Exposição Prolongada à Ficção Científica  

   um blog de Luís Filipe Silva


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11 Setembro 2008

A Estação dos Correios da Zona em Que Trabalho Encerra à Hora de Almoço. É uma estação com características muito próprias. Situada num parque industrial isolado nos arrabaldes da Grande Lisboa, é a única estação em redor para alguns milhares de trabalhadores das empresas do local. A localidade mais próxima (onde se poderá encontrar uma estação de correios alternativa) ainda fica a vinte minutos de carro, demora que se agrava pelo trânsito do final da manhã.

Parecendo que não, ao seguir este horário, está a prestar um serviço imprescindível aos clientes.

Pois, ao encerrar durante o período de pausa que as empresas dedicam à recuperação de energias, está a garantir a saúde de todos os profissionais. Impossibilitados de caírem na tentação de sacrificar este momento, o qual foi concebido para a degustação pausada e apropriada conducente a uma correcta digestão, em prol de burocracia epistolar e expedidora que não se encaixa no espírito da pausa, os trabalhadores são poupados ao ritmo frenético dos que utilizam a hora de almoço para tratar de questões pessoais. Ao contrário dos congéneres cujos locais de trabalho se situam dentro das localidades, estes trabalhadores não precisam de escolher restaurantes de comida rápida, não mastigam à pressa nem engolem pedaços volumosos, inimigos do bom funcionamento do sistema digestivo, não optam pela torturante e prejudicial alternativa de beber um galão ou meia-de-leite ao invés de um almoço completo, e igualmente importante, não se atrasam no retorno aos afazeres profissionais, chegando a tempo às reuniões, à leitura dos memos, ao preenchimento de formulários, à elaboração de relatórios e à tomada de decisões, marcadas para o período inicial da tarde e contribuindo enormemente para a produtividade do país.

Trabalhadores cuja personalidade seja mais rebelde e que não se conformem com a sensatez da decisão desta estação de correios poderão tentar contornar o problema e antecipar em quinze ou trinta minutos o período de almoço, para conseguirem entrar na estação e serem atendidos antes do encerramento das portas. Atenta a este comportamento, qual mãe atenta às investidas de um filho traquinas, a equipa de colaboradores da estação ocasionalmente antecipa o encerramento das portas ao público, de forma a conseguir atender as pessoas dentro do espaço até à hora de pausa.

Esta decisão sensata contraria a possível tendência de imitação pela população restante, que poderia em conjunto optar por aquela estratégia, enchendo a estação de clientes ansiosos e privando os colaboradores dos correios de gozarem, também eles, do seu merecido período de repouso e convivência social. Eventualmente, a afluência de pessoas que tentem antecipar a hora de fecho conduzirá a que as portas se encerrem cada vez mais cedo, até se atingir um ponto de equilíbrio, no qual não se pode antecipar mais o período de almoço.

As forças da oferta e da procura embatem uma na outra, e volta tudo ao normal: a estação cumpre a sua função social de educar os trabalhadores a usarem a hora de almoço para aquilo que foi concebida e alcançarem uma disciplina de alimentação saudável.

Longe de se poder considerar este como um problema a corrigir, porque não torná-lo num exemplo a seguir?

Contra o frenesi enlouquecido das sociedades modernas poderia erguer-se a benevolência das nossas instituições de serviço ao público. Imaginem como se pode aproveitar o que hoje já existe:

