Ortus digeriu as parcas informações enquanto o outro colocava a máscara e se munia da ferramenta apropriada para desenroscar os parafusos na clarabóia.
- Agora salta lá para dentro. Desce as escadas e procura um velhote meio tonto que deve andar por aí algures; é o encarregado. Diz-lhe que és o novo ajudante, ele vai ficar todo contente. Não te incomodes com o cheiro, acabas por te habituar.
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Ortus largou o corrimão de ferro e deu alguns passos no cimento vibrante. A toda a volta movimentavam-se mecanismos interligados uns nos outros, dando a sua contribuição individual para o ruído ambiente. No chão abria-se um círculo por onde se acedia a mais espirais de escadarias. Ortus resolveu prosseguir a descida na esperança de que o patamar inferior fosse menos desagradável. Mal tinha começado as explorações saltou-lhe ao caminho um homem quase idoso, escanzelado e barbudo, de sarrafo em riste, oriundo das entranhas duma máquina.
- Que é que andas aqui a fazer? - perguntou a aparição.
Ortus, mal refeito da surpresa, não se apercebeu que estava a ser questionado.
- Não ouviste? Limpo-te as orelhas com este pau. Responde minha besta: o que estás aqui a fazer?
À segunda interpelação o recém-chegado lembrou-se do que lhe tinham recomendado e informou que vinha na qualidade de ajudante.
- Agora que os filhos da puta têm isto tudo automatizado é que me mandam este traste? - admirou-se o outro. Franzindo a testa de irritação deu dois passos pouco firmes e agarrou-se à camisa de Ortus. O pupilo prestou a máxima atenção aos primeiros ensinamentos do novo tutor.
- Fiz-me velho a batalhar aqui em baixo. Sem respirar ar puro, sem ver a luz do sol. Sei lá há quantos anos que peço um ajudante e nada. E é agora, quando esta geringonça trabalha toda sozinha, que tenho de fazer de ama-seca? Pois quero que se foda! Eu por mim vou ficar muito quietinho à espera da reforma. E tu pira-te daqui, desampara-me a loja!
II
As máquinas entraram em letargia, uma após outra, até aos confins do poço. Ortus ajeitou os papelões do catre e preparou-se para adormecer, embalado pelo acumular dos silêncios. Estava no seu pouso predilecto, sob a protecção da Madre, a grande tulha receptora de resíduos ao centro do patamar superior. Como de costume experimentou um sono inquieto, com os sonhos entrelaçados no ribombar longínquo dos tubos de descarga.
Os ecos dos despejos acabaram por se fundir num troar contínuo, anunciando mais um turno de inexorável azáfama. Os resíduos acumulados venceram o nível máximo, obrigando a comporta da Madre a abrir num tormentoso ranger metálico que despertou as entranhas do monstro. A vida começou a fluir nas telas transportadoras.