Conceito de Luís Filipe Silva

Ficção Científica, Fantástico, Surrealismo, Realismo Mágico, Terror, Horror, Ciberpunk e História Alternativa - e por vezes, se fôr de excelente qualidade, ainda fechamos os olhos a um certo Mainstream...

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Conto

 

Contagem Decrescente

 

Luis Rainha

 

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Contagem/

1. O calor. O ruído surdo agora constante. Estranho anoitecer, insone na luminosidade alaranjada que esconde o firmamento tão claro, a carta astral agora tão óbvia. Os relâmpagos incessantes: a mão do Deus irado ou apenas a mão calejada e vulgar do menor deus Vulcano, martelo repetindo desde sempre a sua tarefa cega, indiferente. Um derradeiro desejo: morrer em paz, longe daquele ronco. Ter tempo e silêncio; concentrar-se num implausível ritual de preparação. Ele aumenta o volume da música para esconder o ronco. E ouve o majestoso pulsar agora sentido tão próximo.

Agora.


2. Inventário. O sinal sobre o lábio superior da sua actriz preferida. O riso do filho que muito atrás desejara. Um avião que se despenha, penacho de fumo quase visível da sua varanda. O cavalo de um conquistador anónimo morrendo num outro continente, antes de tudo o mais. Um reflexo casual numa janela perdida marcado a brasa na sua memória. O segundo em que o seu olhar se cruza pela primeira vez com o de Goya. Um último pôr-do-sol em Amambay. A recordação distante de momentos nos braços de uma mulher amada. As luzes histéricas de uma refinaria à beira do deserto.

A tudo ele diz adeus. O que lhe poderá sobreviver? Menos que nada.


3. Death will be unlike the night-times, when we lie awake, thinking of Death, canta do gira-discos a voz arcaica do poeta. Quantos anos gastos a recear a morte? (A sua, pois nunca existiria outra; sem ele para a ouvir, mais nenhuma árvore cairia na floresta, e o gato do Físico bem poderia ficar para sempre sem saber se vive ou não.)

Ainda ontem acordou a meio do primeiro sonho, o coração em busca de um batimento perdido, o espírito poluído por mais uma negra epifania em que sabe e sente a certeza do fim.

Enquanto jovem, julgara ter descoberto o antídoto para estes terrores nocturnos, para esta clareza definitiva; julgara ter descoberto que o suicida é o único a saber morrer. Sem medo, sem súplicas balbuciadas nem conversões tardias, aspergidas pela urina do terror abjecto.

Ignorar a instrução primordial do código genético, desejar a Morte como uma mãe severa mas sábia, um útero capaz de nos devolver ao silêncio. Correr para ela como o touro investindo contra o estoque brilhante e fatal. Que feito mais invejável?

Tarde demais até para esta ambição medíocre. A sua sentença fora escrita e confirmada. E agora sente-se quase defraudado. Onde está o pânico, ou pelo menos a perda? Nada. Apenas tédio, distância, e mais algum tempo para invejar a sabedoria dos outros: Death will be unlike a room full of spiders, all clinging together and crying.

4. Parecendo recear contaminar-se, a multidão formava um círculo em redor do acidente, evitando mesmo pisar o lago de vidro estilhaçado que se derramara sobre o asfalto.

Uma vítima do acidente, semi-ejectada do seu veículo. Imóvel sobre o capot, a metade inferior do corpo presa na selva metálica que desabrochara dentro do habitáculo. As névoas dos motores turbilhonando um último sonho de velocidade. Ninguém se aproximava.

De súbito, um deles avançou. Milhões reconheceram-no. E viram-no como se pela primeira vez: invocando miríades de feições diversas, imobilizadas em tantas poses agonizantes, celebradas em tantos altares, museus, santuários. Todas se reuniam naquele rosto.

Zoom. Ele fez qualquer coisa à cabeça da vítima, torcida num ângulo letal. A multidão, um organismo único, deu um passo em frente.

Zoom. Mais próximo. Cada vez mais próximo.

Eis tudo/apenas o que ele recorda ao despertar. E uma dúvida primeira: sonho febril ou recordações de um mesquinho reality show em reposição, vestígio arqueológico dos dias em que a vida corria alegre de satélite em satélite; catódica, primordial, inesgotável. A Parúsia, Live from Bethelehem, às 5 da manhã, entre dois segmentos perdidos de televendas. Uma segunda hesitação: estaria mais alguém a ver? Ou a importar-se com estes sinais?


