O que era certo era que por vezes havia obstruções nas estradas do oriente peninsular. Obstruções inesperadas, que apareciam vindas de nenhures. O que é o mesmo que dizer vindas das cabeças vazias de meia-dúzia de idiotas com excesso de hormonas. Não que os condenasse totalmente. Algumas razões haviam de ter. Ele próprio fizera alguns disparates quando o Algarve se tornara independente, movido por uma raiva que pedia por tiros e explosões. Ainda andara metido em contrabando de material ilicitamente bélico. Mas acabara por não se passar nada. A União tinha regras, e os algarvios mantiveram-se sempre dentro delas. Não havia nada a fazer. E era melhor não fazer nada, como bem sabiam os castelhanos. Há catorze anos que Castela pagava pelo terrorismo espanholista fora das suas fronteiras.
Apesar de tudo, a inacção portuguesa fora boa para o país. Mesmo perdendo a província do Sul, o foco económico da Península deslocou-se para Lisboa.
Um apito do linque: estava outra vez desatento, perdido nos seus pensamentos. Afastou-os. Havia ocasiões mais adequadas para divagar sobre a geopolítica europeia. Por agora, o que importava era chegar à fronteira occitana sem chatices. Para isso talvez fosse bom que quebrasse uma das suas regras. Se calhar era boa ideia verificar se havia complicações. Se os problemas estavam distraídos ou se o seguiam com olhos atentos em busca de uma oportunidade para lhe saltar às goelas.
Consultou o linque.
E lá estavam eles, os problemas, acenando-lhe de longe e rindo-se de si: o trânsito em torno de Saragoça estava quase parado.
Praguejou. Percorreu os menus do linque em busca da notícia. Encontrou-a pouco depois. Aparentemente, um maluco tinha entrado na ER1 em Calatayud, vindo de Madrid a uma velocidade absurda, e continuara ER1 fora até embater na traseira dum electrotransporte que seguia lentamente na faixa própria. A camioneta ficara com metade do tamanho original, o veículo do maluco, um BMM de fabrico saxão - um automóvel magnífico! -, fora quase reduzido a pó. O trânsito processava-se devagar, em apenas duas faixas, prevendo-se uma demora de 15 a 20 minutos no congestionamento. A notícia prosseguia com considerandos sobre os motivos da aventura e uma biografia do doido. Mas que lhe interessavam os porquês e os quandos? Só as consequências o afectavam!
- Raios partam isto! - um resmungo raivoso.
Devolveu a atenção ao linque, voltou atrás nos menus, efectuou uma busca por rotas alternativas que lhe permitissem sair dali. Sem resultado, claro! Já estava demasiado próximo da cidade, já não havia fuga possível.
Levou a remoer a irritação até surgirem as primeiras obstruções, dez quilómetros depois. Em breve a estrada estava coalhada com uma mole contínua de veículos em marcha lenta. E inevitavelmente o piloto automático tomou o controle do carro. Quase gritou. Apertou o volante com força. Depois largou-o e aplicou-lhe uma valente palmada. Era raro, mas por vezes apetecia-lhe magoar o automóvel, causar-lhe dano, sofrimento. Torturá-lo até sangrar como se estivesse vivo.
Mas não serviria de nada. Ele não sangraria.
- Caraças! - disse, em voz alta.
Agora era a hora de glória da IA. Conduzia-lhe o carro engarrafamento fora de forma a optimizar o consumo de combustível. Sem qualquer emoção. Sem qualquer tipo de capricho. Portando-se simplesmente como o mecanismo eficiente que era. Ligada a todas as restantes IAs da longa fila de veículos, de modo a que nenhum deles saísse dali mais depressa ou mais devagar que os outros. De modo a evitar a muito gastadora tendência para conduzir em permanente travagem e aceleração.
Estava visto. Não teria nada para fazer durante quilómetros!
Suspirou, passou a mão pelo cabelo, olhou a paisagem. Aproximavam-se do aeroporto de Salamanca, e ele seguiu com um olhar entediado um avião que descia. Aquilo trouxe-lhe à memória a discussão sobre a ida de avião no dia anterior. E a remake à partida, de manhã. Às tantas ela tinha tido razão. Tivessem ido de avião e já lá estariam, em plena cidade de Paris, sem engarrafamentos, sem um volante que não funcionava debaixo das mãos. Se calhar ela tinha tido razão, sim. Olhou o retrovisor. Nada. Só o topo do banco e carros a perder de vista na janela traseira. Virou a cabeça.
Ela estava deitada de lado no banco, com as pernas encolhidas, exactamente como ele imaginara. Mas não dormia. Estava ausente, perdida nas profundezas do linque, que ronronava junto ao seu ventre. Estava ligada a tudo, numa imersão completa: oculares, auriculares de ouvido interno, colar, luvas, tudo.
Ele ficou imóvel. Fora para aquilo que ela resolvera passar para o banco de trás. Fora para aquilo que se escondera. Fora para fugir dele, sair do mundo real, enfiar-se no mundo de sonho da rede. Nunca tivera qualquer intenção de dormir. Quisera apenas trair-lhe a confiança e a boa-fé. Sim, porque ela sabia o quanto ele detestava aquilo. Oh, sim! Sabia-o perfeitamente...