Exposição Prolongada à Ficção Científica  

   um blog de Luís Filipe Silva


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21 Janeiro 2014

Leituras de 2014 (5). «Division By Zero» de Ted Chiang. Lido em inglês.

Por muita advocacia do processo científico e da explicação objectiva do universo que a FC conduza em textos literários, há uma área em que se mostra tão avessa quanto a demais literatura: a matemática. 

Com esta afirmação não me refiro a textos que utilizem matemáticos como personagens (o caso de Shevek n’Os Despojados de Ursula Le Guin), que sustentem o enredo num efeito matemático (como o caso de «Andavam os Borogroves Desditosos» de Lewis Padgett com tradução de Dulce Helena da Silva) nem que descrevam a vivência comum num mundo que é uma «transposição» do nosso (sendo o caso mais conhecido o de Flatland – Uma Aventura em Muitas Dimensões de Edwin Abbott,  neste caso particular da tradução recente de Hélder Moura Pereira). 

Falo de textos que tenham a matemática por base do enredo, como um texto de Hard SF utilizaria o fenómeno das cordas ou as condições extremas da física nas redondezas de um espaço negro, e que produzam a sensação de maravilhoso estranhamento ao descreverem um fenómeno bizarro e contrário à nossa experiência mas possível dentro do nosso saber. Mesmo a Enciclopédia não é muito clara nesta distinção, além de, estranhamente, dar pouco destaque ao trabalho de Greg Egan, autor conhecido por encher o seu sítio Web de demonstrações visuais dos teoremas que utiliza na escrita.

Entra Ted Chiang, autor norte-americano de ascendência chinesa que granjou uma reputação invejável no género durante a passada década graças a duas peculiaridades: por um lado, a clareza de um raciocinio especulativo aplicada à exploração de conceitos extravagantes, em parte retirados do misticismo judaico-cristão (o fabrico de golens, a construção efectiva de uma Torre de Babel, a existência real de anjos); por outro, a escassez do que produz, limitando-se a ir publicando um ou dois contos por ano, contra o dilúvio de ficção que constantemente jorra das gráficas norte-americanas. Prova viva da falibilidade dos conselhos comerciais que constamente inundam os ouvidos dos pobres jovens autores, impelindo-os à saturação das redes sociais com os seus patéticos berros («estou aqui, estou AQUI! Porque é que NÃO ME LÊEM?! Buaaaá»).

Escasso e cativante. A prosa de Chiang está para o mercado da FC como o diamante está para o mercado das pedras preciosas. E como os diamantes, não está livre de defeitos nem apresenta sempre o mesmo nível de aquilatação.

O conto supra é ambíguo, se quisermos avaliá-lo. Alia uma pergunta extraordinária – e se fosse demonstrável que a matemática como um todo é inconsistente? – com uma exploração literária limitativa e incapaz de conter a grandiosidade da premissa.

A premissa não é fácil de explicar. Além da aritmética básica e de algumas noções de estatística, a matemática, enquanto problema intelectual, está ausente da nossa rotina, não obstante o cérebro (se saudável) continuamente efectuar os cálculos vectoriais que nos impedem de chocar contra objectos, pousá-los e apanhá-los com precisão, manter o corpo em equilíbro sustentado apenas em duas pernas, medir velocidades e distâncias a conduzir e a correr, e assim por diante. Temos uma vaga lembrança de equações e funções e sinalética como obstáculos no jogo do ensino oficial que é necessário contornar de forma a atingirmos o nível seguinte – e logo prontamente esquecidos. Mas reconhecemos a matemática como uma competência fundamental, com provas dadas, pela observação – as pontes não caem, os aviões chegam ao destino, os satélites mantêm-se em órbita, as duas metades de túneis submarinos em construção encontram-se a meio – e pela experiência – uma dúzia de ovos é uma dúzia, não se transforma de repente em seis ou oito ou zero sem, no mínimo, um descuido de quem os segura...

Assentar assim uma história sobre a extinção do formalismo e explicar a leigos as implicações deste acontecimento requer a educação da massa leitora.

Uma decisão muito complicada num género capaz de excomungar obras que sejam incapazes de diluir a pílula didática no líquido narrativo.

Chiang estrutura o conto em três continuidades cénicas: a da explicação, a do desenvolvimento da problemática científica, a dos efeitos no casamento e respectiva evolução emocional. Além disso, toma uma decisão ainda mais fundamental, a de ser breve.

Estas decisões expõem de forma clara o raciocínio autorial e demonstram como cada peça encaixa nos desafios intrínsecos à escrita de ficção (sobre) matemática.

1) Explicação: Chiang abre o texto com um parágrafo que nos demonstra de forma simples o que significa a divisão aritmética em termos formais, e em que medida a divisão por zero, que dá o titulo ao conto, desnuda um dos paradoxos fundamentais da matemática, pois conduz a um resultado contraditório com o próprio raciocínio e é capaz de derrubar um dos princípios sagrados, a da unicidade dos números. Um é igual a um, sabemo-lo, mas tal contradição permite argumentar que é igual a dois ou a qualquer outro número (mais pormenores), a não ser que se recorra ao artifício do «infinito», ou uma outra forma de dizer, «é melhor ignorar isto».

