14 Janeiro 2014
Outras Leituras (1). Crítica publicada no Caderno Literário InDica, n.º 0, 2013.«Havia em mim um impulso incendiário, uma voracidade para engolir tudo, uma incapacidade para a paz, para o silêncio e para os dias comuns», confessa-nos em jeito de promessa a abertura de Enquanto Lisboa Arde, o Rio de Janeiro Pega Fogo, terceiro romance do jornalista português Hugo Gonçalves. Quem fala é o protagonista: assessor político desempregado que (europeu em tempos de crise) aceitou trabalhar com gente de má fé e que (romântico com tendências literárias) aceitou os avanços da mulher do chefe. Resultado? A inevitável fuga para o Rio de Janeiro.
Traz o Homem dentro de si as sementes da sua destruição? Esta parece ser a crença da estória: não tarda até que o protagonista se perca numa bruma de maconha e mulheres, de amigos ambíguos e missões duvidosas. Ainda que seja no Rio, e muito especificamente, na geografia, nos sons e cores da Cidade Maravilhosa, que se encontra, a si mesmo e a Margot, paixão consumida de carne e alma que faz tanger as cordas da prosa como se fosse violão de rua. É no estilo – vibrante, alucinado, incansável, veloz – que está a grande força do romance. Gonçalves leu os autores do século XX, tece uma prosa que sabe, ora a poesia ora a delírio.
Mas é também um livro de enganos, pois apresenta-se como um relato pessoal do fim do mundo. Este mundo é o Portugal moderno, composto e vestido pelos fundos europeus que, durante quase duas décadas, sustentaram o estilo de vida das gerações saídas do 25 de Abril. Portugal amordaçado pelo défice, pela austeridade e pelo desemprego das classes educadas que esperavam passar incólumes; forçado a emigrar, como a geração iletrada dos anos 60, mas tão diferente desta.
A diáspora, vista pelo marketing da editora, é outra: conta Gonçalves nas entrevistas que, embora com planos de partir para o Brasil, foi despedido do jornal em que trabalhava e chegou à terra prometida com a precariedade de tantos outros compatriotas. O relato pessoal em breve se torna fantasia, ao envolver o rol quase mandatório de figuras da recente memória portuguesa (temos o ex-PIDE, o ex-refugiado do Holocausto, o sobrevivente de Abril, o filho do papá rico), verdadeiro mostruário de defeitos sociais, como se o Rio fosse, ao mesmo tempo, foz e âmbar cristalizado dos últimos quarenta anos de História de Portugal. A reflexão que prometia ser profunda, inovadora e desconcertante, limita-se a repetir os mesmos argumentos dos média e dos cafés, embora com ocasional ironia. E até o romance é interrompido por frequentes notas de rodapé em estilo jornalístico, explicando pormenores da vida e História brasileiras ao leitor luso, como se incerto da sua verdadeira natureza.
No final, representa menos o mergulho de um expatriado na estranheza de outra cultura, outro clima e outra forma de falar a mesma língua, e mais a sua passagem pelos contornos da superficie, com a mandatória visita ao Leblon e à favela, ícones sociais que aparentemente é impossivel desassociar da ideia do Rio de Janeiro. O autor não é ingénuo a ponto de crer em explicações fáceis, pelo que coloca vários personagens locais a alertar-nos que nem tudo o que se pensa da cidade reflete o que realmente é. Contudo, não deixam de ser conversas alheias, entrevistas, e deixa a sensação de um livro que podia ter sido um mergulho mas fica-se pelo surf.
Ainda assim, um surf de mestre. Recomendado.