Conceito de Luís Filipe Silva

Ficção Científica, Fantástico, Surrealismo, Realismo Mágico, Terror, Horror, Ciberpunk e História Alternativa - e por vezes, se fôr de excelente qualidade, ainda fechamos os olhos a um certo Mainstream...

[Conheça o Manifesto]

Conto

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~ Eu Blogo, Tu Blogas ~

Os posts do «Aquele Que É» vão-se tornando mais venenosos, de uma agressividade raramente encontrada nas flames wars que com frequência surgem na web.

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Steve, que não tinha falado durante o seminário, estudava no departamento de Ciências Sociais e Humanas, fazendo um Master em ciberantropologia. Perante a estranheza dos outros, explicou pacientemente que se tratava do estudo da forma como as novas tecnologias, sobretudo as novas formas de comunicação, modificavam as relações entre as pessoas.

Rob foi ao balcão e regressou com três chávenas de café e um pacote de crisps, que pousou na mesa. Steve descrevia a Tom a motivação do seu trabalho:

- (...) a web propriamente dita já é um assunto muito discutido, a influência do e-mail nas relações sociais e inter-pessoais já foi objecto de muitos trabalhos. Mas os blogues são uma coisa nova, e portanto ainda muito pouco estudados. - Bebeu um pouco de café e continuou: - E têm algumas diferenças importantes em relação ao que existia anteriormente. O peso institucional é praticamente nulo, ao contrário dos websites. Um blogue tem normalmente um autor individual. Depois, enquanto no e-mail a relação é geralmente de um para um ou de um para poucos, e privada (o destinatário ou destinatários são escolhidos pelo emissor) o blogue estabelece uma relação de um para muitos, não previamente escolhidos, e portanto pública. Por outro lado, é facílimo pôr um blogue no ar; alguns autores dizem que pela primeira vez a democracia chegou à comunicação... - Fez uma pausa para mais um gole de café. - E há uma teoria que eu gostava de verificar... Já ouviram falar de Peterson? - Perante a negativa dos outros dois, continuou: - Linus Peterson publicou há uns anos um artigo no Sociological Forum, onde defendia que uma estrutura social sem qualquer tipo de constrangimentos tornar-se-ia necessariamente instável, evoluindo para o que ele chamou «modos próprios» de funcionamento. Ele diz que foi buscar a ideia aos sistemas mecânicos ou eléctricos, que possuem frequências próprias de vibração ou oscilação. De qualquer forma, de acordo com a sua teoria esses modos próprios poderiam ser três pólos (dois contra um, em regime rotativo, tipo 1984 do Orwell), dois pólos em equilíbrio dinâmico (género guerra fria, Estados Unidos versus Rússia) ou um único pólo aglutinador (o verdadeiro totalitarismo). O artigo foi muito criticado pela sua «incorrecção política», mas muitos dos sociólogos não o devem ter percebido, porque utiliza bastante matemática.

Esta afirmação provocou o riso dos dois interlocutores. Steve continuou:

- Mas eu pedi a um amigo que é professor de matemática que o lesse, e ele disse-me que a matemática é sólida.

- Gostava de ler esse artigo - disse Tom.

- Tenho uma cópia em pdf, mando-to por e-mail.

Steve explicou que um outro incentivo para estudar o desenvolvimento da blogosfera era esta ser um fenómeno ainda no seu início, onde a evolução seria mais fácil de visualizar. Tinha começado por uma análise estatística com informação recolhida nos apontadores, taxas de crescimento, correlações entre a evolução de blogues com temáticas semelhantes, coisas desse tipo, mas a ferramenta que Tom tinha apresentado parecia ser o ideal para a recolha de informação. E propunha que experimentassem fazer algum trabalho comum. Tom, que nunca tinha pensado que o seu trabalho pudesse ter aplicação nas ciências humanas, considerou interessante a ideia.

Quando aplicou o programa à blogosfera, Tom não achou que os resultados iniciais tivessem grande interesse. Era uma distribuição aleatória de pontos luminosos, espalhados de modo aparentemente uniforme no monitor. Com o passar dos dias mais pontos iam aparecendo, mas a blogosfera era ainda jovem, e a resolução do monitor não era suficiente para estabelecer diferenças. Teclou um comando que fez aparecer linhas cuja espessura representava o fluxo de tráfego associado. A aparente uniformidade desapareceu; alguns dos blogues eram claramente locais privilegiados, uma espécie de atractores onde as linhas tendiam a convergir. Era também possível ver zonas onde o tráfego se adensava entre um conjunto de blogues, como se fosse uma bacia de atracção. Tom manteve o programa a correr permanentemente e programou uma rotina para que de hora a hora o módulo de gravação guardasse em disco a imagem obtida.

