Exposição Prolongada à Ficção Científica  

   um blog de Luís Filipe Silva


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03 Dezembro 2008

E Somos Cem! Às últimas horas de domingo, 30, um tsunami de submissões conseguiu elevar o número de entradas para a centena. Terá havido outra antologia de ficção marginal e marginalizada com tanta concorrência? Algo é pelo menos garantido: quanto maior a ceifa, maior o trigo, independentemente da proporção do joio. Um grande obrigado a todos os que decidiram entrar nesta jornada, e como foi apanágio do regulamento, espero que tenham conseguido divertir-se no processo. Quer sejam (desta vez) seleccionados quer não, espero que continuem a escrever. Foi, principalmente, a feliz constatação de que podemos ser afinal, um país de contadores de histórias. Ou antes, uma cultura, ou não tivesse tido a honra de receber um conjunto representativo de participações brasileiras. O trabalho difícil é agora concluir a selecção (não um trabalho solitário mas algo que vai receber comentários de partes terceiras em fases mais adiantadas, como convém), e começar a dar um formato ao livro final.

Numa onda paralela, destaque para o Blade Runner, agora com novo e invejável cabeçalho, que prometeu e cumpriu apresentar 30 livros de antiga memória das edições portuguesas do género, permitindo-nos viajar até tempos idos e relembrar, por momentos fugazes, as idades, dias, ocasiões em que certos livros entraram na nossa vida e foram importantes. De entre todos, Tron destaca-se imponente, na humildade da sua época tão ou mais importante que o Matrix. Os jogos mais apetecíveis são também os mais simples. Se não acompanharam a senda diária, aconselho-vos a efectuar a mesma viagem em diferido. O bom da velha internet é que nos permite navegar, assim, na informação, como se ontem tivesse sido hoje.

Não queria admitir, mas ele estava com medo.

A rapariga continuava escondida no beco. Pouco tinha vestido, apenas roupa interior - um vestido atado à cintura, com um topo muito justo e curto, de onde pendiam seios fartos dos quais não conseguia desviar o olhar, e uma saia rasgada, deixando antever um conjunto de ligas que adornavam pernas esculturais, daquelas que só se encontram nas capas de revistas. Mas não se encontrava nos seus melhores dias. Tinha um aspecto sujo, sovado. O cabelo, decerto que esplendoroso em ocasiões normais, estava sujo e desgrenhado. Por todo o corpo e roupa, notava-se por um predomínio de manchas de lama e terra secas, marcas de mãos e sapatos, talvez um fio de sangue aqui e ali. E para finalizar com toque de ouro, chorava desconsoladamente, sentada sobre uma caixa, encostada contra a parede fria do beco (era, afinal, Novembro, e ainda na semana passada nevara em toda a cidade).

Não o tinha notado ali, no fundo do beco, a olhar para ela, surpreendido em pleno acto de vitimização de mais uma menina da noite. A faca ainda respingava sangue da mulher que ele arrastara pouco tempo consigo, de quem tinha estado a extrair meticulosamente o útero. Felizmente que entretanto a dor e o choque a tinham levado, senão nem mesmo a mordaça teria impedido de soltar a quantidade suficiente de barulhos que alertassem a rapariga antes desta mergulhar no beco e o forçassem a fugir antes do trabalho acabado. O que teria sido uma pena.

Contudo, quando se tinha apercebido da companhia inesperada, já a rapariga estava encostada à parede, já encarava a vida com o maior dos desgostos. Nunca vira tanta tristeza num rosto tão jovem e bonito. Era perfeito. Era a vítima perfeita, a combinação exacta de beleza, desamparo e desespero que jamais encontrara. Era a mulher dos seus sonhos.

Daí que tivesse tanto medo. A perfeição era um alvo inalcançável. Ousar sequer atingi-la traria consequências nefastas. O pecador é aquele que cede ao desejo, pensou, e põe em risco a sua alma imortal. Não podia deixar que isso lhe acontecesse.

Além disso, a situação era-lhe tão propícia que simplesmente se recusava a acreditar que fosse coincidência. Não havia almoços grátis. Certamente que a polícia estaria à sua espera, à menor sugestão de silhueta nas sombras. A aguardar por ele.

Mas os minutos passaram-se e a rapariga não ficou mais calma. Pelo contrário, cada vez a sua angústia era maior, a cada momento mais lágrimas lhe irrompiam do rosto. E contudo, não se ia embora, não abandonava sequer o assento.

Ele bem tentava controlar-se. Mas a oferta era demasiado tentatora.

Armado com um sorriso simpático, aproximou-se, a faca a brilhar no luar ocasional. Quem sabe se ela não gostaria dele à primeira vista?

- Olá - soltou. A voz saiu-lhe ameaçadora como de costume. Era algo que não conseguia evitar. Os dedos tremiam-lhe ao antever o momento em que a lâmina beijaria a carne, em que lhe traçaria um sorriso abaixo daquela boca, como se inscrevesse a sua marca na perfeição do Senhor.

Ela não se assustou. Olhou-o placidamente. Como se o esperasse. Pareceu-lhe inclusive que... sorrira?

- Não vai gritar? - perguntou-lhe ele. Aquilo não estava nos seus planos.

Ela negou com a cabeça.

- Sei quem é... leio os jornais - baixou o pescoço, expôndo-o. - Faça o que tem a fazer.

Entrou-lhe uma raiva súbita. Mas quem se julgava ela, para comandar a sua mão de artista? Que direito lhe assistia em estragar a perfeição do momento, em arruinar o seu prazer? As mulheres eram bichos traiçoeiros e demoníacos, todas iguais, todas merecedoras do mesmo castigo. Iria corrigi-la, isso sim, mas não como ela pretendia. Com ela iria ser lento e cruel. Muito cruel.

