Exposição Prolongada à Ficção Científica  

   um blog de Luís Filipe Silva


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06 Abril 2012

The Fact Is we're all just a bunch of ink-sniffers.

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14 Março 2012

Vamos Tornar A Coisa Clara desde a primeira frase, para evitar leituras apressadas e dúbias: não detesto histórias de zombies. Como qualquer elemento do fantástico, o fenómeno do morto que não fica quieto e se arrasta pela eternidade dentro em busca de algo muito específico (braaains!) tem a sua utilidade, desde o comentário social à paródia. Mas também, como acontece com qualquer outro elemento, uma dose sã de aplicação contida e razoável não faz mal nenhum à literatura, e inclusive é capaz de fazer muito bem.

Num lado do espectro, encontram-se antologias como The Living Dead, organizada por John Joseph Adams, cuja gorda dimensão permite incluir histórias dos mais variados tipos, desde as mais clássicas de horror às de cariz intimista, desde aquelas em que os autores procuraram justificar cientificamente o aparecimento dos zombies (explicações que normalmente se revelam patéticas ou absurdas, um pouco à moda das origens dos poderes dos super-heróis) às que utilizam o fenómeno do morto-vivo como encarnação de memórias desconfortáveis e testemunhas de um passado vergonhoso. Já anteriormente aludi, neste espaço, a uma história em concreto («Death and Suffrage»), na qual as vítimas de assassinato à mão armada se erguem do chão em época de eleições e se reunem, silenciosas, em torno das urnas, forçando os cidadãos americanos a confrontarem pessoalmente os resultados da crença da liberdade do porte de armas e a votarem com mais clareza no candidato correcto - exemplo da literatura fantástica na sua melhor função de critica social pela visualização da sociedade futura ou imaginada que, com as nossas acções e inacções, ajudamos a edificar. Contudo, estas histórias são raras, e mesmo a antologia, para o mais entusiasta de ficção sobre zombies, acabará (estou certo) por constituir um excesso, qual refeição em que todos os pratos, simplesmente, chegam demasiado cheios. A verdade é simples: a utilização do zombie é limitada, e para conhecer um espectro que mistura textos clássicos, recomenda-se Zombies! Zombies! Zombies! de Otto Penzler, cujo título demonstra perfeitamente que os admiradores não conseguem levar este artifício literário demasiado a sério.

E contudo, no outro lado do espectro, impera a seriedade. Uma seriedade forçada, complicada, por vezes difícil de digerir. Não encaro a seriedade com leveza, até porque é imprescindível para o efeito sufocante das histórias de terror, categoria em que se enquadram a maioria dos exemplos desta zona do espectro. Contra o terror, contudo, ergue-se a lógica, como reacção imediata de sobrevivência, em busca de soluções e caminhos para escapar ao destino eminente. E é aqui que a suspensão da descrença começa a soçobrar. Culpa dos autores, que não são coerentes e contradizem as próprias premissas que se esforçaram tanto para consolidar.

Assim, em Guerra Mundial Z, o efeito de colagem jornalística que Max Brooks vai, com alguma destreza construindo, perde-se aquando do ataque dos zombies a Nova-Iorque e respectiva defesa pelos militares. Existe uma sequência fulcral, na qual são lançados jactos de lança-chamas, os corpos meio-vivos começam a arder, e ainda assim os zombies avançam! A sério? Esqueceram-se da lição básica de anatomia - que um esqueleto não se mantém em pé a não ser pela força dos tendões e pela robustez dos músculos, os quais seriam rapidamente consumidos pelas chamas -  e ainda assim, caminham? Depois de o autor ter gasto uma centena de páginas a explicar elaboradamente a disseminação do suposto «vírus zombieficante» (uma hipótese razoável no contexto literário), lembrou-se de repente que o fogo era uma forma eficiente de ataque e (ups!) toca de lançar uma explicação apressada? Para incluir a cena obrigatória de uma Manhattan cheia de mortos-vivos rastejantes que ficaria tão bem num filme, imagino...

