Conceito de Luís Filipe Silva

Ficção Científica, Fantástico, Surrealismo, Realismo Mágico, Terror, Horror, Ciberpunk e História Alternativa - e por vezes, se fôr de excelente qualidade, ainda fechamos os olhos a um certo Mainstream...

[Conheça o Manifesto]

Conto

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~ Tríptico: A Paixão de um Imortal ~

Painel Central

Passei hoje pelo café e espreitei para dentro. Como esperava, encontrei-o. Está sempre lá, de manhã à noite; é mais a sua casa de que o pequeno cubículo onde realmente vive, numa praceta esquecida. Tem lá aqueles que se podem passar por seus amigos, mas que são, na verdade, outros pedaços de madeira que, por um acaso, a corrente mantêm aprisionados no mesmo local. Bastará uma vaga mais forte, um sopro de vento, e desaparecerão, sem olharem para trás, sem se lembrarem de onde estiveram, com quem falaram. A maioria à espera que os filhos os venham buscar, para num descargo de consciência, os despejarem num lar sem porta de saída.

Esse futuro não parece ameaçar o meu amigo António. Gesticula, ri, e conta histórias dos dias passados, com a sua voz de bagaço contrapondo-se aos grunhidos dos companheiros sonolentos. A cadeira do balcão é o seu trono, e o copo o seu ceptro real, com que abençoa o mundo. Não teme a mão incompreensiva da sua filha, algures em França, porque recebe todos os meses um gordo cheque, que lhe permite viver desafogadamente. Está contente, porque tem uma filha que se lembra dele, e o estima, ao contrário dos outros miseráveis. Se ele soubesse...

Gostaria tanto de entrar, de lhe apertar a mão, dar-lhe um abraço, começar frases com «lembras-te...?», e ouvir respostas. Gostava de gargalhar de novo por causa das suas anedotas, contadas ao seu jeito inimitável. Gostava de fazer, só mais uma vez, o nosso acto de comédia à Bucha-e-Estica. E que estivéssemos todos juntos de novo. Xavier, o Borbulhas, o Baltasar, o Esgaza, o Zeferino, a Zita... meu Deus, éramos tão poucos? É possível que sete pessoas constituíssem o meu mundo, e não precisasse de mais ninguém?

Agora, tu és o último, Toni. Até eu próprio desapareci; fui o primeiro. Ainda te lembras de mim, do Magriço, que costumava ir contigo ir contar pêtas às miúdas, dizer-lhes que eu tinha sido ferido na tropa, para que se enchessem de pena (as que acreditavam) e saíssem connosco? Ainda te lembras daquele que ficou ao teu lado quando a tua mulher fugiu com o primo, e que te conduziu numa volta pela noite para afogar a tua mágoa? Como tu gostavas dela... o tanto que te esforçáste para a ter, o tanto que arriscaste. Ela não gostava de ti, todos víamos isso. Mas há certas coisas que nem um amigo pode dizer.

E depois choraste como um bezerro depois do meu acidente. Eu sei: vi as fotografias. Não te podia, não vos podia dizer que tinha sido tudo preparado, uma artimanha para que não estranhassem a minha ausência e não me fossem procurar. Tinha de o fazer. Vocês próprios já mandavam piadas sobre o facto de eu não querer envelhecer, de conseguir manter um aspecto jovem, já corriam especulações que eu pintaria o cabelo e faria massagens e poria cremes. Não eram mais brincadeiras inócuas; eu via-vos, com o cabelo a escassear, as rugas a implantarem-se espontâneamente, os músculos a penderem flácidos dos braços, e a barriga a inchar, e notava a inveja subliminar por detrás das palavras. Tive de desaparecer, antes que estranhassem. Mas nunca vos abandonei por completo. Devia: é mais fácil, a longo prazo. Mas com vocês, não consegui. Convosco, fiquei até ao limite máximo a que me permitia. Estou cansado de fazer amizades, e depois abandoná-las, sem razão. De me limitar a passar pela vida, sem nunca poisar e permanecer. Mas não tenho outro remédio.

Contigo, Carolina, agi de forma diferente. Foste a primeira, a especial. Fiquei contigo até ao fim. Fiquei a ver a passagem dos anos gravarem palavras no teu corpo, a ver o teu cabelo esbranquiçar e o espírito perder a côr. Fiquei a apreciar a soberania com que atravessavas os dias, cada vez mais lentamente, amadurecendo, ganhando experiência, pensando as coisas antes de as concretizares. Contigo, aprendi o que era envelhecer, por muito que tal me estivesse negado. Era uma condição física, não tanto psicológica. Por dentro, permanecias a mesma. A companheira que eu amava. Que eu amo e amarei sempre, o ideal de mulher que me é difícil encontrar em outras. Jamais te esquecerei. Sonho contigo todas as noites.

Aprendemos juntos o meu segredo, lembras-te? Lembras-te do meu espanto quando percebi que não envelhecia, que mantinha o aspecto dos meus trinta anos, após os quarenta, após os cinquenta, enquanto tu soçobravas com graça? Tivémos de fugir, para ninguém desconfiar: a minha primeira fuga. Como me senti culpado de não seres como eu, não permaneceres jovem e eterna a meu lado. Juntos, teríamos atravessado os séculos. Sabia que não te importavas; mas a mim, sim, importava-me, afligia-me. Por ti, por mim, pelo que nos fariam se descobrissem.

