Conceito de Luís Filipe Silva

Ficção Científica, Fantástico, Surrealismo, Realismo Mágico, Terror, Horror, Ciberpunk e História Alternativa - e por vezes, se fôr de excelente qualidade, ainda fechamos os olhos a um certo Mainstream...

[Conheça o Manifesto]


O Assento de Pregos Não Pode Ser Evitado
Histórias da História de um Tríptico

Luís Filipe Silva -  Novela |  05 Set 2013

Sandra indicou sucintamente como proceder na escotilha de descompressão, e avançou em primeiro lugar. Qualquer excursão não planeada requeria autorização central –para libertar as escotilhas –, pelo que intercedeu junto de Lydia que lhe providenciasse a abertura. Esta mostrou-se perplexa com o destino e o propósito mas não fez mais perguntas à chefe. O ar foi sugado pelos poderosos aspiradores numa ventania que Sandra, dentro do fato, não era capaz de sentir, mas que provocava a expansão do tecido – ligeiramente, pois um dos objectivos era de manter o ocupante na pressão atmosférica a que estava habituados. Alertado para o início do funcionamento, o depósito de ar começou a enriquecer-lhe os pulmões com uma mistura acrescida de oxigénio, causando-lhe tonturas suaves. Agarrou-se ao suporte, antes de abrir a comporta, e abriu braços e pernas, deixando que os sensores de calor a inspeccionassem. Se houvesse uma fuga, mesmo pequena, o jacto de ar emitiria calor suficiente para notarem e a saída ficaria cancelada. No seu íntimo, Sandra quase desejou que acontecesse.

Mas estava tudo normal e nada mais lhe restava que abrir a comporta e expor-se à vontade do universo.

Inspirou fundo e saiu. Apesar do treino, os passeios extra-veiculares não a deixavam confortável. O corpo humano não estava preparado para o ambiente do espaço. Tudo era uma ameaça, desde os perigos imediatos – como as falhas do sistema de apoio à vida, a perda de ar, o embate com micrometeoritos – aos insinuantes – como a exposição à radiação, a lassidez muscular, o débito acelerado de cálcio. A preocupação com a sobrevivência era permanente. O casco físico de uma nave ao menos constituia uma segurança adicional, mesmo que ilusória, e permitia-lhe agir mais descansada. Aqui, tudo o que a separava da morte era uma película multicelular construída a partir de recomendações alienígenas que se tinham verificado mais eficientes e manobráveis que o antigo sistema de isolamento por camadas. Algumas características básicas ainda se mantinham, como o sistema de capilares repletos de água para reduzir a acumulação de calor e os reflectores termais, mas outros – como o novo sistema de recolha de fezes e urina, menos desconfortável na opinião de muitos, embora não na dela – tinham sido totalmente refeitos e utilizados após testes considerados suficientes. Se a experiência lhe ensinara algo relativamente à tecnologia, é que se encontrava constantemente em testes, o que fazia dela uma cobaia.

Enquanto aguardava os últimos instantes antes do aparecimento de Carlos, posicionou-se de forma a olhar para cima, para a superfície da Terra. O rebordo da nave e a estrutura exterior da câmara tapavam o que devia ocupar a maior parte do seu campo de visão, pelo que só conseguia aperceber-se de uma faixa longitudinal do planeta. Mesmo assim, era avassalador. Fixou-se bem ao cabo de ligação – não por medo de extraviar-se mas pela sensação de vertigem que lhe davam os contornos dos continentes sobre os quais voavam (Austrália, coberta de nuvens); ou para ser mais exacta, sobre os quais caiam mas sem nunca atingir o solo. Era preciso sair-se do planeta para perceber o que este realmente representava: um útero. Protecção total contra a fragilidade inerentes aos seres humanos. Uma espécie que sonhava com o vôo interestelar sem perceber o quão pouco preparada estava.

- Passa-se alguma coisa? – foi a pergunta curiosa de Carlos ao encontrá-la deitada quando atravessou a escotilha.

