Conceito de Luís Filipe Silva

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Répteis e Homens

João Seixas -  Crítica |  12 Jul 2005

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Título: SEEDS OF LIFE
Autor: John Taine (Eric Temple Bell)
Editora: Panther
Ano de Publicação: (1955, 1959, originalmente 1931)
Temas Recorrentes: Evolução/Devolução, Super-Homem, Radiação, Dinossauros

 


Há sempre algo de positivo a dizer sobre um livro que começa num laboratório que faz lembrar uma casa assombrada (em ambiente, se não em estrutura) e que ao fim de pouco mais de quarenta páginas já nos ofereceu o massacre de uma legião de gigantescas aranhas mutantes (e nada menos que viúvas-negras). Antecipando o imaginário de milhões de leitores de banda desenhada dos anos sessenta e seguintes, Taine mergulha uma viúva negra num campo radioactivo, e o resultado é o mesmo: um super-homem; que ao invés de saltar de parede em parede através de disparadores de teia sintética (ou orgânica), resolve levar a cabo a salvação/redenção da humanidade por meios que rasgariam um sorriso de encantamento no rosto aparvalhado de H.G. Wells: a substituição do homem pelos répteis.


«To be stupid is to be kind, and to be kind is to be stupid. If you wish individuals to persist when they should have perished, if you wish the race to perish when it might persist, be kind, scorn intelligence, and choose an evolution which will send you back to the reptiles» (p.146). Este tipo de discurso não é dos mais aptos a fazer-nos cair no goto de quem quer que seja hoje em dia, sobretudo quando logo de seguida nos dizem que a escolha já foi tomada por nós, mas tem o sabor delicioso do retro-futurismo, dessa topologia fantástica de cientistas loucos e conceitos grandiloquentes. Despojados da utensilagem crítica que nos permitiria degustar esta novela com os condimentos do seu contexto cultural, conseguimos ainda hoje arrepanhar os lábios num sorriso de inocente gáudio perante as maquinações de De Soto, Crane, Brown e da galinha Bertha. Sobretudo dos descendentes desta última.

E não são poucos os momentos em que o estilo cadenciado e humorístico de Taine nos dá oportunidade para exercitar os músculos faciais; o debate perante uma convenção da Sociedade de Biologia sobre a autenticidade do cadáver de um dinossauro bebé conservado em éter, que é resolvido ao fim de poucas páginas pela exibição de um outro vivo e cheio de apetite, é momento que merece um espaço carinhosamente reservado na nossa memória. Como o são as discussões entre De Soto e Crane, os dois homens rodando em torno de um eixo que os une e separa (o vasto intelecto do primeiro, a inteligência científica do segundo), como dois garotos que entretidos numa competição vão anunciando um ao outro as suas jogadas, num fair-play que tem tanto de rivalidade como de elevação.

Não se pense, porém, que falta ambição a esta novela: os seus temas têm tanto de Wells como de Steinbeck e John Erskine; da cupidez cega que mais depressa entrega o mundo aos répteis do que o próprio plano equalizador do vilão/anti-herói; e a ascensão e queda do bêbado Bork que as radiações transmutam no super-homem De Soto, tem tanto de Prometeus como antecipam o mais meloso (mas não menos efectivo) Flowers For Algernon (1959) de Daniel Keyes.

O leitor actual terá certamente fartos motivos para apontar o dedo a esta obra. Os personagens são caricaturais (e no entanto, que delícia a forma como Taine nos causa uma primeira péssima impressão de Crane e depois o converte no herói da narrativa), o papel feminino é residual e meramente reprodutor (no sentido estrito, as duas fêmeas que surgem no livro dão à luz e morrem, sejam elas a galinha Bertha, ou a deslumbrante Alice Temp; mas o dinossauro de que acima falamos também é fêmea, haverá aqui uma leitura feminista?); a ciência apresentada é pouco credível e exagerada (mas que bem Taine, que enquanto Eric Temple Bell é matemático, nos consegue imergir na arena do debate científico da Sociedade de Biologia, com as suas turras e mesquinhezes, mas onde a verdade acaba por vir ao de cima), e a radiação é a fonte de todos os males (a descoberta final de De Soto, a completa transmutação da matéria, é afinal a fonte da energia nuclear, tema aflorado e recusado; e com isto, o leitor moderno estará ironicamente de acordo).

O laboratório científico é descrito como um local sinistro, à boa tradição gótica, onde uma viúva negra pode surgir inesperadamente, onde estranhas máquinas diabólicas trabalham noite e dia comandadas por Faustos modernos que manipulam os elementos como Prometeu manipulando o fogo. Taine descreve os acumuladores e geradores como sendo uma fiada de demónios, da mesma forma que Wilson Tucker no seu The Time Masters (1953) descrevia a era atómica como o Inferno. A relação amor-ódio face à ciência que tão bem serve para caracterizar os anos cinquenta do século passado, os anos desses medos racionais de que nos falava Mark Jancovich, é uma pedra de toque da ficção-científica moderna. Por muitos erros e falhas que possa ter, este livro de Taine foge à final demonização da ciência (afinal, são os cientistas Crane, Wilkes e Brown que põem termo ao esquema de De Soto) e aponta o dedo certeiro ao uso que da ciência é feito pelas forças económicas.

Em última instância, este Seeds of Life, insere-se num dos temas recorrentes de John Taine, visitado em obras como The Greatest Adventure (1929), The Iron Star (1930), The Crystal Horde (1952) e The Forbidden Garden (1947), lidando com a promessa/consequências de um processo evolutivo acelerado e fora de controlo, como aquele que tanto nos poderia dar Miguel DeSoto (super-homem mutante), ou devolver a terra aos répteis, recriando o reinado majestático dos grandes sáurios cujo ocaso Taine nos mostrou também no seu Before the Dawn (1934).

Seeds of Life não será certamente um clássico da Ficção Científica, mas consegue prender nas suas páginas a textura de uma época que passou e já não regressa, uma era de optimismo tecnológico tocado pelo receio da superação do homem pelas suas próprias descobertas; textura que Taine nos dá nas descrições quase-góticas do seu laboratório e das misteriosas experiências de De Soto e do Dr. Brown, do dinossauro conservado em formol, da viúva-negra esmagada pelo punho indiferente do progresso. E é se calhar a esse nível, que este livro, como muitos outros que escorregaram lentamente para a superfície estratificada da história da FC merece ser lido: como uma dobra temporal que nos leva a uma época que apenas experimentamos em segunda mão. A época em que o futuro começou.

(c) Autor do Texto, (c) Luís Filipe Silva, 2003/2007. Não é permitida a reprodução não autorizada dos conteúdos.

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Autor:
João Seixas

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