Sem pensar nos modos como um zombie funcionaria (os impulsos eléctricos cerebrais preconizados pelo Walking Dead não bastam, pois existe toda a parafernália do sistema nervoso central e secundário que fornece energia aos órgãos, faz o zombie ver as presas, cheirar o doce aroma da carninha fresca e ir a correr - a correr! - atrás dela; sem contar no facto de, de repente, um morto-vivo apresentar dentadas tão aguçadas que são capazes de dilacerar um ser humano em poucos minutos), mesmo o mais lesto, feroz e implacável das estirpes zombíficas cairia perante o uso de granadas, bombas ou outras formas de dilacerar orgãos. É muito, muito difícil crer numa eventual queda da sociedade moderna por graça do apocalipse zombie. E contudo, as obras actuais deste subgénero tratam o apocalipse zombie, não só como uma inevitabilidade cujos pormenores são tão parecidos de obra para obra que demonstram já fazer parte de um inconsciente literário, à moda dos impérios galácticos e das viagens transluminais do passado, como utilizam uma prosa cuidada e intimista, que em nada se conjuga com a relativa imbecilidade da premissa (estou a pensar no caso muito particular de Zone One). O que era meramente divertido e funcionava neste contexto tornou-se num artefacto bizarro, que pouco contribui para a maturidade do género. É um pouco como ver um grupo de adultos a filosofar sobre a gravitas dos brinquedos infantis: tem-se vontade de dizer «não é para isso que servem».

Uma epidemia que transformasse seres humanos em zombies seria debilitante. Os doentes, mesmo demonstrando picos de actividade, em breve perderiam as forças, por falta de alimento. A perda gradual de membros, estrutura óssea e terminações nervosas acabaria por desfazê-los. Seria fácil fugir deles, mesmo para uma criança de quatro anos. Como só reagem a estímulos e não planeiam nem pensam, deixar-se-iam capturar sem problemas. Um mero animal de estimação é mais inteligente do que eles. Não metem medo algum.

Estão a ver o que acontece quando se aplica a lógica? Estraga tudo.

Talvez a melhor forma de demonstrar seja com uma ficção apressada.

Os miúdos estavam novamente a espicaçar os zombies.

- Manel, Joaquim, parem com isso! – berrou a mãe através da janela aberta. – Ainda acordam o vosso pai!

Mas era tarde de mais. Tobias entrou cozinha adentro, a cofiar a barba e com olhos ainda inchados de sono. Percebeu-lhe no olhar: os miúdos não se iam safar a umas boas palmadas.

- Que porra de algazarra é esta?

- Estão outra vez metidos nas gaiolas. Desde que trouxeste o gordo que não os largam.

- Não o trouxe para andarem a brincar com ele. Deixa-me tratar do assunto – espetou a cabeça pela porta. – Manel, Quim, aqui, já! Se não largam os zombies, tranco-vos lá dentro com eles.

A ameaça devia ter resultado, pois surgiram duas figuras pequenas, muito animadas, a correr pelo quintal. Cada uma trazia uma cana pousada no ombro, na ponta da qual se afixava um anzol com um pedaço de carne fresca espetado. Agora, foi a vez da mãe ficar irritada.

- Mas isto é carne da boa! Quem é que vos mandou ir à despensa? Já vos disse que só lhes damos restos – tirou a cana a um deles e tentou dar-lhe uma palmada no rabo, mas passou apenas de raspão. O miúdo soltou uma gargalhada e pulou para cima da cadeira, querendo chegar à cesta com fatias de bolo. O irmão imitou-o. – Nem pensem nisso! O jantar está quase feito. Nada de comer doces.

- Ah, mãe!... – queixou-se o Manel. – Estou cheio de fome!

- Mais fica para o jantar. Agora, vai lavar as mãos, andaste a mexer... – e parou, ao olhar com mais atenção para o pulso do miúdo. – O que é isto?

Ele tentou esconder mas ela foi rápida e agarrou-o, puxando a manga da blusa para cima. Dois rasgões vermelhos estendiam-se até meio do braço.

