Conceito de Luís Filipe Silva

Ficção Científica, Fantástico, Surrealismo, Realismo Mágico, Terror, Horror, Ciberpunk e História Alternativa - e por vezes, se fôr de excelente qualidade, ainda fechamos os olhos a um certo Mainstream...

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Noveleta

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~ Fim de Semana em Paris ~

O que era certo era que por vezes havia obstruções nas estradas do oriente peninsular. Obstruções inesperadas, que apareciam vindas de nenhures. O que é o mesmo que dizer vindas das cabeças vazias de meia-dúzia de idiotas com excesso de hormonas. Não que os condenasse totalmente. Algumas razões haviam de ter. Ele próprio fizera alguns disparates quando o Algarve se tornara independente, movido por uma raiva que pedia por tiros e explosões. Ainda andara metido em contrabando de material ilicitamente bélico. Mas acabara por não se passar nada. A União tinha regras, e os algarvios mantiveram-se sempre dentro delas. Não havia nada a fazer. E era melhor não fazer nada, como bem sabiam os castelhanos. Há catorze anos que Castela pagava pelo terrorismo espanholista fora das suas fronteiras.

Apesar de tudo, a inacção portuguesa fora boa para o país. Mesmo perdendo a província do Sul, o foco económico da Península deslocou-se para Lisboa.

Um apito do linque: estava outra vez desatento, perdido nos seus pensamentos. Afastou-os. Havia ocasiões mais adequadas para divagar sobre a geopolítica europeia. Por agora, o que importava era chegar à fronteira occitana sem chatices. Para isso talvez fosse bom que quebrasse uma das suas regras. Se calhar era boa ideia verificar se havia complicações. Se os problemas estavam distraídos ou se o seguiam com olhos atentos em busca de uma oportunidade para lhe saltar às goelas.

Consultou o linque.

E lá estavam eles, os problemas, acenando-lhe de longe e rindo-se de si: o trânsito em torno de Saragoça estava quase parado.

Praguejou. Percorreu os menus do linque em busca da notícia. Encontrou-a pouco depois. Aparentemente, um maluco tinha entrado na ER1 em Calatayud, vindo de Madrid a uma velocidade absurda, e continuara ER1 fora até embater na traseira dum electrotransporte que seguia lentamente na faixa própria. A camioneta ficara com metade do tamanho original, o veículo do maluco, um BMM de fabrico saxão - um automóvel magnífico! -, fora quase reduzido a pó. O trânsito processava-se devagar, em apenas duas faixas, prevendo-se uma demora de 15 a 20 minutos no congestionamento. A notícia prosseguia com considerandos sobre os motivos da aventura e uma biografia do doido. Mas que lhe interessavam os porquês e os quandos? Só as consequências o afectavam!

- Raios partam isto! - um resmungo raivoso.

Devolveu a atenção ao linque, voltou atrás nos menus, efectuou uma busca por rotas alternativas que lhe permitissem sair dali. Sem resultado, claro! Já estava demasiado próximo da cidade, já não havia fuga possível.

Levou a remoer a irritação até surgirem as primeiras obstruções, dez quilómetros depois. Em breve a estrada estava coalhada com uma mole contínua de veículos em marcha lenta. E inevitavelmente o piloto automático tomou o controle do carro. Quase gritou. Apertou o volante com força. Depois largou-o e aplicou-lhe uma valente palmada. Era raro, mas por vezes apetecia-lhe magoar o automóvel, causar-lhe dano, sofrimento. Torturá-lo até sangrar como se estivesse vivo.

Mas não serviria de nada. Ele não sangraria.

- Caraças! - disse, em voz alta.

Agora era a hora de glória da IA. Conduzia-lhe o carro engarrafamento fora de forma a optimizar o consumo de combustível. Sem qualquer emoção. Sem qualquer tipo de capricho. Portando-se simplesmente como o mecanismo eficiente que era. Ligada a todas as restantes IAs da longa fila de veículos, de modo a que nenhum deles saísse dali mais depressa ou mais devagar que os outros. De modo a evitar a muito gastadora tendência para conduzir em permanente travagem e aceleração.

Estava visto. Não teria nada para fazer durante quilómetros!

Suspirou, passou a mão pelo cabelo, olhou a paisagem. Aproximavam-se do aeroporto de Salamanca, e ele seguiu com um olhar entediado um avião que descia. Aquilo trouxe-lhe à memória a discussão sobre a ida de avião no dia anterior. E a remake à partida, de manhã. Às tantas ela tinha tido razão. Tivessem ido de avião e já lá estariam, em plena cidade de Paris, sem engarrafamentos, sem um volante que não funcionava debaixo das mãos. Se calhar ela tinha tido razão, sim. Olhou o retrovisor. Nada. Só o topo do banco e carros a perder de vista na janela traseira. Virou a cabeça.

Ela estava deitada de lado no banco, com as pernas encolhidas, exactamente como ele imaginara. Mas não dormia. Estava ausente, perdida nas profundezas do linque, que ronronava junto ao seu ventre. Estava ligada a tudo, numa imersão completa: oculares, auriculares de ouvido interno, colar, luvas, tudo.