Exposição do problema com um conceito simples ilustrado pelo título. Enquanto exemplo para demonstrar, numa oficina de escrita criativa, como se pode abrir um texto de FC complexa, é quase perfeito.

Contudo, ainda não existe história. Para isso, precisamos de introduzir figuras, um local, uma época, um conflito - ingredientes básicos:

2) Conflito-base: o do cientista perante si mesmo. A protagonista, Renee, é uma matemática brilhante que, é-nos dito, desde tenra idade é bastante sensível aos padrões da composição do mundo – por outras palavras, a realidade, para ela, é demonstrável e descrita pela matemática. Nesta crença reside a beleza e a solidez da existência.

As a child of seven, while investigating the house of a relative, Renee had been spellbound at discovering the perfect squares in the smooth marble tiles of the floor. A single one, two rows of two, three rows of three, four rows of four: the tiles fit together in a square. Of course. No matter which side you looked at it from, it came out the same. And more than that, each square was bigger than the last by an odd number of tiles. It was an epiphany. The conclusion was necessary: it had a rightness to it, confirmed by the smooth, cool feel of the tiles. And the way the tiles were fitted together, with such incredibly fine lines where they met; she had shivered at the precision.

É uma sensação humana, compreensível. Mas ao mesmo tempo estranha para o ser humano «normal». Encantamo-nos com a harmonia de uma paisagem e a de uma música – encanto que deverá muito a um padrão calculatório subjacente – mas não a este ponto. O mundo é o que é, o que existe. Não requer decifração.

Obviamente, o cérebro do matemático pensará de forma diferente. Chiang tenta mostrar-nos, mas logo a seguir desfere o golpe: existe uma demonstração formal, inabalável, de que a matemática é um sistema que se auto-contradiz. De que 1=2, 1=3, um número qualquer é igual a outro número qualquer.

E Renee, para quem tal consistência é sagrada, é o veículo de tal descoberta. O que a vai destruir como pessoa.

3) o drama humano: Carl, marido de Renee, é uma pessoa «normal», que faz uma pergunta «normal»: a matemática que conhecemos é-nos útil de forma prática? Sim. Então, qual é o grande problema?
É a falta de sentido, diz ela.

“Now mathematics has absolutely nothing to do with reality. Never mind concepts like imaginaries or infinitesimals. Now goddamn integer addition has nothing to do with counting on your fingers. One and one will always get you two on your fingers, but on paper I can give you an infinite number of answers, and they're all equally valid, which means they're all equally invalid. I can write the most elegant theorem you've ever seen, and it won't mean any more than a nonsense equation.”

Para atingir os conceitos mais esotéricos da matemática, é preciso atravessar um território de premissas e pressupostos, assentes num formalismo. Mas os pressupostos têm uma tendência para se irem apoiando em outros pressupostos, como a estrutura de um prédio assenta em pilares ou o software aplicacional confia no sistema operativo. Se um dos pilares fundamentais racha... a casa vem abaixo.

Renee desfez a ilusão. O prédio ruiu. Podemos viver nas ruínas, mas não há beleza nem sentido.

Como transmitir tal desalento ao leitor? Chiang não o faz pela maestria da prosa; não tenta sequer mostrar-nos o que é conviver com esse conhecimento, dia após dia, a não ser pelas manifestações externas, e algo óbvias, de depressão e afastamento, que acabam por se transformar numa tentativa de suicídio. O marido dela está atento e salva-a; um sub-enredo explica-nos que também ele atentou contra a vida, é um sobrevivente das profundezas da alma. Das três sequências narrativas, é o drama humano – o ponto de vista de Carl, que é também a perspectiva do casamento – que impera no fim e que chega à seguinte conclusão: quem habita apenas o seu espaço mental afasta o mundo e afasta os outros e por conseguinte é incapaz de um relacionamento afectivo.

Um final invulgar para um conto que se dedica a uma argumentação científica. Que o desequilibra. Se houve um acumular de tensão a que o enredo terá dado prioridade, não foi o do casamento – este parece surgir como uma solução apressada perante a impossibilidade de a história fugir à pergunta inevitável do leitor: «pronto, a matemática não serve para nada, mas ainda funciona em termos práticos; e daí

Aqui se revela uma grande falácia dos hábitos de escrita – e também de leitura – da FC norte-americana.

A de que o conhecimento tem de ter consequências práticas e palpáveis no mundo extemporâneo.

Fica assim vedada a Chiang a abordagem (vulgar no mainstream) de sustentar na graça da prosa e na argumentação pormenorizada de um conflito interior as implicações filosóficas da história. Nada tinha de acontecer, além da descoberta em si – nada e, afinal, tudo. O olhar do matemático teria oferecido a sua própria apologia, a sua visão de um futuro sem sentido, de progresso arbitrário e frágil. Bem explorado, um terremoto íntimo pode ter maior interesse em termos literários do que o seu congénere físico.

O que teria um Lem feito com a ideia deste conto. Um Borges.

É bizarro observar que a FC é tão propícia à exploração de conceitos grandiosos e complexos como é limitativa...

Como um volumoso depósito de água que não se consegue vedar por completo.

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18 Janeiro 2014

Ver A Arte. Eis um modo incrivelmente simples e sublime:

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