- Não foi nada, foi um que me agarrou. Nem sequer dói.

O pai surgiu por trás e deu-lhe uma palmada na cabeça que lhe levantou cabelo.

- Não sabes ter cuidado? Não vos ensinei já a alimentar os fedorentos? – E depois virou-se para o irmão dele, mais velho, e deu-lhe também uma palmada. – E tu, não te disse para tomares conta do teu irmão?

Amuados por que tinham apanhado por igual conta, fizeram beicinho e baixaram a cabeça.

A mãe tinha já ido buscar água oxigenada e desinfectante.

- Aqueles bichos são porcos, só mexem em coisas mortas – disse ela, começando a limpar as feridas do Manel. Quando este soltou um queixume, sacudiu-lhe a mão. – Não te mexas. Estás cheio de sorte por já teres levado as vacinas. Se não, ias acabar como eles.

- A professora disse que só uma em cem pessoas é que fica doente – adiantou o Joaquim.

- A vossa professora diz muita coisa – comentou a mãe. – Mas o avô foi dos primeiros a ser apanhado.

- O avô estava paralítico na cama, mãe.

O pai esticou o pescoço para ver a ferida do pequeno.

- Isso não é nada! No meu tempo, quando andavam à solta e nos apanhavam a jeito, eram capazes de nos arrancar os dedos à dentada!

- Mas, pai, eles estão todos desdentados, como é que faziam isso? – perguntou o Joaquim, em tom de desafio.

- Ah, mas ainda tinham dentes. Dentes cortantes e aguçados que saíam das gengivas e se enterravam na pele. Pareciam facas.

- A professora disse que eles metiam mais pena que medo. Até um bebé corre mais depressa que um zombie.

- Ah, sim? Então e isto? – e arregaçou a manga, expondo a habitual cicatriz profunda junto ao ombro.

- A mãe disse que apanhaste uma bebedeira no dia do casamento e caiste pela escada...

- Isso são modos de falar com o teu pai? – cortou a mãe. Virou-se para o marido: - E tu, vai despachar-te, que não estás a assustá-los. Faz-se tarde.

Antes de sair para o quintal, o pai virou-se para o Joaquim e arreganhou os dentes.

- Grande e aguçados. Foi um fedorento inchado, caiu em cima de mim. Quase me arrancava o braço...

A mulher atirou-lhe com o algodão usado e os miúdos riram-se.

Lá fora, Tobias perdeu não mais que dez minutos a laçar três dos fedorentos e a atá-los à carroça. Eram os que mantinham uma fisionomia mais intacta – aos dois restantes, faltavam pedaços do torso e boa parte dos braços. Teria de se ver livre deles, o cheiro já se tornara insuportável e eram inúteis como bestas de carga. Quanto aos restantes, seguiam o caminho normal da degeneração, perdendo olhos, lábios e dedos à medida que o tempo e os insectos se iam aproveitando da carne que restava.

Tobias entrou em casa e voltou passado algum tempo com o farnel. Os zombies aguardavam pacientemente, até serem perturbados por algum estímulo – como era hábito, perdidos para o mundo e para a vida. Neste caso, bastava um pano ensopado em sangue fresco de galinha para os fazer andar, que se pensava numa vara e se agitava diante deles. Acordava-os, soltavam gemidos de dentro de pulmões que não passavam de sacos inúteis de pó, e lá conseguiam arrastar a carroça na ânsia da fome.

Como mão-de-obra não se destacavam pela flexibilidade, mas Tobias preferia-os aos animais, particularmente agora, perante tantas leis de protecção e o custo de obter uma boa besta de carga com todas as vacinas em dia e papéis sanitários aprovados. Os zombies eram baratos de manter e não davam problemas. Se não fossem eles , Tobias não tinha forma de manter a terra lavrada a tempo. Alugar um tractor estava acima das possibilidades e a cooperativa não queria ajudá-lo.

Mas um dia até os zombies acabariam por gastar-se e desaparecer. Era um pensamento aterrador para uma noite tão escura, e Tobias afastou-o de imediato.

 

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