- Estava a ver se o planeta ainda se encontrava no sítio – retorquiu secamente, voltando à verticalidade. – Vamos despachar isto?

Carlos fez um gesto de que fosse na frente. Sandra virou-se e ligou o pequeno motor do cabo.

Diante deles encontrava-se um ovo em construção. Era um ovo imperfeito, quebrado, pois faltava tapar o rebordo traseiro, por onde se enfiava ainda parte do conteúdo. Este ovo encaixava-se na abertura interior da nave, que o rodeava como um anel. Se neste momento vários suportes e andaimes juntavam as duas estruturas, quando estivesse em funcionamento – enquanto decorressem as sessões plenárias – seriam desacopladas. O ovo ficaria assim encaixado dentro do anel mas sem o tocar; mantendo-se em órbita, na mesma velocidade e altitude, que a nave mas autónomo e isolado. Os engenheiros, sabendo que dois corpos não mantêm indefinidamente a mesma trajectória pois o tempo encarrega-se de ir acumulando as ínfimas diferenças iniciais de velocidade e inclinação – em particular na proximidade de um planeta, com as variações gravitacionais do campo Terra-Lua e da pressão resultante da radiação solar e do ocasional embate contra detritos em órbita –, quiseram saber o motivo da separação. Aos que os coordenadores responderam que isso só os extra-terrestres conseguiriam responder. O módulo devia ser isolado da nave principal quando as negociações começassem, fisica e electronicamente – todas as comunicações e vias de passagem cortadas e, inclusive, destruídas. Apenas se voltaria a ter acesso quando recebessem um sinal, proveniente do interior, que o plenário chegara a bom termo. E quando seria isso? Os representantes, inquiridos, deram a entender que a pergunta era irrisória. Quando terminasse, obviamente.

O ovo não podia ter qualquer sistema de navegação. O isolamento implicava que era necessário duplicar os sistemas de apoio à vida para as diferentes espécies que o habitariam até ser dada a ordem de libertação. Implicava também uma previsão de aprovisionamento e de regeneração atmosférica. Percebendo que não era possível expandir o funcionamento da tecnologia existente, tentou-se impor um limite de duração ao evento, ou uma nova abordagem. Por fases, por exemplo? Os representantes riram-se (embora riso fosse uma interpretação humana) e explicaram que essa forma de negociação talvez fosse possível dentro de uma espécie mas não quando se encontravam várias à mistura. As crianças humanas ainda tinham muito de aprender no que tocava aos protolocos entre povos adultos. Os quais, obviamente, se não fossem cumpridos à letra pelos organizadores do evento, implicariam graves consequências nas relações entre os vários envolvidos. Perante esta informação, os engenheiros não tiveram outra solução se não desenhar o módulo como um mini-ecossistema auto-sustentável. «Temos de pensar que vamos a Marte, mesmo que não se saia do lugar», foi um comentário muito pertinente. O orçamento do projecto disparou, e os investidores lançaram as mãos à cabeça colectiva.

Sandra tinha entrado nessa fase do projecto. Para ela, o ovo era um facto consumado. E a peça mais complexa de montar. Além da necessidade de conjugar competências em áreas distintas, equipas e disciplinas com fortes opiniões que requeria mão férrea para obter resultados nos prazos planeados. Há três anos que existia apenas para o projecto, mas os piores tempos tinham passado. Aqui em cima, no espaço, longe das confusões e das influências, podia trabalhar em paz e ver o fruto do desenho crescer. Tinha orgulho nisso. Não nascera para as demagogias da política. As palavras eram escorregadias e traiçoeiras, enquanto que o mundo material era previsível e ordeiro, embora implacável. Os componentes desempenhavam a função para a qual foram pensados. O vácuo e a radiação causavam um desgaste mensurável. Uma equação newtoniana dava sempre o mesmo resultado. Que a construção estivesse ligeiramente atrasada, fazia parte do jogo. Os objectivos impostos eram mais psicológicos que científicos. Sem descurar no entanto a janela temporal pedida pelos alienígenas. Dos objectivos destes nada se conhecia. Talvez fossem psicológicos também. Ou talvez se divertissem apenas em ver as formigas humanas na azáfama de cumprir o pedido dos senhores.

