Conceito de Luís Filipe Silva

Ficção Científica, Fantástico, Surrealismo, Realismo Mágico, Terror, Horror, Ciberpunk e História Alternativa - e por vezes, se fôr de excelente qualidade, ainda fechamos os olhos a um certo Mainstream...

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Noveleta

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~ Fim de Semana em Paris ~

E mesmo que não compreendessem, tentar fugir era fútil. Ela estava cheia do seu ADN, parte dos seus dedos também estava ali naquilo que tinha sido a cara dela. Havia cabelos seus por todo o lado. O carro era seu e estava cheio do sangue dela. E de toda uma química da violência que demoraria semanas a evaporar-se totalmente.

E de resto alguém podia ter visto, mesmo apesar dos vidros de sentido único. Sempre passava alguma luz no sentido contrário, e os carros seguiam lado a lado estrada fora, com as velocidades rigorosamente controladas, iguais à quinta casa decimal. E de certeza que alguém ouvira alguma coisa. Era impossível que todo aquele barulho não tivesse atravessado o isolamento sonoro como faca a nadar em manteiga!

E ainda havia os personagens da rede que assistiram de certeza a parte de tudo aquilo. À parte inicial. À parte da desestabilização da persona virtual. Seguida do desaparecimento dessa persona. Já houvera casos de morte enquanto as vítimas estavam em imersão. Os sinais eram bem conhecidos. E bem tipificados nos casos de morte violenta. Até podia ser que a e-polícia já andasse à sua procura...

Sim, tentar fugir era asneira.

Entregar-se à polícia era a única solução. De certeza que eles compreenderiam.

Olhou através dos vidros do automóvel. Os vizinhos estavam invisíveis por detrás dos seus próprios vidros de sentido único. Mas ele sentia dezenas de olhos sobre si, sobre todo aquele sangue, sobre o cadáver da sua amante. O cadáver que ele criara com os punhos. Continuava sentado sobre as pernas dela. Soergueu-se e sentiu-se exangue. Foi com enorme dificuldade que se contorceu de volta ao lugar do condutor, para se deixar cair sobre o banco, exausto.

Aquilo não podia ter acontecido! Principalmente não agora, num momento em que o Gabinete ia ter de tomar medidas impopulares!...

A reunião!...

Estava fora de questão, bem entendido. Não poderia ir até Paris, de modo algum. Mas tinha de contactar o chefe, informá-lo do que acontecera, transferir para ele os seus dossiers. Pô-lo ao corrente de tudo para que a sua ausência não prejudicasse o Gabinete mais do que o estritamente inevitável.

Debruçou-se sobre o linque do carro, fez uma ligação de banda larga e pôs-se à procura. Dois minutos depois tinha encontrado quem queria encontrar. Ligou para o chefe.

O chefe demorou a atender. Mas passado o que a ele lhe pareceu uma eternidade, um rosto surgiu no visor do linque:

- Quem é? - parecia aborrecido.

- Olá, Mário. É o José Rocha.

- Ah! Olá José. Não devias estar a caminho de Paris? E porque tens o visor desligado?

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- Estou a falar dum linque de tráfego. Estou preso num engarrafamento perto de Saragoça. Um acidente...

- Um doido?

- Parece que sim. A história diz que ele veio de Madrid. Mas não foi por isso que liguei.

O outro endireitou-se ligeiramente - Então foi porquê? - e, logo a seguir - Que tens na voz?

Ele fez uma pausa. Não sabia como explicar o que tinha na voz. Optou pelo rodeio:

- Estou muito cansado.

O outro fez um gesto de enfado - Estamos todos cansados, José. Este tem sido um mês muito mau. Mas não posso fazer nada e tu sabes disso. Temos de resolver este assunto. Quando o resolvermos logo descansamos. E por muito tempo, provavelmente...

- Não é isso, Mário - disse ele lentamente. Não havia nenhuma maneira de dizer aquilo sem soltar mesmo as palavras todas.

- Sabe quem é a Filomena?

- A tua mulher? Claro! Porquê?

- Amante. - outra pausa. Mas tinha mesmo de ser - Matei-a.

- Tu fizeste o quê?! - o outro parecia submerso em espanto.

Ele suspirou. Desviou os olhos do écran do linque como se o outro pudesse vê-lo. Como se lhe pudesse encontrar a verdade nos olhos.

- Matei a Filomena. Bati-lhe com demasiada força porque ela estava a ter um ataque de histeria, ou de epilepsia ou lá o que era e eu entrei em pânico porque tinha sido eu a provocar o ataque e estava a tentar fazê-la voltar a si mas passei-me e bati-lhe com força a mais e quando dei conta ela já não se mexia e depois vi que estava morta e fiquei ali a olhar para ela sem poder fazer nada e agora vou à polícia entregar-me mas eu não queria que isto acontecesse a culpa foi dela e da merda do linque dela e do raio da mania que ela tinha de se enfiar na rede todos os dias a todas as horas e...

O outro parecia bater no écran com os nós dos dedos. Dizia qualquer coisa. Ele percebeu que tinha perdido as estribeiras e despejado uma confissão sem nexo e numa voz cada vez mais alta até a ter acabado a gritar a plenos pulmões. Esforçou-se por controlar o tremor que lhe nascia nos membros. Esforçou-se por ouvir o que o outro lhe dizia:

- ... ouvir-me? Controla-te. Acalma-te. Respira fundo e depois conta-me o que aconteceu. Tudo. Tintim por tintim. E começa pelo princípio se fazes favor.

Fez o que lhe pediam. Respirou fundo meia-dúzia de vezes. Organizou os pensamentos o melhor que pôde. Tornou-se o mais profissional possível. Imaginou-se no Gabinete, numa reunião, obrigado a expor os assuntos sucinta e objectivamente. Expôs ao chefe a sua versão dos acontecimentos das últimas horas duma forma que lhe pareceu sucinta e objectiva. Entretanto, o chefe olhava para o lado e acenava com a cabeça. Tal e qual no Gabinete. No gesto típico do executivo ocupado que ouvia o subordinado com uma parte do cérebro enquanto usava o restante em assuntos muito mais importantes e urgentes. E, como sempre, a insegurança foi-se acumulando perante aquela semi-indiferença. A voz foi-se reduzindo até que quando terminou declarando a sua intenção de se ir entregar à polícia assim que recuperasse o controlo do automóvel já estava demasiado fraca para a conseguir manter firme.

- Disparate! - resmungou o outro no écran. - Não te vais nada entregar à polícia!

- Mas, Mário, não posso fugir! Eles encontram-me numa questão de horas e só pioro o meu caso!...

- Nós tratamos disso. Eles não te vão encontrar.

- Mas...

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Autor:
Jorge Candeias