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O blogue «Eu é que sei» foi a primeira vítima: depois de ter usado o termo fundamentalismo blogoso a respeito do «Aquele Que É», começou a receber catadupas de comentários insultuosos até se ver obrigado a desligar a secção de comments. Nas duas semanas seguintes surge em volta do blogue um grupo que se auto-intitula «Os defensores d'Aquele Que É» e que se constitui como a tropa de choque do blogue. E quando o «Don't take it too serious», um blogue de crítica social de pendor anarquista, lhes chamou webligans, no dia seguinte sofreu um ataque de tal forma virulento que foi obrigado a fechar.

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Tom decidiu tirar uns dias de férias, para ir acampar nas montanhas. Nas últimas noites tinha sonhado com o trabalho, e quando isso começava a acontecer, sabia que era tempo de fazer um intervalo. Fez rapidamente a mochila, percorrendo a lista que guardava religiosamente desde os seus tempos de escuteiro - roupa, calçado, saco cama, tenda, lanterna eléctrica, material de cozinha, mais o reduzido número de objectos indispensáveis à sobrevivência de um campista isolado. As provisões iria comprá-las no minimercado existente no parque de estacionamento onde deixaria a carrinha.

Algumas horas mais tarde, Tom caminhava, de mochila às costas, por um trilho que se dirigia para Norte. O ar estava agora mais frio, mas o calor do Sol, ainda alto no céu, compensava a temperatura mais baixa do ar. Pelas suas contas, chegaria à margem do lago a tempo de montar a tenda ainda com luz do dia.

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Começou a correr, em privado - porque já não era seguro postar certas afirmações - que as represálias por vezes não se limitavam ao ciberespaço, mas que se materializavam na realidade real, na forma de rótulas partidas, facadas ou traumatismos cranianos a autores de blogues que por qualquer razão beliscassem «Aquele Que É».

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Quatro dias passaram sem história, preenchidos com os pequenos actos do quotidiano. Nadar nas águas frias do lago, secar ao sol, preparar as refeições, em tudo isto Tom punha uma intencionalidade, saboreando cada momento do presente como se o passado não existisse e o futuro não o preocupasse. Leu poesia - tinha levado uma antologia de bolso de poesia japonesa, e descobria fascinado a estranha beleza do haiku - e escreveu de vez em quando num caderno de capa plastificada que sempre o acompanhava nestas andanças. Algumas das ideias importantes em diversas fases do desenvolvimento do seu trabalho estavam registadas nesse caderno.

Na última noite, enquanto as brasas da fogueira morriam lentamente, deitado de costas, Tom olhava os inúmeros pontos luminosos que polvilhavam o escuro e relembrou o comentário de Rob Watson, no final da apresentação do seu projecto. Enquanto adormecia, pareceu-lhe que o firmamento se convertia lentamente no monitor da sua work station...

No regresso - primeiro na caminhada até ao parque de estacionamento e depois ao volante da carrinha até Irvine - o mundo exterior foi lentamente retomando o lugar nos seus pensamentos. Chegado a casa, depois de descarregar a carrinha, Tom separou o material que seria objecto de uma limpeza cuidadosa na manhã seguinte e a roupa para levar à lavandaria. Em seguida, tomou um duche rápido, e enquanto secava o cabelo com uma toalha, sacou uma embalagem do frigorífico que enfiou no microondas, cortou duas ou três peças de fruta para dentro do misturador, juntou leite, pôs a tampa e ligou a máquina. Alguns minutos depois, comia qualquer coisa supostamente italiana - quando quis descobrir o quê, não conseguiu, porque já tinha enfiado a embalagem no triturador - e bebia um batido de sabor algo indefinido.

Tinha pensado ver um filme nessa noite (a pilha de DVDs comprados nos últimos meses e ainda não vistos estava a tornar-se ameaçadora) quando reparou que a luzinha do atendedor automático piscava. Como tinha instalado recentemente o aparelho, ainda não entrara na rotina de verificar se tinha mensagens sempre que chegava a casa.

A mensagem era da tarde do dia anterior.

- Tom, sou eu, Steve. Liga-me quando chegares, é importante.