Oxalá te pudesse ter dado o filho que tanto desejavas... mas filhos é coisa para os mortais, é a forma de garantirem a imortalidade dos seus genes. Os meus nunca morrerão: não têem necessidade de serem transmitidos. É um dos preços que terei de pagar, nunca sentir aquela criaturinha indefesa nos braços, a berrar, e poder dizer que é minha.

Hoje, acendi uma vela pelo aniversário do nosso casamento, e orei por ti. Recordei. Na volta, passei pelo café. Estava fechado, mas à porta sentava-se o Toni, murmurando no torpor da bebedeira poesias de vento. A noite estava gelada. Uma mágoa enorme invadiu-me o coração. Peguei nele, acordei-o, conduzi-o a casa. Ele não via nada, estava imerso num universo próprio. Não me reconheceu. Confesso que fiquei um bocado desiludido; julgo que, inconscientemente, alimentava uma fantasia destrutiva de ser reconhecido e descoberto. Mas a realidade é mais dura. Já não somos quem éramos.

E tu, Toni, não serás o último. Eu é que serei. Serei o último de todos os grupos que me acolheram, serei aquele que vos chorará muito depois de os vossos nomes terem sido entregues a estranhos, muito depois de o tempo ter feito das vossas últimas moradas um repositório de pedra uniforme, e ao pó, ao mar, às àrvores terem retornado. Serei o guardador das nossas anedotas privadas, dos tiques, dos gestos, das manias pessoais de cada um. Serei o último de vós todos; vou manter-vos vivos, através de mim, vou manter-vos eternos. Perdoem-me. Não tenho outra escolha.

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Painel da direita

Entramos em casa, lado a lado. Ele pousa os sacos do supermercado que tem vindo a carregar por mim, vira-se e dá-me um beijo dos antigos. Eu correspondo, adoro que ele faça isso, mas também tenho vergonha. É tão novo, e eu estou tão velha!... A minha boca está franzida, os dentes já não são os meus, e não consigo mais aguentar tanto tempo num beijo apaixonado e exigente. Canso-me, quebro a paixão, tenho de me sentar. Ele conduz-me suavemente ao sofá, depois vai-me preparar o almoço. Eu sorrio com um pensamento secreto. Aos olhos de todos, dizemos que somos mãe e filho, mas já não é uma brincadeira, percebo que se tornou na verdadeira realidade; somos mãe e filho com breves interlúdios de amor juvenil.

Devia ter-me abandonado, digo-lhe repetidas vezes, mas ele não aceita. Não vê que eu já não consigo satisfazê-lo, que precisa de alguém jovem, alguém como ele sempre será - ele responde que não precisa de sexo, precisa é de mim, do meu amor. Mas não é isso que ele está a receber; o meu amor, a minha presença, está a torná-lo velho por dentro, tanto quanto eu estou velha por fora. Está a matá-lo na única parte de si que é perecível: a alegria de estar vivo.

Prepara a mesa, comemos. É um serão agradável. Ele perscruta-me debaixo das sobrancelhas, descobre-me a contemplá-lo e sorri. Sorrio também, mas não lhe dou indicação alguma do que estava a pensar. Ele resigna-se e volta a comer. Eu observo os seus movimentos, cautelosamente, registando cada um como um instrumento afinado. Não perdeu nada da sua destreza, da sua fluidez, da perfeita coordenação dos músculos. Os anos passaram por ele sem o tocarem. Antes, foi refinado, tornou-se mais puro, mais seguro da sua pessoa. Espantoso. Como será ele quando tiver duzentos anos, trezentos, mil? Que pensamentos poderá ter, que coisas poderá ele ainda esperar da vida? Intuitivamente, sei que deverá haver uma fase em que tudo lhe parecerá já ter sido dito, feito, ou pensado, em que o passado e o futuro não serão mais pontos de referência, mas tornar-se-ão numa mistura de memórias e expectativas, tão difusas e vazias de propósito como parecerá a uma rocha no meio de um rio a eterna corrente que insurge contra ela. Mas, uma vez ultrapassada, o que haverá para lá dessa fase, para lá da monotonia? O que haverá para lá da eternidade?

Fazemos amor, e é muito belo e muito suave. Ele tem um cuidado extremo comigo, por vezes até excessivo. Depois afasta-se para o seu lado e adormece, esgotado por me ter dado tanto e recebido tão pouco. Fico a olhar para o seu rosto, iluminado por uma fatia de luar. É tão vulnerável!... Precisa tanto de protecção, precisa que o amem, que o ajudem a lidar com uma capacidade que não compreende. Toco-lhe ao de leve, passo os dedos pelos lábios quietos. Para onde irás quando eu desaparecer? Quem te dará abrigo nos séculos por vir, quando o mundo que tu conheças fôr substituído por um outro, mais moderno, e de repente, ao acordares, não encontrares aquele pequeno sinal de segurança que te prenda à tua identidade? Quem te dará conforto quando tiveres medo?

Oxalá eu fosse como tu, pudesse atravessar contigo as eras. Tenho medo de morrer; não por mim. Estou cansada, e quando a minha hora chegar, não irei fugir. Mas tu... tu irás ficar sózinho, guardando com todas as tuas forças o segredo da dádiva mais extraordinária que se pode oferecer a um ser vivo, e nunca podendo partilhá-la com alguém.

Meu amor imortal, dorme esta noite. Tens tantas pela tua frente, e tão escuras!...

 

(c) 2002 Luís Filipe Silva

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Autor:
Luís Filipe Silva