  • Impor um período de reflexão e maturação pessoal graças aos seus limitados períodos de atendimento, reduzido número de assistentes de balcão e ausência de alternativas automáticas e na internet;
  • Garantir o compasso harmonioso e democrático da sociedade graças às longas filas de espera e períodos de encerramento inconvenientes a todos os clientes, independentemente da raça, credo ou nacionalidade dos mesmos, e muito menos da urgência ou criticidade individual dos assuntos que ali conduziu cada cliente;
  • Dinamizar a língua e a cultura por incentivar os clientes frustrados à criação contínua de adjectivação colorida que descreva na perfeição o acontecimento em todos os pormenores e variantes;
  • Ajudar ao convívio social do público:
    • graças a espaços de espera exíguos e com poucos de assentos que obrigam os clientes a conviver de forma apertada entre si,
    • graças ao atendimento indiferenciado, ao misturar estafetas com caixas repletas de correspondência nas filas de espera em que se encontram pessoas que são obrigadas a aguardar horas para despachar um mero aviso de levantamento de encomenda ou envio de vale postal,
    • e graças a exemplificarem os próprios colaboradores a beleza da interacção social quando espontaneamente desaceleram ou interromperem o trabalho para os dois dedos de conversa indispensáveis.

Todo o país, todo o mundo, podia, ou devia, aprender com as estações de correio.

E não tem de ficar por aqui.

Porque as sociedades humanas evoluem, porque a tecnologia se aprimora, porque é cada vez mais possível coligirmos dados sobre as preferências e actividades individuais, encontramo-nos ante a promessa de conseguir personalizar esta singular forma de tratamento do público à medida de cada pessoa.

As estações de correio passarão a conhecer as horas de almoço de cada uma das empresas da zona a que servem e a encerrar em turnos à medida de cada uma.

Conseguirão distinguir entre empregados de escritório e vendedores ou distribuidores sem pouso fixo, e a criarem períodos de indisponibilidade, espera e resposta demorada ao encontro de cada um, sem (e isto é importante) sem interferir na capacidade de se mostrarem indisponíveis para os restantes segmentos de clientes. O letreiro que hoje indica "Encontramo-nos encerrados durante a hora de almoço" passará a informar "Encontramo-nos encerrados durante a SUA hora de almoço", verdadeiro indício de um serviço moderno e desenvolvido.

Se me permitem utilizar as ferramentas da Ficção Científica, será possível atingir este nível de sofisticação (conversa entre um cliente e uma empregada dos correios algures no futuro próximo):

Cliente
Bom dia, vinha levantar uma encomenda.

Empregada
Vou precisar do seu BI digital. Obrigada. Hmmm... vejo que se trata do senhor Tavares, residente na Rua das Crisálidas 45F. Lamento informar que estamos encerrados para almoço.

Cliente
(olhando espantado em redor)
Encerrada? Mas está aqui tanta gente. E estão a ser atendidos!

Empregada
(com tom paciente)

Sim, senhor Tavares, mas nenhuma destas pessoas se encontra na sua hora de almoço respectiva. Algumas são reformadas, outras indigentes, outras menores, outras desempregadas, e outras conseguiram uma autorização especial das suas empresas.

Cliente
Mas olhe que a minha hora de almoço é entre a uma e as duas da tarde, não sei de onde tirou essa ideia.

Empregada
(consultando o computador)

Na verdade, senhor Tavares, aqui indica que o senhor tem um regime especial atribuído pela sua empresa, e de acordo com o seu contrato de trabalho dispõe de hora e meia para almoço à sua escolha, a qual deverá ser gozada diariamente entre o meio-dia e as três da tarde. Num dia normal, se tentasse utilizar os nossos serviços durante esse período estaríamos encerrados para si...

Cliente
(ficando exasperado)

Então estão encerrados porquê? Não são 15h20, agora?

Empregada
(com paciência acrescida, explicando devagar)

... como disse, num dia normal. Contudo, tenho aqui a indicação de que esteve a assistir toda a manhã a uma apresentação que se prolongou até às 3 da tarde, pelo que para todos os efeitos o senhor encontra-se desde há vinte minutos na sua hora de almoço. Ou melhor dizendo, no seu caso, hora e meia de almoço. O que significa que só voltaremos a estar disponíveis para o atender pelas 16h30.

Cliente
(já com ar alucinado)

Mas tenho uma reunião às quatro! E precisava de enviar esta encomenda hoje!

