30 Julho 2006
O DESAFIO DA BREVIDADE é particularmente interessante na ficção científica: o que torna uma frase, um texto, em FC? O que a separa de uma descrição do mundo contemporâneo, de literatura mainstream? E que extensão mínima requer esse texto para invocar o sentido do maravilhoso? Com maior ou menor consciência desta interrogação, este desafio tem tido várias manifestações no seio do pequeno grupo de entusiastas portugueses: começaram por ser os mini-contos de 150 palavras publicados no boletim mensal da associação Simetria, depois o meu «FC por SMS» (aqui, aqui e aqui) - FC em 160 caracteres -, sendo o último acontecimento na forma de Mini-Sagas (aqui exemplarmente explicado) - FC em 50 palavras exactas.E porque alguns desafios são irresistíveis, não deixei de tentar a minha contribuição a este último (embora não tivesse participado no concurso) - apesar de, confesso, um mau entendimento das «regras» me fizesse considerar que 50 palavras eram limite máximo, e não para cumprir com exactidão. Aqui vão os resultados, com explicação de rodapé:
Primeira: Sem Título
AQUI JAZ |
Segunda: Sem Título
Hesitou, o metal tinha um sabor desagradável, inesperado. Até no final a vida reservava surpresas. Isto comoveu-o, e receou chorar. Sabia que agia em vão. Que não o entenderiam como um sacrifício. Que quem o viesse a descobrir, dali a dias, leria na nota um conto de fantasia. Seria publicado? Ganharia um Hugo? Riu-se, o que lhe deu coragem para continuar. A verdade é que se borrifava para todos eles. Se não fosse a perspectiva da morte lenta e dolorosa, teria deixado a doença corroer-lhe a carne e abrir os portões do Inferno. Que melhor destino para a puta da Humanidade que sempre o desprezara?
Terceira: Contra a Demagogia
- Funciona assim, sr. Presidente: conta as palavras que profere a falar e escrever, e quando chega ao limite, zás! Liberta os contentores cheios de cianeto dos milhões de nanos nas suas veias. E ao fim de cinquenta palavras...
- Cinquenta palavras?!
- Quarenta e oito... – corrigiu maliciosamente o terrorista.
E como funcionam? Em que ponto, então, o banal se transforma em estranho, nos exemplos propostos? Analisemos muito rapidamente, com exposição de algumas técnicas de escrita utilizadas:
Na primeira, a manifestação ocorre na data de falecimento desse grande herói nacional que aos meros trinta anos ajudou a comandar um golpe de Estado: aqui sugere-se implicitamente que terá sido morto no cumprimento desse dever, primeira indicação de que o Movimento dos Capitães teria provavelmente falhado; o texto que segue torna-se na confirmação da suspeita e na solidificação de um Portugal que continuará sob a bota da ditadura e da propaganda fascista. É bastante minimalista, mas serve como exemplo que uma história não necessita de uma narrativa para funcionar, desde que se aproprie de uma imagem ou de um símbolo familiar para o leitor e o manipule de forma a obter os resultados desejados.
Na segunda, demasiado comprida para as regras (100 palavras), estamos perante uma situação de suicídio e sacrifício pessoal, mas que trará benefícios para a Humanidade. O motivo parece um «conto de fantasia». Porquê? «... a doença corroer-lhe a carne e abrir os portões do Inferno»: o protagonista sofre de uma doença que funciona como meio de transporte dos danados e que os soltaria entre nós, se a deixasse progredir pelo corpo (dark fantasy, portanto). A frase-chave fica ali perdida no meio de um acontecimento mais importante, o da escolha pessoal do momento da morte, e envolta numa questão ética (deveria ele, conhecendo a natureza da doença, sacrificar-se pelo bem da Humanidade? Numa história de heroísmo talvez isso acontecesse, mas aqui preferi assumir uma perspectiva mais cínica e apresentar um protagonista «que se borrifava para todos eles». Esta questão deriva da natureza da doença e não pode ser evitada no contexto da história, mas aqui é acompanhada de uma resposta). Esta mélange de temas carregados de significado é apresentado, em termos estilísticos, em media res, como se fosse um extracto de um conto maior. É uma técnica que gosto bastante de utilizar, pela subtileza e suavidade de abordagem. Para todos os efeitos, esse conto teve de existir, na minha cabeça, quando escrevi a mini-saga - ou antes, a percepção de uma narrativa maior, não concretizada, como uma sombra desfocada que paira antes e após do texto apresentado.
O terceiro é uma brincadeira com o próprio desafio, e apenas é ficção científica porque a nanotecnologia não está suficientemente desenvolvida para permitir o tipo de controlo e actuação apresentados. Dou-lhe vinte anos para se tornar mainstream...