Conceito de Luís Filipe Silva

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O Fim da FC?

Jorge Candeias -  Crítica |  01 Mai 2000

Em média umas duas vezes por mês ouço ou leio alguém falar de um tal de «fim da FC». Quem se refere a tal fim costuma armar um ar apocalíptico (se é fã da coisa) ou resignado (se nem por isso) e discorre longamente sobre os leitores que não lêem, os editores que não editam, os escritores que não escrevem, o mundo que é tão sofisticado que já ninguém se espanta com coisa nenhuma e nenhum puto já olha maravilhado para nada que não tenha incorporados efeitos especiais de megamilhões de dólares.

Geralmente a conversa acaba em acabrunhamento colectivo: Pois é, a FC não tem safa, tá podre, acabou-se ou vai acabar não tarda. É isso, vamos todos desistir, arranjar um emprego e largar os RPGs futuristas, os livros e as bandas desenhadas, os filmes e as séries de TV. Assim como assim ninguém nos liga, e quando passamos na rua todos nos olham de lado como que a dizer «olha o maluquinho que ainda acredita em histórias de fadas». Mesmo que as fadas agora sejam nanotecnológicas, ou biotecnológicas, ou cibertecnológicas e surfem na net com a varinha de condão a fazer de prancha.

É que, de facto, a FC tem os dias contados, dizem, se ainda não acabou, vai acabar não tarda, dizem, e ficaremos órfãos dela para toda a eternidade, dizem.

E explicam tudo isso com o mundo em que vivemos. Mas que tem o mundo em que vivemos a ver com a existência, persistência ou desistência da FC? Explicam que a FC estava calmamente sentada no seu cantinho da sala, metida com os seus assuntos, quando foi atropelada pela multidão ululante do mundo real em que vivemos, com a sua internet, a sua realidade virtual, a sua engenharia genética e os seus clones. Daí, depois de muito pisoteio, só conseguiu sair assim uma coisa franzina, cheia de nódoas negras, e de ar esfarrapado. Assim como que um parente nosso mais pobre ainda do que já era antes. Uma espécie de cadáver adiado e ambulante.

E acabrunham-se mais um pouco, os que até são fãs da coisa. Os outros, os que nem por isso, armam um ar blasé, auto-intitulam-se de pós-modernos e explicam com abundância de argumentos que a FC não existe porque nunca existiu, que o que existe é a literatura (ou o cinema, ou o que seja) e que a divisão em géneros é artificial, arbitrária e perniciosa para o bom entendimento da coisa cultural. Destes, raros são os que alguma vez pegaram num livro de FC e os que o fizeram escolheram, propositadamente ou não, um dos piores. Talvez uma tradução do Eduardo Saló de um livreco de 7ª categoria, publicado nos States há 50 e tal anos e apresentado como novidade pela Europa-América ou pela Argonauta. Ou coisa assim.

OK, meus senhores, tudo bem. Vocês são todos muito sabedores da coisa literária em geral e da coisa FC em particular. Portanto, deverão ter toda a razão. Decididamente a FC ou já morreu ou está quase ou nunca chegou a existir. Perfeitamente.

Eu só pergunto a mim mesmo é que foi aquela gente toda fazer ao cinema? Foram enganados? Ou foram à procura de alguma coisa? É que os dois filmes mais vistos, mais falados, mais esperados do ano de 1999 foram filmes de FC. Milhões de pessoas foram divertir-se com a space-opera assumidíssima da Guerra das Estrelas e com a desconstrução da realidade da Matrix. Mais: estes dois filmes, embora ambos FC da mais inconfundível, são tão diferentes um do outro como o dia da noite. E não se fizeram só esses dois filmes, muitos outros houve.

Sejamos claros: a única forma de deixar alguma coisa morrer na sociedade humana é quando essa coisa deixa de merecer ou despertar interesse, quer por ser ultrapassada por algo melhor, quer por simplesmente passar de moda. Exemplos abundam, das cantigas de amigo aos corpetes, dos biplanos ao ZX Spectrum. Por isso, se a FC está morta ou em vias de tornar-se cadáver, que foi toda aquela gente fazer ao cinema?!

Eu cá sou biólogo de formação. E uma das coisas que nos ensinam nos cursos de biologia é que se as populações são numerosas e diversificadas, então é porque estão de boa saúde. Para ser totalmente claro, são tudo quanto há de mais distante do cadáver.

Transpondo o bio-raciocínio (coisa que é discutível mas que a mim me parece que só se lucraria se se fizesse mais vezes), temos uma população invejável de pessoas que procuram um determinado tipo de estímulo e o encontram na FC. Ou pelo menos num determinado tipo de FC. Essa população é, também, altamente diversificada. Não fiz nenhum estudo sociológico, mas fui ao cinema duas vezes ver o Matrix e uma ver a Ameaça Fantasma e vi de tudo na plateia: desde o puto palerma que o que quer é ver explosões até gente de ar intelectual que protestava à saída contra a falta de argumento do último Star Wars. Desde gente que nunca sequer terá pensado em ler um livro (com a notória excepção dos Tio Patinhas, X-Men e Homem Aranha) até viciados em papel de olhos gastos de tanto ler.

Ou seja, transpondo o bio-raciocínio, a população dos que gostam de FC está viva e recomenda-se.

E se a população dos que gostam de FC está em bom estado, que dizer da própria FC? Morta já vimos que não está. Para que uma coisa esteja morta é preciso que já não respire. E a FC respira. E, enquanto se forem fazendo filmes como o Matrix, respira fundo. Poderá estar moribunda?

Há, entre os que fazem ou intelectualizam a FC, a ideia de são eles os «donos» dela. Isto é, de que ela só existe na medida em que eles próprios existem. A mim, isto parece um erro crasso. Penso que, pelo contrário, os que fazem a FC só existem na medida em que a própria FC existe. Porque se a não fizessem estes que a fazem no nosso Universo, outros seriam os autores, actores, pensadores e realizadores de FC. E quem é então o dono da FC? O público, claro! Os que procuram nela qualquer coisa que só nela encontram. Os que gostam de FC

Já vimos que a população dos que gostam de FC está em bom estado. Já vimos que são estes os verdadeiros donos da FC. Qual é a conclusão lógica? Elementar! Enquanto existir gente em bom número a gostar de FC, a própria FC sobreviverá. Enquanto essa gente for em grande número e bem diversa, a própria FC estará longe de ser um cadáver adiado.

Outra questão é que tipo de FC é mais procurado e porquê esse tipo e não tanto os restantes. Mas isso é coisa para outro artigo. Se Deus-Nosso-Senhor e o Luís Filipe Silva quiserem, bem entendido...

(c) Autor do Texto, (c) Luís Filipe Silva, 2003/2007. Não é permitida a reprodução não autorizada dos conteúdos.

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Autor:
Jorge Candeias

Textos:
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«Is it you, is it me? Did I watch too much TV?»