Empregada
(soltando o sorriso profissional que significa assunto encerrado)

Lamentamos, senhor Tavares, mas deve compreender que se lhe abrirmos uma excepção, teremos de abrir a toda a gente. Tenha um bom dia e obrigado por preferir os nossos serviços.

 

Com o passar dos anos e o aprimorar desta estratégia, as pessoas levarão vidas mais compassadas e organizadas, nas quais haverá tempo suficiente para se dedicarem a almoçar, trabalhar,  descansar, recuperar, passear, e a não conseguirem ser atendidos. Todas as empresas de serviços, de todas as lojas, gabinetes, agências, centros, postos de atendimento e sucursais, disporão de tabelas e gráficos cuja grande profundidade de detalhe lhes permitirá estudar os padrões de comportamento dos clientes, a nível estratificado e individual, para precaverem os períodos do dia livres de cada indivíduo que este poderia sentir-se tentado a perder a tentar contratar um serviço, expedir uma carta, marcar uma viagem.

A padaria abrirá as portas apenas para si durante trinta segundos após as 7.29 todos os dias, e se tiver sorte de o elevador não se atrasar ainda conseguirá comprar um pão quentinho; claro que este período coincide com a hora de entrada do seu filho no colégio, que fica do outro lado da cidade. Por qual vai optar?

Aquele Multibanco tão conveniente que se situa entre o seu prédio e a paragem de autocarro entra sempre em manutenção durante os dez minutos habituais em que sai de casa e o quarto de hora ao final do dia em que regressa, e todos os dias tem de pedir ao motorista para viajar a crédito, que pagará quando conseguir levantar dinheiro.

E quanto a supermercados e centros comerciais? Qualquer incursão de compras será uma aventura. Qualquer re-abastecimento do lar será eficiente e ponderado, de forma a garantir que os produtos não escasseiam até à próxima oportunidade de encontrar as lojas abertas mas contudo manter algum nível de poupanças.

Tudo em prol da nossa qualidade de vida.

As intrinsecamente menores oportunidades de aquisição conduzirão à diminuição das necessidades do povo, o que por sua vez conduzirão a excessos de stock de lojas permanentemente encerradas. Os preços irão descer e o nível de produção diminuir. E graças a isto, o período de trabalho será reduzido, bem como salários, ritmo, e objectivos. Empresas irão à falência com despedimentos massivos, mas sem prejuízo social, pois a impossibilidade de ter conduz à ausência da necessidade. Empregados de lojas e restaurantes serão salvos de uma vida passada entre paredes, dentro de estabelecimentos bafientos ou com ar condicionado situados em centros comerciais esteticamente ofensivos. Contabilistas voarão contentes portas fora ante a inexistência de movimentos para registar nem fluxos financeiros para conferir. Capatazes sentar-se-ão nos montes de matérias primas que apodrecem nos armazéns, banhados na glória de saber que naquele dia nada será transformado, nada será produzido, não ocorrerá qualquer mudança.

Aos poucos, os prémios irão arruinar-se, depois cair. As roupas encher-se-ão de remendos até se desfazerem por completo. Os pés voltarão a andar descalços, como os dos antepassados, mas como não haverá transportes nem possibilidade de viajar, não se terá muito para onde ir. O conceito de serviço, de sociedade organizada e trocas comerciais sairá da lembrança. A ordem do dia será encontrar água, caçar, talvez defender o grupo do ataque de inimigos. Uma sociedade destas não precisa de muitas palavras, e a linguagem tornar-se-á mais simples.

Um estágio verdadeiramente sofisticado da evolução humana como este será difícil de alcançar, mas não impossível. Basta mantermo-nos no bom caminho, que tudo será possível graças à aplicação contínua da tecnologia para afastar cada vez mais o serviço das necessidades do cliente.

Da minha parte, aprendi a lição, e hoje encaro o mundo com uma nova perspectiva. Durante o período de almoço, almoço, não aspiro a outros patamares. Se sou trabalhador não sou consumidor, se almoço não vou às compras, não preencho formulários, não fico nas filas das farmácias - os papéis sociais não se podem misturar.