Ele ficou imóvel. Fora para aquilo que ela resolvera passar para o banco de trás. Fora para aquilo que se escondera. Fora para fugir dele, sair do mundo real, enfiar-se no mundo de sonho da rede. Nunca tivera qualquer intenção de dormir. Quisera apenas trair-lhe a confiança e a boa-fé. Sim, porque ela sabia o quanto ele detestava aquilo. Oh, sim! Sabia-o perfeitamente...

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A fúria foi quase instantânea. E indomável. Num instante soltou o cinto de segurança, virou-se para trás, debruçou-se sobre ela e arrancou-lhe as oculares dos olhos. Nem pensou na elevada probabilidade de lhe causar danos neurológicos com uma emersão tão brusca. E pior que isso, involuntária. Nem lhe passou pela cabeça usar o botão de emergência. Nada. Limitou-se a agir.

O grito estridente que ela soltou fê-lo dar um salto. De repente o coração dele galopava. As suas veias eram um mar de adrenalina.
Aos poucos foi-se apercebendo do que fizera. E isso assustou-o mais ainda.

Porque ela continuava a gritar. E não parava quieta, estrebuchava, parecia que estava com convulsões. Porque continuava parcialmente ligada. Embora o colar se tivesse desprendido, os auriculares continuavam postos e as luvas calçadas. Ela estava a receber input sensorial incongruente de duas realidades mutuamente exclusivas, e estava a entrar em curto-circuito. Estava-se a passar.

Tentou tirar-lhe as luvas, mas ela mexia-se demasiado e as mãos fugiam às suas. Depois tentou o fio que se ligava ao ouvido interno através do estúpido implante na base do pescoço que sempre o incomodara. Também não era possível. O pescoço e a cabeça eram as zonas que mais violentamente se moviam. Por fim lembrou-se do botão de emergência na caixa do linque propriamente dito. Amaldiçoou a sua falta de à-vontade com aquelas porcarias e procurou a caixa. Mas com os movimentos desordenados dela, a caixa tinha deslizado para a ranhura entre os dois estofos do banco e era difícil chegar-lhe de onde ele se encontrava. Esticou-se mais. A primeira consequência foi apanhar com uma joelhada no nariz que por pouco o deixava a sangrar. Quase via estrelas. Sacudiu a cabeça e lançou o outro braço, tentando controlar as pernas dela até onde fosse possível, ou pelo menos proteger a cara daquele caos de movimentos. Apoiou-se nesse braço e, depois de uma pequena luta, lá conseguiu atirar a mão e o outro braço suficientemente longe para segurar na caixa do linque e puxar por ela. Premiu o botão antes mesmo de conseguir segurar naquilo.

O resultado foi pô-la de novo aos berros. Agora soltava em contínuo gritos vagamente articulados com vagas parecenças com palavras. Estrebuchava ainda mais que antes. Sacudia tão violentamente a cabeça de um lado para o outro que o fio dos auriculares se soltou. Respirava entrecortada e ruidosamente, interrompendo os gritos para engolir grandes golfadas de ar. A língua parecia indecisa sobre a posição a tomar. Começou a babar-se. Uma baba borbulhante e cor-de-rosa. Algures naquele descontrolo tinha surgido uma ferida.

Tudo indicava um ataque epiléptico, mas ela não era epiléptica.

A ele, aquilo parecia histeria. E quando viu o sangue entrou em pânico.

Fez os possíveis por se esgueirar para o banco de trás sem ser atingido em demasia e deu-lhe um tabefe. A histeria controlava-se assim, com tabefes. Sempre o soubera. Mas ela não parou de estrebuchar e ele ficou com manchas vermelhas nas costas da mão. Por isso deu-lhe outro tabefe, e outro, e outro, e...

Quando caiu em si tinha os punhos fechados e gritava enquanto batia, batia enquanto gritava. Chamava-lhe tudo, insultava-a de todas as formas que conhecia. E batia, batia, batia.

E ela não se mexia.

Então ele parou de bater. Durante um longo momento olhou para a massa informe de sangue que tinha sido a cara dela. Sem perceber. Sem perceber de todo. Chegou a chamar:

- Filomena!

Mas dela nenhum som saía. Nem mesmo o ruído ritmado da respiração. Ele inclinou-se sobre ela, pôs-lhe o ouvido sobre a boca. Nada. Contorceu-se todo naquele espaço minúsculo para conseguir pôr-lhe o ouvido sobre o peito. Nada.

Ou se enganava muito, ou ela estava morta.

Ficou calmo, a olhar para o que tinha feito. Não tivera culpa, só tentara despertá-la. Cometera um erro. Era humano, errava. Certamente compreenderiam. Exaltara-se. Qualquer um se podia exaltar. Não lhe devia ter arrancado as oculares. Mas ela também não devia ter fugido para o banco de trás para se ir enfiar na rede à socapa! De certeza que compreenderiam.

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Autor:
Jorge Candeias