Painel Central
Passei hoje pelo café e espreitei para dentro. Como esperava, encontrei-o. Está sempre lá, de manhã à noite; é mais a sua casa de que o pequeno cubículo onde realmente vive, numa praceta esquecida. Tem lá aqueles que se podem passar por seus amigos, mas que são, na verdade, outros pedaços de madeira que, por um acaso, a corrente mantêm aprisionados no mesmo local. Bastará uma vaga mais forte, um sopro de vento, e desaparecerão, sem olharem para trás, sem se lembrarem de onde estiveram, com quem falaram. A maioria à espera que os filhos os venham buscar, para num descargo de consciência, os despejarem num lar sem porta de saída.
Esse futuro não parece ameaçar o meu amigo António. Gesticula, ri, e conta histórias dos dias passados, com a sua voz de bagaço contrapondo-se aos grunhidos dos companheiros sonolentos. A cadeira do balcão é o seu trono, e o copo o seu ceptro real, com que abençoa o mundo. Não teme a mão incompreensiva da sua filha, algures em França, porque recebe todos os meses um gordo cheque, que lhe permite viver desafogadamente. Está contente, porque tem uma filha que se lembra dele, e o estima, ao contrário dos outros miseráveis. Se ele soubesse...
Gostaria tanto de entrar, de lhe apertar a mão, dar-lhe um abraço, começar frases com «lembras-te...?», e ouvir respostas. Gostava de gargalhar de novo por causa das suas anedotas, contadas ao seu jeito inimitável. Gostava de fazer, só mais uma vez, o nosso acto de comédia à Bucha-e-Estica. E que estivéssemos todos juntos de novo. Xavier, o Borbulhas, o Baltasar, o Esgaza, o Zeferino, a Zita... meu Deus, éramos tão poucos? É possível que sete pessoas constituíssem o meu mundo, e não precisasse de mais ninguém?
Agora, tu és o último, Toni. Até eu próprio desapareci; fui o primeiro. Ainda te lembras de mim, do Magriço, que costumava ir contigo ir contar pêtas às miúdas, dizer-lhes que eu tinha sido ferido na tropa, para que se enchessem de pena (as que acreditavam) e saíssem connosco? Ainda te lembras daquele que ficou ao teu lado quando a tua mulher fugiu com o primo, e que te conduziu numa volta pela noite para afogar a tua mágoa? Como tu gostavas dela... o tanto que te esforçáste para a ter, o tanto que arriscaste. Ela não gostava de ti, todos víamos isso. Mas há certas coisas que nem um amigo pode dizer.
E depois choraste como um bezerro depois do meu acidente. Eu sei: vi as fotografias. Não te podia, não vos podia dizer que tinha sido tudo preparado, uma artimanha para que não estranhassem a minha ausência e não me fossem procurar. Tinha de o fazer. Vocês próprios já mandavam piadas sobre o facto de eu não querer envelhecer, de conseguir manter um aspecto jovem, já corriam especulações que eu pintaria o cabelo e faria massagens e poria cremes. Não eram mais brincadeiras inócuas; eu via-vos, com o cabelo a escassear, as rugas a implantarem-se espontâneamente, os músculos a penderem flácidos dos braços, e a barriga a inchar, e notava a inveja subliminar por detrás das palavras. Tive de desaparecer, antes que estranhassem. Mas nunca vos abandonei por completo. Devia: é mais fácil, a longo prazo. Mas com vocês, não consegui. Convosco, fiquei até ao limite máximo a que me permitia. Estou cansado de fazer amizades, e depois abandoná-las, sem razão. De me limitar a passar pela vida, sem nunca poisar e permanecer. Mas não tenho outro remédio.
Contigo, Carolina, agi de forma diferente. Foste a primeira, a especial. Fiquei contigo até ao fim. Fiquei a ver a passagem dos anos gravarem palavras no teu corpo, a ver o teu cabelo esbranquiçar e o espírito perder a côr. Fiquei a apreciar a soberania com que atravessavas os dias, cada vez mais lentamente, amadurecendo, ganhando experiência, pensando as coisas antes de as concretizares. Contigo, aprendi o que era envelhecer, por muito que tal me estivesse negado. Era uma condição física, não tanto psicológica. Por dentro, permanecias a mesma. A companheira que eu amava. Que eu amo e amarei sempre, o ideal de mulher que me é difícil encontrar em outras. Jamais te esquecerei. Sonho contigo todas as noites.
Aprendemos juntos o meu segredo, lembras-te? Lembras-te do meu espanto quando percebi que não envelhecia, que mantinha o aspecto dos meus trinta anos, após os quarenta, após os cinquenta, enquanto tu soçobravas com graça? Tivémos de fugir, para ninguém desconfiar: a minha primeira fuga. Como me senti culpado de não seres como eu, não permaneceres jovem e eterna a meu lado. Juntos, teríamos atravessado os séculos. Sabia que não te importavas; mas a mim, sim, importava-me, afligia-me. Por ti, por mim, pelo que nos fariam se descobrissem.
Oxalá te pudesse ter dado o filho que tanto desejavas... mas filhos é coisa para os mortais, é a forma de garantirem a imortalidade dos seus genes. Os meus nunca morrerão: não têem necessidade de serem transmitidos. É um dos preços que terei de pagar, nunca sentir aquela criaturinha indefesa nos braços, a berrar, e poder dizer que é minha.
Hoje, acendi uma vela pelo aniversário do nosso casamento, e orei por ti. Recordei. Na volta, passei pelo café. Estava fechado, mas à porta sentava-se o Toni, murmurando no torpor da bebedeira poesias de vento. A noite estava gelada. Uma mágoa enorme invadiu-me o coração. Peguei nele, acordei-o, conduzi-o a casa. Ele não via nada, estava imerso num universo próprio. Não me reconheceu. Confesso que fiquei um bocado desiludido; julgo que, inconscientemente, alimentava uma fantasia destrutiva de ser reconhecido e descoberto. Mas a realidade é mais dura. Já não somos quem éramos.
E tu, Toni, não serás o último. Eu é que serei. Serei o último de todos os grupos que me acolheram, serei aquele que vos chorará muito depois de os vossos nomes terem sido entregues a estranhos, muito depois de o tempo ter feito das vossas últimas moradas um repositório de pedra uniforme, e ao pó, ao mar, às àrvores terem retornado. Serei o guardador das nossas anedotas privadas, dos tiques, dos gestos, das manias pessoais de cada um. Serei o último de vós todos; vou manter-vos vivos, através de mim, vou manter-vos eternos. Perdoem-me. Não tenho outra escolha.