Conceito de Luís Filipe Silva

Ficção Científica, Fantástico, Surrealismo, Realismo Mágico, Terror, Horror, Ciberpunk e História Alternativa - e por vezes, se fôr de excelente qualidade, ainda fechamos os olhos a um certo Mainstream...

[Conheça o Manifesto]

Conto

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~ A Casa de um Homem ~

– Não sei – respondeu Shepard, despejando mais informação do que eu estava interessado em ouvir. – Mas que não cede terreno, isso é verdade.

E ao longo de hectares sem fim a terra mostrava os novos habitantes. Manadas de gigantescas lesmas terrestres. Paisagens de cristais de sal habitados por insectos multiformes cujos formigueiros atingiam centenas de metros de altura. Uma selva densa de ramagens e verde mas que era na prática um único organismo com o tamanho de quilómetros. Mastigadores de terra que construiam catedrais de silício onde depositavam ovos e que eram guarida de centenas de espécies menores. E esta ecologia era tão resistente que não soçobrava ante pesticidas, fogo ou mesmo bombas atómicas – acabava por se regenerar, com outras formas, no espaço de anos. Sobrevivia em condições que nem a própria ecologia terrestre seria capaz de enfrentar.

- E não se espalham pelo ar? Por meio de esporos?

- Não há outras zonas. Mas se isso acontece, não temos forma de controlar. Se calhar, estamos já todos infectados, e a aguardar um sinal de ataque – parecia realmente velho. – Como podes ver, não entendo onde é que pode estar a tua casa.

Assenti. Não fazia sentido. Até receber uma mensagem no telemóvel.

Wer nicht vorwärts geht,
der kommt zurücke.

O tempo pareceu deter-se. Senti um choque percorrer-me por todo o corpo, como se tivesse sido atingido fisicamente.

Tinha estado longe, tão longe da verdade.

Shepard espreitou por cima do ombro.

- Göethe? – perguntou. Eu acenei que sim. Ele soltou uma gargalhada.

- Aquele filho da mãe, não havia nada que o derrubasse. Quem diria...

Mas havia, pensei. Eu tinha visto. Tinha-o visto tombar em chamas sobre Berna. Pensei então que nunca mais me teria de preocupar. Até hoje.

O avião estava a dar meia-volta. Olhei para Shepard. A expressão dele confirmou o que eu pensava. Era um engodo, a casa estava bem longe deste local.

Ponderava os meus próprios passos. Conseguiria percorrer o percurso de transmissão da mensagem, descobrir a sua origem. Possivelmente tinha sido enviada por esse motivo. Ele cansara-se de esperar, e agora aguardava-se em seu próprio território. O meu fracasso concedera-lhe vantagem. E aparentemente ele tinha ainda outra surpresa na manga.

Shepard começou a reagir à situação. Algo que ardia dentro dele, com muita raiva e desde há muito tempo.

- Só nos trouxe dissabores. Foi por isso que nunca quis experimentar – começou a dizer. Mostrei-me indiferente, a ver se ele se calava. – Anos e anos a ver-me ao espelho. Como é possível viver assim? Rugas e artrite e a vista a falhar. Tanto esforço para quê? Tanto que nos preocupamos nesta vida, e apenas temos como promessa o facto de que acaba... – olhava-me enquanto falava. Suspirava profundamente. – Mas a alternativa... Para mim era de mais. Para ti não deve ter sido. Eu sei quem tu és. Eu sei o que está naquela casa. E porque a queres tanto.

- O desejo de um homem esconde-se naquilo que odeia – respondi-lhe.

- Estás muito enganado. Nunca desejei aquilo. Pensas que quero ser um monstro como tu? Já viste o que o Olho vos chama? Imagina se soubesse que é verdade.

Voámos em silêncio depois disso. A terra ficou mais próxima. À distância conseguia ver pilares que rebrilhavam no sol, cobertas de matéria suja e peganhenta, por onde passeavam formas aracnóides maiores que este avião. Sabendo perfeitamente como era impossível esse facto e terem a mesma constituição orgânica dos aracnídeos naturais, enchi-me de curiosidade em perceber como respiravam, como se moviam, que estrutura orgânica seria a delas.

- Se esta terra está como está, é por nossa culpa – remoía Shepard sozinho. Nunca o vira tão abatido. – De gente como nós. – Olhou para mim, novamente. – Estou a morrer, sabes? Enquanto tu ficas aí eterno e... doença incurável... depois de tudo, e o que deixo é... é... – O queixo apontou para fora. Estava perfeitamente transtornado. – E sem poder fazer nada para...

