- Estou a falar dum linque de tráfego. Estou preso num engarrafamento perto de Saragoça. Um acidente...
- Um doido?
- Parece que sim. A história diz que ele veio de Madrid. Mas não foi por isso que liguei.
O outro endireitou-se ligeiramente - Então foi porquê? - e, logo a seguir - Que tens na voz?
Ele fez uma pausa. Não sabia como explicar o que tinha na voz. Optou pelo rodeio:
- Estou muito cansado.
O outro fez um gesto de enfado - Estamos todos cansados, José. Este tem sido um mês muito mau. Mas não posso fazer nada e tu sabes disso. Temos de resolver este assunto. Quando o resolvermos logo descansamos. E por muito tempo, provavelmente...
- Não é isso, Mário - disse ele lentamente. Não havia nenhuma maneira de dizer aquilo sem soltar mesmo as palavras todas.
- Sabe quem é a Filomena?
- A tua mulher? Claro! Porquê?
- Amante. - outra pausa. Mas tinha mesmo de ser - Matei-a.
- Tu fizeste o quê?! - o outro parecia submerso em espanto.
Ele suspirou. Desviou os olhos do écran do linque como se o outro pudesse vê-lo. Como se lhe pudesse encontrar a verdade nos olhos.
- Matei a Filomena. Bati-lhe com demasiada força porque ela estava a ter um ataque de histeria, ou de epilepsia ou lá o que era e eu entrei em pânico porque tinha sido eu a provocar o ataque e estava a tentar fazê-la voltar a si mas passei-me e bati-lhe com força a mais e quando dei conta ela já não se mexia e depois vi que estava morta e fiquei ali a olhar para ela sem poder fazer nada e agora vou à polícia entregar-me mas eu não queria que isto acontecesse a culpa foi dela e da merda do linque dela e do raio da mania que ela tinha de se enfiar na rede todos os dias a todas as horas e...
O outro parecia bater no écran com os nós dos dedos. Dizia qualquer coisa. Ele percebeu que tinha perdido as estribeiras e despejado uma confissão sem nexo e numa voz cada vez mais alta até a ter acabado a gritar a plenos pulmões. Esforçou-se por controlar o tremor que lhe nascia nos membros. Esforçou-se por ouvir o que o outro lhe dizia:
- ... ouvir-me? Controla-te. Acalma-te. Respira fundo e depois conta-me o que aconteceu. Tudo. Tintim por tintim. E começa pelo princípio se fazes favor.
Fez o que lhe pediam. Respirou fundo meia-dúzia de vezes. Organizou os pensamentos o melhor que pôde. Tornou-se o mais profissional possível. Imaginou-se no Gabinete, numa reunião, obrigado a expor os assuntos sucinta e objectivamente. Expôs ao chefe a sua versão dos acontecimentos das últimas horas duma forma que lhe pareceu sucinta e objectiva. Entretanto, o chefe olhava para o lado e acenava com a cabeça. Tal e qual no Gabinete. No gesto típico do executivo ocupado que ouvia o subordinado com uma parte do cérebro enquanto usava o restante em assuntos muito mais importantes e urgentes. E, como sempre, a insegurança foi-se acumulando perante aquela semi-indiferença. A voz foi-se reduzindo até que quando terminou declarando a sua intenção de se ir entregar à polícia assim que recuperasse o controlo do automóvel já estava demasiado fraca para a conseguir manter firme.
- Disparate! - resmungou o outro no écran. - Não te vais nada entregar à polícia!
- Mas, Mário, não posso fugir! Eles encontram-me numa questão de horas e só pioro o meu caso!...
- Nós tratamos disso. Eles não te vão encontrar.
- Mas...