Conceito de Luís Filipe Silva

Ficção Científica, Fantástico, Surrealismo, Realismo Mágico, Terror, Horror, Ciberpunk e História Alternativa - e por vezes, se fôr de excelente qualidade, ainda fechamos os olhos a um certo Mainstream...

[Conheça o Manifesto]

Noveleta

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~ Reconversão de Excedentes ~

Ortus digeriu as parcas informações enquanto o outro colocava a máscara e se munia da ferramenta apropriada para desenroscar os parafusos na clarabóia.

- Agora salta lá para dentro. Desce as escadas e procura um velhote meio tonto que deve andar por aí algures; é o encarregado. Diz-lhe que és o novo ajudante, ele vai ficar todo contente. Não te incomodes com o cheiro, acabas por te habituar.

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Ortus largou o corrimão de ferro e deu alguns passos no cimento vibrante. A toda a volta movimentavam-se mecanismos interligados uns nos outros, dando a sua contribuição individual para o ruído ambiente. No chão abria-se um círculo por onde se acedia a mais espirais de escadarias. Ortus resolveu prosseguir a descida na esperança de que o patamar inferior fosse menos desagradável. Mal tinha começado as explorações saltou-lhe ao caminho um homem quase idoso, escanzelado e barbudo, de sarrafo em riste, oriundo das entranhas duma máquina.

- Que é que andas aqui a fazer? - perguntou a aparição.

Ortus, mal refeito da surpresa, não se apercebeu que estava a ser questionado.

- Não ouviste? Limpo-te as orelhas com este pau. Responde minha besta: o que estás aqui a fazer?

À segunda interpelação o recém-chegado lembrou-se do que lhe tinham recomendado e informou que vinha na qualidade de ajudante.

- Agora que os filhos da puta têm isto tudo automatizado é que me mandam este traste? - admirou-se o outro. Franzindo a testa de irritação deu dois passos pouco firmes e agarrou-se à camisa de Ortus. O pupilo prestou a máxima atenção aos primeiros ensinamentos do novo tutor.

- Fiz-me velho a batalhar aqui em baixo. Sem respirar ar puro, sem ver a luz do sol. Sei lá há quantos anos que peço um ajudante e nada. E é agora, quando esta geringonça trabalha toda sozinha, que tenho de fazer de ama-seca? Pois quero que se foda! Eu por mim vou ficar muito quietinho à espera da reforma. E tu pira-te daqui, desampara-me a loja!

 

II

As máquinas entraram em letargia, uma após outra, até aos confins do poço. Ortus ajeitou os papelões do catre e preparou-se para adormecer, embalado pelo acumular dos silêncios. Estava no seu pouso predilecto, sob a protecção da Madre, a grande tulha receptora de resíduos ao centro do patamar superior. Como de costume experimentou um sono inquieto, com os sonhos entrelaçados no ribombar longínquo dos tubos de descarga.

Os ecos dos despejos acabaram por se fundir num troar contínuo, anunciando mais um turno de inexorável azáfama. Os resíduos acumulados venceram o nível máximo, obrigando a comporta da Madre a abrir num tormentoso ranger metálico que despertou as entranhas do monstro. A vida começou a fluir nas telas transportadoras.

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O aprendiz deu um salto e assentou os pés no exacto instante em que os rolos começaram a guinchar, levando alimento ao crivo n.º 1. Desejoso de manter elevados índices de pontualidade foi à procura do mestre para a lição do dia. Desceu um piso pela escada mais próxima e seguiu as instruções dos esquemas pregados às paredes até acocorar frente à unidade de triagem dos vidros calibre 2. Tentou descortinar para lá dos padrões de luzes bombardeados sobre a esteira e do bailado das pinças a recolher criteriosamente os materiais capazes de devolver os reflexos. Era o local mais provável para encontrar o velho em qualquer altura do turno. Contudo não convinha aproximar-se em demasia: o beberrão protegia com ganas a exclusividade da sua fonte de abastecimento.

Não teve de aguardar muito; o encarregado mantinha sempre presença de espírito bastante para se escapulir do contentor antes deste voltear; caso contrário acompanharia os detritos no caminho para o triturador. Ortus acenou quando o viu assomar e recebeu a primeira instrução.

- Já acordaste, traste? Como sempre vens de mãos a abanar. O que é que estás à espera para ir arranjar comida?

Ortus manteve a posição agachada na expectativa de orientações mais precisas. A atitude passiva foi erroneamente interpretada como insubordinação. O mau humor do graduado acentuou-se, levando-o a cambalear em direcção ao pupilo com evidentes más intenções. O visado não tardou a escapulir-se em passo acelerado. O chorrilho de palavrões perdeu-se no ruído de fundo e as promessas de espancamento imediato não se puderam concretizar.

Numa olhadela por cima do ombro Ortus confirmou que a besta abdicava da perseguição. Regressava à tulha do vidro para prosseguir a esforçada actividade de escorropichar as pingas de todas as garrafas incólumes para um cantil. Só mostraria uns laivos de sociabilidade lá para o fim do turno, caso a mistura obtida fosse suficientemente alcoólica para o amansar.

A fim de cumprir as directrizes Ortus deslocou-se dois níveis abaixo, através da combinação mais eficaz de passadiços, rampas e lanços de escadas metálicas. De caminho aliviou as entranhas, acrescentando dejectos próprios aos detritos tratados nas tinas, e parou junto às picagens de água límpida para emborcar uns bons tragos.

Não podia demorar-se se queria obter um repasto requintado. A frente dos resíduos estava a entrar nas últimas estações do calibre 3. Uma boa percentagem dos restos não aproveitados nesse estádio era matéria orgânica em bruto que não tardaria a chegar ao 4º nível. O percurso entre a estação de recepção desses materiais e as derivações para trituração e homogeneização era diminuto. Caso Ortus se deixasse ultrapassar pela evolução dos resíduos por certo desperdiçaria alguns dos melhores acepipes.

Já bastante conhecedor do intrincado ritual dos artefactos, Ortus decidiu arriscar atalhando caminho por cima das esteiras. Saltou como um gato enquanto nas suas costas os sistemas de controlo adivinhavam a aproximação dos resíduos e davam ordem para acender os olhos eléctricos. Duas ou três vezes escapou por pouco à frenética caçada das pinças articuladas. Mas alcançou o ponto desejado instantes antes das cortinas plásticas apartarem, deixando antever as primícias do turno.

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Autor:
Telmo Marçal