5. Por esperança, desespero ou apenas falta de outra coisa melhor para fazer, ele visita um Especialista seu amigo. Talvez simplesmente para confirmar o diagnóstico, para se livrar da miragem de uma remissão impossível.

Facto esperado: a Ciência nada pode fazer contra o invasor. Fora descoberto tarde demais. Em imagens coloridas e exactas, a face do monstro cresce a cada minuto. Os gráficos precisos tudo explicam, numa caligrafia monstruosa a soletrar uma só palavra: "morte". Deseja não ter sabido tão cedo. Nem conhecer o rosto do assassino; antes ser alvejado pelas costas, sem aviso nem premonições.


6. Outro dia passa e ele decide-se a deixar o seu emprego. Nada de grandes actos dramáticos como ir até ao escritório. Nada de longos olhares ou despedidas chorosas. Não; é melhor ficar em casa. O sinal "Não incomodar" à porta, dissuadindo os amigos zelosos que não tem. Apenas uma engrenagem mais que range suavemente até parar. E já ninguém se incomoda em repará-la. Tudo se esfarela, cada vez mais ténue e débil; o seu dedo poderia furar a parede couraçada do quartel fronteiro ao seu apartamento. Se ao menos ele tivesse vontade.


7. No andar superior de um autocarro panorâmico, aberto ao nebuloso fim de tarde outonal. No banco de trás, ele admira os turistas perfilados como espectadores de uma partida de ténis: olhares ziguezagueando de um lado para o outro em uníssono com as indicações dos seus auscultadores. Também ele ouve as pequenas vozes que se elevam dos auscultadores, rezando minúcias históricas em seis idiomas distintos e simultâneos.

O autocarro pára ao lado de mais uma massa granítica, templo de glórias prestes a serem esquecidas. Por um momento de imobilidade universal, ele começa a compreender o coro das pequenas vozes de Babel. Mil rádios de todo o mundo sintonizados por fim numa só música das esferas. Sobe-lhe ao entendimento um esperanto mágico, pronto a recitar-lhe uma verdade espantosa e redentora. Uma razão para tudo aquilo.
Segundos de respiração suspensa. Mas logo a voz una se cala; é tempo de partir para a próxima atracção. Enquanto o autocarro volta a arrancar penosamente, ele ouve apenas um turista segredar à sua mulher obesa: "so much to see, so little time..."


8. Telefona-lhe alguém que diz ser a sua ex- -mulher. Ele assegura que não é ele. Esse alguém já morreu. E nem sequer é uma mentira; apenas uma antecipação às burocracias do destino. A voz lacrimejante insiste: que não o quer deixar morrer sozinho. Como se houvesse outra forma. Ele desliga, sabendo de que lado ficou o medo da solidão.


9. O epitáfio perfeito: um engarrafamento. Condutores exasperados saem dos carros para não voltar. Filas de máquinas belas e inertes, motores ainda a funcionar, calando-se um a um pouco depois. Talvez a morte fosse também ou tão somente isto: a entropia, crescendo dele para fora, arrastando tudo numa voragem de cansaço, ferrugem, corrupção, silêncio. Ele está à janela.

A dor, o esforço de lhe dar um nome: dor.


10. Hoje é o dia do fim. Desde o despertar, colecciona um sem-fim de pequenos presságios, pequenos vestígios do seu destino cintilantes no âmbar de uma lucidez dolorosa.

Ele sabe que hoje é o dia do fim ao ver o sorriso deslocado da jornalista na TV. A notícia é-lhe quase indiferente, mas não este instante: os olhos dela abandonam as linhas electrónicas do teleponto para um décimo de segundo de contacto com os seus. O tempo não precisa de se suspender para que ele ouça a mensagem. Aquele é o seu oráculo; ele sabe que a sua hora chegou.

Fecha os olhos, antes sequer de ver a legenda: "Asteróide em Direcção à Terra?". Ignora as bonitas ilustrações de dinossauros que olham para o céu, de estradas luminosas por entre as núvens, de bolas de fogo capazes de engolir continentes, de tsunamis com mil metros de altura.
Levanta-se; sai da sala sem se dar ao trabalho de desligar o receptor. Deita-se na sua cama e fecha os olhos. Agora.

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Autor:
Luis Rainha