Exposição Prolongada à Ficção Científica  

   um blog de Luís Filipe Silva


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19 Fevereiro 2023

Se o pecado que podemos cometer com a grande literatura é de ignorá-la, quando surge, a sua virtude - ou inefável milagre - é o de conseguir renascer, qual semente que aguarda no solo gelado pelos raios anunciantes do Estio. Mas Stoner teve de esperar primeiro pela transposição da barreira da linguagem de modo a ressurgir em força, como merecia. Seria o outro lado da cerca menos inóspito? Que irónico uma obra americana que trata da paixão pelos livros e pelo conhecimento ter de receber da velha Europa o reconhecimento devido pela sua maestria. Porque é de paixões que este livro trata. O momento em que Stoner se apercebe do amor pela literatura é de uma beleza singular, descrita com precisão e pragmatismo. Tivessem os romances de cordel igual maturidade emocional... mas quem sabe se podemos sentir por um ser humano, alguém que se mexe, reclama, tem marés, padece de humores, muda com as estações, tanta intensidade de sentimento como a que nos desperta um texto escrito? Objecto talvez inanimado, imóvel, constante, mas também, que nunca se cala, que ressuscita ante a mais simples leitura, reagindo ao espaço e ao tempo com o mesmo fervor dos seus pares mais recentes, qual solução química exposta ao ar. Afinal, é eterno e não sabia. Haverá maior amor que o sentido pelas infinitas possibilidades dos parágrafos? Stoner mostra-nos que não. Banal foi a sua vida - excepto nos livros, e é com um livro que a dele termina, um livro nas mãos, sempre um livro nas mãos, a capa que se fecha, última página lida, um suspiro ausente. Na sua mundanidade, alcançou a glória. Deixando o personagem uma discreta marca, na forma de um par de obras de juventude, ligeiramente elogiadas, embora vincadamente ignoradas - contudo, quem sabe o que lhes acontecerá depois do final, na sequela que, espera-se, jamais se faça? Quem sabe que pós-vida terão, ainda que a vida dos livros só termine quando queimado o último exemplar? Devia Stoner ter sido um protagonista mais exigente, ambicioso, aventureiro? Acontece que a alma condiciona as nossas escolhas, e os caminhos que trilhamos são os da voz do narrador da nossa vida. Ele optou pelo enredo conhecido, porque quis descobrir o próximo capítulo, não desistir a meio. E depois, terminou, como todas as histórias. Como todos nós. Obrigado, John Williams, por apontares tão factualmente, mas de forma perfeita, aquilo que nos une. Nunca saberás que Stoner foi a tua Katherine. Mas ela voltou para nós. Sim, ela voltou.

capa do livro

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12 Fevereiro 2023

Para que serve o «Cânone»? Não, não questiono a necessidade de haver obras célebres, porque todos precisamos de referências, de pontos de encontro, nem que seja para melhor nos desentendermos, mas, sim: para que serve a edição da Tinta da China, assim denominada? E porque motivo (que não o provocativo para chamar a atenção e ganhar uns cobres - falo de motivos literários legítimos) teve este título? Se a própria introdução avisa que «(...) não vale a pena procurar nele o cânone da literatura portuguesa», não seria mais apropriado chamá-lo «Não o Cânone»? Mas, se o é, porque é o nome que lhe deram, será esse fantasmagórico cânone o dos autores de quem aqui se fala, ou os autores que aqui daqueles falam? E quem os escolheu, a uns e a outros? Menos claro: a quem se destina o livro? Para leitores que deviam conhecer, à partida, todos os autores aqui debatidos? Não terá sido para descobri-los que, precisamente, esse leitor terá adquirido o livro? E porque motivo somos lançados, em certos episódios, no meio da selva, em contra-insurreições de guerrilha antes de conhecermos sequer os lados e os ideais? Afinal, havia guerra? A importância de Herculano é medida pelo que Teófilo pensava dele? E porque há-de ser Teófilo uma autoridade nessa matéria? Não convém perceber, primeiramente, quem foi Herculano - o que comia, o que vestia, se arrotava após a ceia? Que documentário ignorámos, que podcast nos passou ao lado? Ficaram-se as orientações editoriais pelo caminho? Não merecia o Jorge de Sena melhor sorte - uma primeira introdução à sua obra e preocupações, antes de ouvirmos as suas lamentações pela presumida falta de reconhecimento em vida? E defendê-lo com excertos dos seus textos, que o artigo sobre Espanca, apesar de resvalar para igual pecado, ao menos aplica como redenção? Sejamos justos: porque não usar textos de todos estes autores, juntá-los no palco, conceber um livro polifónico, apaixonado, em que cada qual defende, como sabe e pode, o seu talhão? Faz sequer sentido discutir as indiferenças coevas de obras que sobreviveram à morte do autor, sabendo que de outras, talvez então populares, não se fala? (Fernando Namora, anyone?) Se quaisquer discussões sobre cânones pretendem criar mais perguntas do que respostas, eram estas as perguntas que queriam despertar? E para concluir, podemos, por favor, ter um livro apenas com artigos do Miguel Tamen, dos poucos que, aqui, brilharam como pérolas - infelizmente breves - de equilibrismo entre sabedoria e sensatez, articulando perguntas difíceis e essenciais sobre a literatura, e alguns dos seus atletas, com a leveza aparente de que só os mestres são capazes?

capa do livro

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