O pensamento atingiu-o ao mesmo tempo do que a mim. Lançou a mão para o comando, e já eu estava a segurar-lhe no pulso, a torcê-lo, a lançá-lo para o chão. Não fosse o tratamento e a idade dele, e não teria conseguido demovê-lo. Ainda assim, ele pontapeou-me e lançou-me contra a janela do aparelho, partindo o assento e segurando-me com este, à distância. Depois tentou parar os motores novamente.

Não perdi tempo, retirei um alfinete preso à camisa e piquei-me abaixo do polegar da mão direita, onde o que parecia uma bolsa de pele queimada armazenava uma toxina potente. Deixei-o encher e enterrei-o na veia do braço com que tentava segurar-me. Agia rapidamente quando transportado pelo sangue, e logo tombava, a espumar da boca, os pulmões cheios de líquido, os olhos esbugalhados da falta de ar. Não demorou muito.

- A cada um o seu destino – disse eu baixinho. Conduzi o aparelho de regresso ao aeroporto, aterrei e depois ordenei-lhe que voltasse para a zona infectada e a sobrevoasse às voltas até acabar o combustível. Tinha sido em tempos amigo e herói, mas não há amizade que dure para sempre.

E foi assim que me encontro aqui, no hall de entrada da fortaleza. Certo de que assistirei ao fim de outra amizade.

- Samuel – aborda-me com os braços abertos. Há muito que não me tratam por este nome.

- Hans – não chegamos a tocar-nos, é tudo fita. Em cada um de nós há toxinas na pele suficientes para paralisar o outro.

- Entra, vem conhecer o meu lar – enverga o uniforme de Übercommander, embora na versão de Hollywood e não a legítima. Cabos e outros militares acólitos apressam-se a abrir-nos as portas, a passar-lhe uma bebida para as mãos e um charuto. Mais teatralidades. A alcova onde nos refugiamos está cheia de divãs reclináveis vermelhos, uma pequena lareira, uma garrafeira com vinhos importados e uma janela que dá para o oceano. Sentada num dos divãs está uma miuda pequena, com caracóis, e de pele muito branca. Mas os olhos fortemente azuis estão cheios de rugas e olheiras.

- A minha filha – apresenta-a. – Querida, este é um velho amigo do teu pai.

- Olá, sou a Vlana – diz, numa voz doce e inocente.

Prescruto a miuda dos pés à cabeça. É exactamente o que parece.

- Um depósito regenerador ambulante? Que passa despercebido? Que uma ideia manhosa... – comento em voz alta - embora não deva ser muito eficiente. A reprodução num corpo vivo é desgastada pela manutenção do mesmo. Nunca consegui manter a solução pura muito tempo. Que idade tens, pequenina?

A miuda olha para Hans. Este assente com a cabeça.

- Quarenta anos – diz ela, numa voz muito doce. Continua infantil, ainda pré-adolescente naquela idade física; o crescimento do raciocínio e do corpo está controlado ao pormenor, e decerto não faz ideia da razão. Nem de como foi gerada. Deve ter-lhe sido dito que tem uma doença incurável.

Hans segue a conversa, divertido. Não quero passar mais tempo do que o necessário na companhia dele.

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~ Página  5 de  5 ~

- Vamos que interessa, Hans. Quero a minha casa.

- E tu sabes o que eu quero. Dá-me isso e podes ficar com a tua casa.

- Não negoceio com gente da tua laia. Também sabes disso.

- Como se tu fosses um anjo... Embora tenhas nome de anjo, não é, Samuel? O dissimulado? És como a democracia de antigamente. Tudo aparência, e por dentro, hipocrisia. Vamos todos fingir que nos tolerarmos uns aos outros. Ao menos aqui as coisas são honestas e sinceras.

- Ah, sim, é uma terra de oportunidades.

- A verdadeira democracia não é aquela em que temos de gostar uns dos outros; é a que nos dá a liberdade de odiar e destruir quem odiamos.

- Nisso estamos de acordo – digo-lhe, dando dois passos em frente, ficando mais próximo da miúda. – Porque odeio-te e apetece-me destruir-te.

- Bem sei, insolente – fala agora em germânico; o tom que usa para se dirigir aos soldados. – Já tentaste uma vez, e falhaste. Tinha descoberto o teu precioso segredo, aquele que não querias divulgar. Agora a situação é outra.

- Ora essa, Hans, sabias bem que eu não aceitava chantagens. Tal como não aceito agora.

- Mas desta vez não tens alternativa... não estou dentro de um monomotor que possas novamente sabotar... – fez um aceno aos homens. Eu reajo. Estou cheio de adrenalina e estimulantes. Não me conseguem parar.

