Conceito de Luís Filipe Silva

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Pain
O Inferno de Dan (Simmons)

Luís Filipe Silva -  Crítica |  13 Mai 2003

IN DEATH'S DREAM KINGDOM

Jeremy foge. Jeremy é um homem oco. Não existe nada dentro de si. Não existe espírito, não existe vontade, não existe pensamento. É a negação de tudo, como uma mancha negra numa tela vazia. Não: como um buraco na tela vazia. Uma ruptura no tecido do espaço para o qual converge toda a dor do universo, por que ele tornou-se no oceano do sofrimento humano. A singularidade onde se concentra a perda imensa daqueles que nós amamos.

Jeremy encontra refúgio num lugarejo piscatório no meio de nenhures. Na véspera, incendiara a casa onde morara com Gail. Durante minutos, fantasiara com a ideia de se entregar às chamas e reencontrar o corpo da esposa. Mas algo o impede, e descobre-se mais tarde a conduzir furiosamente numa estrada sem destino, absorto. Transporta na bagagem uma Smith & Wesson de calibre .38. A bala já tem o seu nome.

E, contudo, na manhã seguinte, a arma encontra caminho para o fundo do lago, ao invés de ser a bala que se une a Jeremy. Algo o impediu. Ao ver as ondulações apagarem os vestígios da sua intenção, apercebe-se da presença de outra pessoa: Vanni Fucci, o protótipo do gangster, que acabara de se livrar de uma amizade indesejável. Vanni descobre o estranho homem sentado na beira do lago, e de imediato entra em pânico. Ameaçando-o, fá-lo entrar no carro.

Assim começa a estranha peregrinação do homem oco.

 

A história desenrola-se em duas correntes paralelas. De um lado, temos Jeremy após a morte de Gail, percorrendo o território de uma América que gradualmente se torna no território do espírito. Acontecem-lhe coisas improváveis: o rapto de Fucci condu-lo à Disneylândia, daí evade-se ao gangster e parte para Denver com um conjunto de frustrados sociais como companheiros de autocarro; em Denver, é assaltado e torna-se num mendigo, embebedando-se e percorrendo as ruas de uma cidade estranha e inóspita. Um incidente torna-o num fugitivo da polícia, e parte para a tal povoação sem nome, onde mora a psicopata. Consegue iludir a psicopata (numa das cenas mais fantásticas de todo o livro), fugindo para Las Vegas, onde reencontra Vanni Fucci. Este não pretende perder a oportunidade de acabar com ele, mas antes deseja saber até que ponto o seu aparecimento se trata de uma coincidência ou do golpe dum grupo rival. É metido num avião com o objectivo de ser interrogado e abatido, mas de novo Jeremy consegue iludir os raptores e sobrevive à queda do avião. Acorda num hospital com a polícia aos pés da cama.

Coisas improváveis? Após a descrição, poderíamos julgar que esta se tratava da crítica a um filme da série B, onde as peripécias eram inseridas a martelo no enredo. Contudo, falta aqui o elemento emoção. Nada do que acontece a Jeremy é divertido; não nos preocupamos minimamente se ele escapará, esse não é o fulcro da história. Todas as situações são angustiantes, como se Simmons procurasse mostrar que não existe nada de emocionante na aventura. De facto, a reacção que nos provoca é de fúria; queremos berrar para o protagonista: «Reage, porra! REAGE!»

Mas Jeremy não reage. Não reage nunca, absolutamente nunca. Deixa que as peripécias lhe aconteçam, espera morrer, e apenas uma voz que surge das profundezas escuras do seu espírito o impede. A voz de Gail.

É exactamente esta ausência de vontade que impressiona e incomoda no livro. Nela contêm-se toda a essência da dor. Começamos a perceber a importância da morte de Gail quando, na segunda corrente da narrativa, em secções com o título de «Eyes», narradas por uma entidade omnisciente (e que contudo só conhece a história por que lê a mente de Jeremy - o grande mistério do livro), descobrimos o evoluír da relação entre eles, e percebemos a imensidão do intelecto do professor matemático. A sua paixão por Gail só era igualada pela sua paixão pela ciência dos números e das abstracções. Mas, tendo perdido Gail, perde-se a si próprio.

Até encontrar como companheiro de quarto de hospital Robby.

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(c) Autor do Texto, (c) Luís Filipe Silva, 2003/2007. Não é permitida a reprodução não autorizada dos conteúdos.

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Autor:
Luís Filipe Silva