Exposição Prolongada à Ficção Científica  

   um blog de Luís Filipe Silva


Encontra-se em modo de artigo. Para ver as outras entradas vá para a Página Inicial ou Arquivo, no menu da direita.

30 Julho 2006

O DESAFIO DA BREVIDADE é particularmente interessante na ficção científica: o que torna uma frase, um texto, em FC? O que a separa de uma descrição do mundo contemporâneo, de literatura mainstream? E que extensão mínima requer esse texto para invocar o sentido do maravilhoso? Com maior ou menor consciência desta interrogação, este desafio tem tido várias manifestações no seio do pequeno grupo de entusiastas portugueses: começaram por ser os mini-contos de 150 palavras publicados no boletim mensal da associação Simetria, depois o meu «FC por SMS» (aqui, aqui e aqui) - FC em 160 caracteres -, sendo o último acontecimento na forma de Mini-Sagas (aqui exemplarmente explicado) - FC em 50 palavras exactas.

E porque alguns desafios são irresistíveis, não deixei de tentar a minha contribuição a este último (embora não tivesse participado no concurso) - apesar de, confesso, um mau entendimento das «regras» me fizesse considerar que 50 palavras eram limite máximo, e não para cumprir com exactidão. Aqui vão os resultados, com explicação de rodapé:

Primeira: Sem Título

AQUI JAZ

FRANCISCO JOSÉ SALGUEIRO MAIA

1944 - 1974

TRAIDOR À PÁTRIA

INSTIGADOR DA INSURREIÇÃO NACIONAL

INIMIGO DO POVO E DA NAÇÃO PORTUGUESA

ENTERRADO EM VALA CIVIL

DESTITUIDO DE HONRAS

EM MEMÓRIA DA COBARDIA MILITAR DE ABRIL

"DEUS É O ESTADO E O ESTADO É DEUS

E SALAZAR O SEU ETERNO NOME"

Segunda: Sem Título

Hesitou, o metal tinha um sabor desagradável, inesperado. Até no final a vida reservava surpresas. Isto comoveu-o, e receou chorar. Sabia que agia em vão. Que não o entenderiam como um sacrifício. Que quem o viesse a descobrir, dali a dias, leria na nota um conto de fantasia. Seria publicado? Ganharia um Hugo? Riu-se, o que lhe deu coragem para continuar. A verdade é que se borrifava para todos eles. Se não fosse a perspectiva da morte lenta e dolorosa, teria deixado a doença corroer-lhe a carne e abrir os portões do Inferno. Que melhor destino para a puta da Humanidade que sempre o desprezara?

 

Terceira: Contra a Demagogia

- Funciona assim, sr. Presidente: conta as palavras que profere a falar e escrever, e quando chega ao limite, zás! Liberta os contentores cheios de cianeto dos milhões de nanos nas suas veias. E ao fim de cinquenta palavras...
- Cinquenta palavras?!
- Quarenta e oito... – corrigiu maliciosamente o terrorista.

 

E como funcionam? Em que ponto, então, o banal se transforma em estranho, nos exemplos propostos? Analisemos muito rapidamente, com exposição de algumas técnicas de escrita utilizadas:

Na primeira, a manifestação ocorre na data de falecimento desse grande herói nacional que aos meros trinta anos ajudou a comandar um golpe de Estado: aqui sugere-se implicitamente que terá sido morto no cumprimento desse dever, primeira indicação de que o Movimento dos Capitães teria provavelmente falhado; o texto que segue torna-se na confirmação da suspeita e na solidificação de um Portugal que continuará sob a bota da ditadura e da propaganda fascista. É bastante minimalista, mas serve como exemplo que uma história não necessita de uma narrativa para funcionar, desde que se aproprie de uma imagem ou de um símbolo familiar para o leitor e o manipule de forma a obter os resultados desejados.

