.E historicamente não devia sê-lo. Não é a primeira vez que um escritor de qualidade se refugia nas entranhas do bicho género para conseguir vingar no mundo literário (e por vingar, refiro-me a ganhar dinheiro). Encontram-se ecos de iguais escolhas nas vidas de James Cain, Raymond Chandler, Jim Thompson, Bruno Fisher, alcançando possivelmente o apogeu em Max Brand, cujo dinheiro ganho com histórias passadas no Oeste americano lhe permitiriam comprar uma casa em Itália, onde encontraria a paz e inspiração necessárias para desenvolver a sua paixão pela poesia clássica - sem dúvida um modelo invejável. Compromissos desta natureza (vulgarmente conhecidos por «engolir o sapo») não são fáceis de aceitar por autores que começaram por ter aspiração literária; por muito que aqueles que de nós chafurdam na poça de lama defendamos, com justiça, os elevados valores intrínsecos, este meio continua e continuará a ser encarado com desprezo pelo mainstream, em constante desacordo com a importância dada, pela literatura de género, ao enredo, ao cenário e a qualquer factor externo à condição humana. Quem tenha crescido a alimentar-se com Faulkner, Joyce e Maugham dificilmente irá encarar as ficções dos contemporâneos Heinlein e Asimov como algo diferente de brincadeiras de crianças - a não ser que também tenham feito parte do leite materno e expandido a mente do infante com a capacidade de deslumbramento e imersão de que só a literatura de género é capaz. Dizia que o compromisso de escrever pulp e science fiction nunca era fácil de aceitar pelo jovem aspirante a autor, mas como contrapartida, estes autores procuravam melhorar o género, enriquecendo-o com uma sensibilidade literária que os autores habituais não tinham competência para fazer. Escondidos por detrás de pseudónimos convenientes, trabalhando num anonimato relativo, conduzindo experiências a que o público ia reagindo, pode afirmar-se que foi em grande medida graças ao trabalho forçado destes «condenados» que o género se expandiu e permitiu inspirar uma nova geração a utilizá-lo enquanto terreno literário fecundo e versátil.
Perante esta perspectiva história, em que se enraiza o meu receio? Que diferença existe entre a escolha dos autores do passado e dos autores do presente? Não se trata da mesma escolha, da mesma compulsão de escrita e reconhecimento e, no final, de pagamento?
Sim e não. Não há diferença na escolha. Há diferença no anonimato.
As escolhas do passado não surgiam nas páginas do New Yorker nem do Guardian. Não tinham o sabor de apostas numa hipotética Bolsa de Valores literária. As obras não iam a leilão antes de estarem escritas. Não se tornavam no esforço de marketing de editoras gigantescas em dúzias de países em simultâneo. Não se gerava expectativa nas lojas. Não faziam parte dos lançamentos de Verão nem das escolhas da rentrée.
Ter o mundo ansioso à espera da obra. Eis a melhor situação para um autor. Eis a pior situação para a literatura.
Quando se cometia um erro, quando a história era rejeitada ou se falhava um prazo, quando se despertava a animosidade num editor, haveria outro a quem recorrer. Um polir do texto, alterar o pseudónimo, situar no West End ao invés do Bronx - para a esquerda ou para a direita, somos todos filhos do mesmo espaço urbano. As histórias eram curtas, escritas a ritmo alucinado, sem revisão nem coerência. Uma experiência literária com o botão fast forward premido, como diria o Gibson - da inúmera bosta acabaria por sair gema, pois tal é a natureza da evolução selectiva. A fama surgiria aos poucos, acumulada texto a texto, à medida da resposta do público e sustentada por este. Depois o dinheiro. Depois o prestígio nas teses literárias. Não o inverso.
Falhar agora, com um contrato à volta do pescoço, é ter o suado emprego de muita gente nas mãos. Ninguém quer esse tipo de sangue na consciência. Não lhe será concedida segunda oportunidade. Aliás, se os ventos do mercado mudarem de feição, não haverá sequer virtuosismo presente que lhe valha. O mundo empresarial não pára para recolher os feridos.
Ah, e essa internet, que nada esquece e pouco contextualiza...
Vendeste a tua alma, meu caro, e pela tua alma não arriscarás experiências literárias. Os teus vampiros farão parte dos bem comportadinhos, para surfar a onda, ou sairão dos moldes clássicos, por que queres parecer inconformado. Terás umas pitadas de ciência à mistura, mas não te vais esticar, para não afastar a malta. Se fores demasiado geek, a NY Review of Books nem te tocará com uma vara. A não ser que te tornes no über-geek, fiques milionário por outras empreitadas - mas nesse caso vão ler-te pela tua fama e não pelas tuas palavras. As tuas palavras, que deverão surgir amontoadas aos milhares, para poderes vendê-las ao quilo, e deverão ser simples e imediatas, repletas de descrições e diálogos naturalistas, sem aqueles jogos de estilo tão difíceis e caros de adaptar ao cinema.
E ai de ti que inventes monstros ou fábulas de que ninguém ouviu falar. Que enalteças pederastas, fascistas ou anti-semitas. Que sejas desconfortável além do limite permissível. Limita-te aos vampiros, aos zombies, aos lobisomens, aos anjos e outros arquétipos do mundo ocidental que não possam ser mal entendidos como representação racista de alguma minoria. Segue os critérios estabelecidos pelo departamento comercial.
Porque na era do global, sabemos onde te escondes.
(E a pior tristeza deste Diabo é a sua preferência por Fantasia, pois nem prometendo a alma, a casa, o carro, o nome e alguns apêndices corporais uma pessoa consegue publicar Ficção Científica...)