Premiu a tecla "Reply". Steve atendeu quase imediatamente. Parecia que estava ao lado do telefone.

- Tom, passa-se qualquer coisa com os blogues. Há cada vez menos!

- O que queres dizer com isso?

- Acontece cada vez mais aparecer «not found» quando se tenta aceder...

- Problemas com os servidores?

- Não me parece... Antes de desaparecer, alguns deles deram a entender, de modo um tanto críptico, que havia problemas.

- Que tipo de problemas?

- Não sei, pá, a conversa era estranha... Não podemos usar o teu programa para tentar ver o que se passa?

- OK, mas temos de ir ao laboratório, a minha ligação aqui de casa é fraca. Posso lá estar dentro de quinze minutos...

- Vou lá ter com o Rob, vamos na mota dele.

- Encontramo-nos no parque de estacionamento. Até já.

Àquela hora, o trânsito é escasso, e Tom chega rapidamente ao departamento. Entra no parque, manobra para arrumar a carrinha, trava, desliga o motor e as luzes. Encosta-se no assento e liga o rádio. Sintoniza a estação da universidade, donde sai a voz rouca de Leonard Cohen:

I've seen the future, brother:
it is murder.

Tom olha em volta. O parque de estacionamento do departamento está quase deserto, apenas dois ou três carros. Tom pensa que a probabilidade de um departamento universitário estar totalmente vazio deve ser virtualmente zero. A qualquer hora de qualquer dia ou noite haverá sempre alguém a terminar aquela comunicação cuja data de entrega se aproxima velozmente, a efectuar aqueles cálculos adicionais que o orientador se lembrou de sugerir, a reescrever aquele capítulo que não há meio de sair em condições... O discorrer é interrompido pelo ruído da mota de Rob, que pára junto dele.

- Vamos lá.

O grupo, com Tom à frente, entra no edifício. Com o cartão magnético, Tom vai abrindo sucessivamente as diversas portas de acesso, até se encontrarem no enorme laboratório de informática. A maior parte das máquinas estão ligadas, e há um ruído de fundo dos ventiladores das máquinas, dos discos rígidos que giram incansavelmente, dos diversos equipamentos electrónicos de suporte. Tom dirige-se à sua mesa e liga o monitor. Activa o programa que tinha deixado em background a monitorizar a blogosfera. Quando aparece o menu inicial, Tom pede a sequência de imagens desde o dia em que foi acampar.

Aparece no monitor a imagem familiar, constelações de pontos luminosos no fundo negro. A imagem muda de 5 em 5 segundos, o que dá para perceber que os pontos estão a desaparecer. E há um ponto, quase no meio do ecrã, que vai aumentando de tamanho, a par e passo com o desaparecimento dos pontos vizinhos. O efeito visual é como um círculo negro em expansão, com um centro branco, intenso, brilhante, que aumenta de tamanho.

- Isto faz lembrar um buraco negro a absorver toda a matéria em redor. E o círculo branco é a emissão de raios-X... - murmura Rob.

Frente ao monitor, os três estão fascinados, os olhos fixos no círculo branco, percorre-os uma espécie de arrepio. Tom posiciona o cursor sobre o círculo e carrega na combinação de teclas que lhe permite aceder ao blogue em questão. Na página de abertura, «Aquele Que É» apresenta um único post: em fundo negro, uma frase em letras vermelho vivo ocupa toda a largura do monitor:

E o Blogue se fez Tudo... e habitou entre nós.

Tom sente subitamente que qualquer coisa mudou no laboratório. Ao fim de uns segundos descobre o que é: o ruído de fundo alterou-se, os computadores calaram-se, apenas se ouve o zumbido longínquo do ar condicionado. Tom vai à mesa do lado, liga o monitor desse computador, aguarda uns segundos, não aparece qualquer imagem, a seguir desloca-se de mesa em mesa a ligar monitores, mas o resultado é sempre o mesmo, as máquinas estão mortas, ao fim de uma dúzia desiste e regressa para junto dos amigos. Olham uns para os outros sem perceber o que se está a passar, e é quando se ouve um click e logo a seguir o som inconfundível de um disco rígido a arrancar, e outro a seguir, e mais outro, e cada monitor arranca da letargia em que se encontrava exibindo a mesma frase, agressiva, vermelho sobre negro. Todos os computadores reproduzem o mesmo texto, e Tom sente que algo de mau está a acontecer e sente medo porque não consegue aperceber os contornos desse mal que sente cada vez mais próximo...

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Autor:
João Ventura