Daí que lhe surpreendesse verdadeiramente a imposição daquela pessoa naquela fase. Tudo o que podia ser decidido, estava decidido. A interferência de uma nova vontade tão perto da conclusão dos trabalhos não podia ajudar em nada. Era certo que Carlos não passava dos olhos e ouvidos do Presidente e iria emitir uma opinião pessoal sobre as andanças da construção. Mas ela não era ingénua e sabia que esses olhos e ouvidos já existiam, escondidos entre os trabalhadores; aliás, muito a espantaria descobrir algum trabalhador que não tivesse uma função secundária de espiar para um determinado país ou agência. E Carlos tinha um currículo demasiado limpo e transparente. Quase como se fosse... uma história inventada.

- Vamos utilizar a abertura três – comunicou ela via rádio, referindo-se ao mapa da construção que surgia em ambos os visores do capacete. – É a única desimpedida deste lado.

- Vou atrás de si – ouviu em resposta.

Passaram por vários braços mecânicos em posição de repouso. O ovo estava preso à estrutura principal, naquela zona, por uma ponte articulada. Os trabalhos aguardavam pelo conjunto final de placas para a camada exterior (recusava-se a levar a analogia mais longe e chamar-lhe «casca»), cujo fabricante se atrasou a entregar. Mais algumas semanas e o acesso ficaria restrito a pessoal essencial, após o qual se procederia à esterilização por radiação e encerramento estanque para preenchimento atmosférico. Outro par de meses e os diversos habitats alienígenas teriam atingido a maturidade, permitindo receber os representantes e dar início à conferência.

Sandra rodopiou sobre si mesma na última parte do percurso, soltou-se do cabo e deixou a inércia aproximá-la da entrada hexagonal. Esticou a mão para agarrar uma pega reflectora, brilhante, e sentiu-se curvar para dentro do túnel. Libertou-se a tempo de entrar por completo e embater, suavemente, contra a parede amortecedora do interior. Ficou a ver Carlos procurar acompanhá-la mas a perder o embalo, imobilizar-se antes de tempo e obrigar-se a avançar a custo, mão ante mão, até perto de si. Deu-lhe uma pequena satisfação.

- O acesso é feito em forma de cornucópia. Este, por sinal, é o acesso humano, onde residirão os nossos representantes. Quatro cornucópias encaixam-se entre si, nunca se tocando, excepto no núcleo, ou seja, na sala do congresso, o único espaço em que as quatro espécies podem conviver. Depois, cada uma recolhe-se à sua zona reservada. O que pretende visitar?

- Todas as zonas – respondeu o intercomunicador.

- Não vamos ter tempo nesta incursão – indicou firmemente.

- Temos oxigénio para seis...

- Podemos ter oxigénio e tudo o mais, mas não estava nos meus planos passar o dia inteiro consigo, e tenho outros afazeres à minha espera. Se não queremos mais atrasos no projecto.

- Posso orientar-me sozinho...

- Pensa mesmo que vou deixá-lo sozinho num espaço em construção que não conhece, contra protocolos e bom senso?

Ele ficou silencioso, a ponderar. Claro que tinha a prerrogativa de se impor, mas não era a melhor ocasião para exercê-la.

- Até onde podemos ir?

- Até à sala do congresso, pelo menos. Podemos vê-la com calma.

- Esqueça a sala, para já. Mostre-me a zona dos Angst. Tem tempo para isso, não tem?

Foi a vez dela de ficar silenciosa. Era afinal um truque velho e sempre eficaz: quando era obrigado a escolher, aquele que queria provar de tudo acabava por revelar o seu verdadeiro interesse.

(c) Autor do Texto, (c) Luís Filipe Silva, 2003/2007. Não é permitida a reprodução não autorizada dos conteúdos.

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Luís Filipe Silva