Num movimento mais rápido que o instinto, agarro o pescocinho da miuda com o braço esquerdo, aquele que não é meu, e aperto. Os dedos esmagam a pele, traqueia, caróticas. A miúda estica a língua para fora. Aperto mais, com um torção ligeiro, até que solta um estalido. O corpo estremece uma só vez e fica quieto.

Só então o primeiro guarda se acerca de mim. Viro o mesmo braço com toda a força, a mão em riste. Atinge-lhe a maçã de Adão, empurrando-a para dentro. É impulsionado para trás e cai no chão, agarrado ao pescoço.

Os outros guardas foram mais inteligentes, e puxam das armas. Estico o braço na direcção de Hans. Até parece que o estou a saudar.

- É uma prótese biónica e está cheia de C4. O suficiente para arrasar com esta merda toda. Diz-lhes que se afastem.

Hans parece um peixe fora de água, olhando para o meu braço e para o corpo da miúda. Começo a pensar que ele não tem outro regenerador de reserva. E a solução dentro deste está a morrer.

Avanço na direcção dele, sempre a berrar, apenas focado nele.

- Liberta a minha casa e deixa-me sair. Depressa, antes que seja tarde de mais para ti.

Ele demora a reagir – está a tentar congeminar um plano. Não o deixo. Agarro-o pelas condecorações falsas, que se espalham pelo chão, passo o braço à volta do pescoço dele. Se atirarem contra mim, irão atingi-lo. Se me acertarem no braço, adeus a tudo isto.

Ele percebe e pede aos guardas que ponham as armas no chão. Não quer arriscar. Vai tentar safar-se por negociação.

Eu é que não estou para isso. Puxo-o de encontro à janela.

- Espero que saibas nadar.

- Que fazes? Isto é muito alto, morremos os dois.

- Até parece que queres viver para sempre!...

- Pára. Pronto, vê – tira o telemóvel do bolso, envia um código. – Já libertei a tua casa.

- Oxalá digas a verdade. Senão, vais morrer em vão – e com a força toda do braço, faço-o rodopiar contra a janela. Embate contra ela vertiginosamente, desfazendo-a em milhares de pedaços, tombando pela falésia. Os guardas demoram a recuperar as armas e então já estou de pé, já soltei o antebraço, já me lancei pela abertura. A explosão lá no alto é tão forte que ainda me queima os cabelos da nuca. Passam-se segudos até embater na água, e é quase como se embatesse contra pedra.

Fico a boiar na corrente, semi-consciente. Mal noto o helicóptero silencioso, mas surge na hora e forma combinadas. Nada como confiar num estranho e no dinheiro que lhe prometemos – por vezes sobrevalorizamos a amizade...

--oOo--

Faço a recuperação em casa. Estava mesmo a precisar de um banho. Neste caso, é um banho que dura oitenta horas, e quando acordo, estou uma outra pessoa. Ou melhor, volto à pessoa que fui. Que continuo a ser. E penso, desta vez, como é irónico termos chegado, eu e Hans, quase à mesma solução – embora Hans continuasse preso a uma necessidade de poder absoluto, e não conseguisse ver mais além; ele que era o homem das citações. Man sieht nur das, was man weiß. Mas afinal sabia pouco.

Mas também eu estava cego, quando o cerco começou. Tudo o que sabia era que havia uma mulher e havia um feto e que havia uma morte certa à espera de todos nós. As semanas que passámos sem esperança, encarando as gentes à nossa volta lutando por carne podre e poças de lama, chegando a ponderar na morte conjunta e libertadora, até ter percebido a resposta. A resposta que estava ali, tão evidente e tão à mão.

Não precisava eu apenas de um útero funcional? Não era o período de gestação do feto inclusive benéfica para o desenvolvimento da minha solução orgânica? Não me daria os instrumentos moleculares que me restituiriam a saúde, a juventude, o futuro?

Iria sacrificar-me em prol de alguém que conhecia há meros anos apenas, e de um ser em nascimento que ainda nem era gente, apenas por uma questão de consciência? Quando era certa a extinção de nós os três? De que me serviria a consciência quando estivesse morto?

Eis o que descobri nesse momento: que a família nutre o homem. E que o homem que cuida da sua família, garante a sua própria sobrevivência e transporta em si, no seu corpo, o resultado desse amor. Mesmo que involuntário. Mesmo que involva sacrifícios.

E não se arrepende das suas decisões.

Pois a família é o pilar de um homem. E a casa deste, o seu reino.

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Autor:
Luís Filipe Silva