Na segunda, demasiado comprida para as regras (100 palavras), estamos perante uma situação de suicídio e sacrifício pessoal, mas que trará benefícios para a Humanidade. O motivo parece um «conto de fantasia». Porquê? «... a doença corroer-lhe a carne e abrir os portões do Inferno»: o protagonista sofre de uma doença que funciona como meio de transporte dos danados e que os soltaria entre nós, se a deixasse progredir pelo corpo (dark fantasy, portanto). A frase-chave fica ali perdida no meio de um acontecimento mais importante, o da escolha pessoal do momento da morte, e envolta numa questão ética (deveria ele, conhecendo a natureza da doença, sacrificar-se pelo bem da Humanidade? Numa história de heroísmo talvez isso acontecesse, mas aqui preferi assumir uma perspectiva mais cínica e apresentar um protagonista «que se borrifava para todos eles». Esta questão deriva da natureza da doença e não pode ser evitada no contexto da história, mas aqui é acompanhada de uma resposta). Esta mélange de temas carregados de significado é apresentado, em termos estilísticos, em media res, como se fosse um extracto de um conto maior. É uma técnica que gosto bastante de utilizar, pela subtileza e suavidade de abordagem. Para todos os efeitos, esse conto teve de existir, na minha cabeça, quando escrevi a mini-saga - ou antes, a percepção de uma narrativa maior, não concretizada, como uma sombra desfocada que paira antes e após do texto apresentado.

O terceiro é uma brincadeira com o próprio desafio, e apenas é ficção científica porque a nanotecnologia não está suficientemente desenvolvida para permitir o tipo de controlo e actuação apresentados. Dou-lhe vinte anos para se tornar mainstream...

[Link Permanente

30 Julho 2006

THE STATE OF SCIENCE FICTION, que, se formos literalíssimos e traduzirmos como «O Estado da FC» (e não a «situação», como deveria ser), incorremos no mesmo significado ambíguo que a palavra «Estado» tem em inglês: a noção da imposição política (neste caso, eventualmente mais demagógica) de um conjunto de regras estéticas defendidas por um grupo, contra as de outros grupos. Neste caso, falamos de ficção científica versus sci-fi, cuja distinção deveria separar a boa (literária, especulativa, fundamentada em princípios estéticos que foram crescendo ao longo do século XX) da má (apressada, estereotipada, recorrendo a convenções e pressupostos não fundamentados, mal escrita ao nível do estilo) ficção científica, mas que normalmente serve para distinguir a fc na forma escrita da fc na forma audiovisual.

Apesar do que Lou Anders, editor da Pyr, afirma no seu blog, o problema não está em tentar disfarçar um filme como não sendo ficção científica - esse é outro problema, mas contra este falará a vontade do público e as receitas de bilheteira. Anders cita alguns exemplos de filmes, mas o caso pode observar-se igualmente nos livros - a atitude de Margart Atwood não está longe no tempo, e mesmo recentemente David Mitchell, numa entrevista à Bloomberg TV, embora não tendo negado que Cloud Atlas seja em parte ficção cientifica (e mérito lhe seja dado), ficou nitidamente preocupado com tal categorização num canal público.

A preocupação demonstrada tem as suas raízes, por um lado na capacidade de penetração de mercado (e sejamos maduros: aqueles senhores são escritores profissionais, e preocupam-se de facto com o nível de vendas), por outro no estigma ainda hoje bem vivo da situação de gueto do género, não porque não contenha escritores excelentes e obras de mérito, mas porque os fãs que na sua inocência (alguns casos) ou imbecilidade (outros) populam as convenções vestidos como os personagens das séries televisivas retiram a seriedade à fotografia de conjunto... (outro preconceito: se nos estamos a divertir não é boa literatura - algo que debati na Cidade da Carne).

O problema mais grave é o da ficção científica não assumir a ciência de base. Como se falar e debater ciência fosse um pecado nos dias que correm. Esta mentalidade é perpetuada por shows televisivos que, embora assumindo-se como bastiões da nova FC, envolvem as convenções do género em auras de misticismo que em nada contribuem para a descodificação dos temas. Penso muito concretamente no caso do Battlestar Galactica versão século XXI, que resume-se a pegar na lenda (quase diria mito rural) da travessia do deserto pelo povo hebraico em busca da terra prometida e vesti-la com capas de ficção científica - isto talvez explique o nível de misticismo assumido (atente-se ao desenrolar dos episódios passados em Kobol na segunda série), mas não desculpa a perversão que está no centro do que entendemos por «FC».

Se a FC perde terreno para a fantasia nas livrarias e no discurso mundano, esta será sem dúvida uma das razões. A ciência perdeu um pouco do seu brilho e mistério, o que implica apenas que anda a ser mal explicada, ou mal utilizada na literatura. 

[Link Permanente

Site integrante do
Ficção Científica e Fantasia em Português
Texto
Diminuir Tamanho
Aumentar Tamanho

Folhear
Página Inicial

Arquivo

Subscrever
Leitor universal