E se tiver de ir aos correios tiro um dia de férias ou uma licença sem vencimento. Afinal, é uma ocasião única na vida de uma pessoa poder ser atendida durante a hora do expediente, e há que saborear a experiência em todo o seu esplendor.

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07 Setembro 2008

No Último Filme da Saga Indiana Jones, John Hurt tem uma das falas mais idiotas de toda a sua carreira - quando a espaçonave dos extraterrestres (sim, tem espaçonaves, sim, tem extraterrestes, não se preocupem com este spoiler pois é um desenlace que qualquer espectador atento ou ainda acordado conseguirá antever logo desde o primeiro acto) levanta vôo e um dos personagens lança a pergunta que mereceria o olhar reprovador de imbecilidade de qualquer pessoa, «Será que vão para o espaço?», Hurt no papel de um professor arqueólogo alucinado (o enredo tenta convencer-nos que se deve aos efeitos de uma caveira de cristal alienígena com poderes psíquicos, mas eu desconfio que se tratará de um comentário subtil aos efeitos secundários das políticas do nosso Ministério da Educação) lança este maravilhoso repto, «Não, vão para o espaço entre os espaços»... (por outro lado, aplicar a observação em causa à lógica de raciocínio do referido Ministério explicaria muita coisa) - seguida surpreendentemente de uma das melhores - quando Indy reencontra e se casa finalmente com a sua antiga paixão, da qual se separara muitos anos antes, implicando assim o retomar de uma vontade interrompida, Hurt comenta «Tanto que se perde de uma vida humana à espera...».

De resto, uma história banalíssima, que merece ser esquecida e de facto rapidamente o é, seguindo a herança do segundo e o terceiro filmes da saga, os quais nunca conseguiram chegar aos calcanhares do primeiro, embora o desastre, neste, tenha sido maior. Poderia discorrer como outros colegas na internet sobre as ligações desta história com as raízes do pulp, não fosse ter ficado com a sensação de que o filme era uma private joke de rapazes crescidos, nos seus cinquenta e sessenta anos, despretenciosos e com vontade de se divertirem mais um pouco, e não um retomar de uma tradição narrativa nem uma homenagem a tempos antigos como foi o primeiro filme (de acordo com entrevistas de Spielberg de então) nem sequer uma necessidade de manter a coerência temática do mundo Indiana Jones (desde logo comprometida com a evidência física de um castigo divino no primeiro filme, misturando-se a fantasia mundana com a fantasia religiosa de uma forma que já não se encontra muito nos laicos tempos actuais).

Melhor expressão da existência na terceira idade é Duma Key, uma das mais recentes obras de Stephen King e que por sinal tenho estado a apreciar, apesar das minhas ressalvas relativamente ao que o mestre do horror costuma verter em formato romance. Um estilo solto, menos carregado dos tiques habituais, uma quase perfeição na medida em que vai soltando os pequenos indícios da trama narrativa, um bom controlo dos personagens, este é Stephen King desnudando a forma de pensar e conviver de personagens que já passaram o seu primor, imperfeitas, idosas, assoladas pelas maleitas dos anos acumulados, dos azares e dos erros do passado. Se fizer juz ao que conheço dos romances dele, King irá desiludir-me mais adiante, ele que sempre foi um excelente tecedor de teasers e promessas, antes de as espatifar com finais pouco imaginativos e inócuos. Quase desejo que prolongue a introdução dos elementos fantásticos, que se mantenha enraizado numa história de filosofia humana até não poder mais, que não se distraia das relações entre pais, filhos e estranhso, e a necessidade de se reencontrar um rumo da vida perante a tragédia, que neste livro estão tão bem retratados. Mas, claro, encontramo-nos na chamada «ficção de género», e noblesse oblige, ou mais certamente obrigará o cheque, o fantástico entrará nesta casa com as patorras enlameadas, para salvar o mundo de acabar amanhã se ao mestre, ó Horror dos Horrores, desse na tola escrever mainstream...

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