Agarrou-lhe no cabelo e puxou-a para o chão. Ela debateu-se.

- Não, assim não, não quero morrer assim!

Queria ficar sentada. Ele puxou-a com mais força. Ela não conseguiu resistir.

A caixa onde ela estava sentada tinha um olho vermelho que piscava. No breve segundo em que ela se levantou, o olho deixou de piscar, acendeu-se, e cuspiu uma pequena bola para o ar. A bola ascendeu ao nível dos olhos dele.

Explodiu em cem mil agulhas finíssimas. Cravejaram o beco, enterrando-se com profundidade nas paredes, atravessando a rua e cortando os céus onde encontraram aberturas. As autoridades teriam dificuldade em recolher provas, de tão profundamente se tinham enfiado.

E todas as autoridades médicas concordaram que nada no sistema penal de Sua Majestade teria sido um castigo tão doloroso para o demónio das noites.

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01 Dezembro 2008

Leituras Aleatórias. Fantasy - The Best of the Year 2008, organizada por Rich Horton, é mais uma das antologias anuais que procura compilar os melhores contos publicados no ano transacto, neste caso no género «fantasia», de acordo com os critérios editoriais norte-americanos. Mais do que selecções rigorosas de acordo com princípios pré-estabelecidos, cada qual segue os ditames de gosto do organizador respectivo, mais subconscientes do que académicos, e na verdade é assim que tem de ser. O resultado, contudo, torna-se por vezes eclético e incompreensível.

Nesta antologia voltamos a encontrar «The Cambist and Lord Iron», de Daniel Abraham (o coitado, certamente por lapso, encontra-se omisso na secção das biografias no final do livro), que Kelly Link também seleccionou para a Year's Best Fantasy & Horror. «Stray» é uma selecção bizarra: este conto de Benjamin Rosenbaum e David Ackert apresenta-nos a estranha figura de um deus imortal que caminha entre nós, desprovido da glória e do poder do passado (ele que era mais poderoso que o mais poderoso dos reis). É aparentemente um deus africano, algo que não fica explícito, e que só nos é revelado pelas ocasionais menções de racismo e ambiente rural, informando-nos em simultâneo das questões de pele e de que possivelmente o cenário é o interior dos Estados Unidos algures na primeira metade do século XX. Contudo, a história limita-se a mostrá-lo a casar-se com uma mortal, a desviar as suspeitas do outro pretendente desta mulher face à sua verdadeira natureza, e a influenciar constantemente o que ocorre em seu redor, algo que lhe traz infelicidade pois sente que nada é genuíno na sua vida (quem diria que os deuses tinham problemas existenciais tão vincados?). Se ele encontrou guarida, contudo, quando foi a vez de se deparar com uma menina branca que tinha perdido toda a família, a rezar num cemitério, e pretendeu dar-lhe refúgio, um novo lar e uma esperança na vida, como qualquer deus que se prezasse, a mulher avisou-o de que, dada a sua cor de pele, era melhor não, e portanto abandona-a no meio da estrada. E acaba assim. Não sendo um conto particularmente bem escrito, repleto de interjeições intimistas que quebram o ritmo, e dada a natureza puramente circunstancial do protagonista (enquanto deus, não realiza nenhum feito divino, portanto poderia ser um qualquer outro personagem cujos fortes princípios morais contrariassem a decisão final, para os efeitos da história), eis um conto perfeitamente dispensável de publicação, e muito menos de inclusão neste tipo de antologias.

Melhor sorte não se reserva a «The Last Worders» de Karen Joy Fowler, autora de quem tenho uma excelente opinião a nível literário. Mantendo uma qualidade de escrita elevada, por vezes fazendo recordar-me Ursula Le Guin, eis a história de duas gémeas que estão tão unidas em pensamento e acto que se apaixonam sempre pelas mesmas coisas. Isto é complicado para elas, pois implica que se apaixonarão sempre pelo mesmo rapaz, e assim uma delas nunca será feliz. A solução que encontraram no liceu foi de fazerem um voto mútuo no qual nenhuma delas procurará aquilo que verdadeiramente pretende, o que é tramado em termos afectivos. Daí que, mais velhas, tenham chegado a uma conclusão: que seja o rapaz a decidir. E é assim que, após colocarem um detective privado na senda dele, viajam até San Margais (lugar inventado?), lugar onde foi registado o último movimento do seu cartão de crédito. O rapaz terá de escolher uma delas, só assim alcançarão a felicidade. Ao mesmo tempo, procuram «The Last Word», um café de stand-up comedy sem a parte da comédia. Supostamente o rapaz actuará nesse lugar, que se situa no final da escada que leva ao rio, no fundo do desfiladeiro, que outrora escravos subiam e desciam sem parar para trazer água fresca para a vila. O pormenor histórico não acrescenta nada à história, que parece resultar de uma colagem de incidentes, pensamentos e estilos (a cena surrealista na qual o discurso proferido pelo rapaz influencia a vida dos ouvintes, que não conseguem voltar para as suas casas, os seus cônjuges e filhos, e são obrigados a recomeçar uma nova vida, está completamente desenquadrado do estilo mundano e directo que perpassa todo o conto). No final, apenas uma das irmãs consegue entrar no «Last Word», e de facto, apenas uma delas entra, deixando a outra de fora, pela primeira vez separadas em acto e intenção. E acaba assim, mais uma vez. Torna-se difícil perceber qual a verdadeira intenção da autora. Quereria mostrar que cada ser faz o seu próprio destino? Que não há ligações eternas? Que todos estamos à espera da primeira cena do filme da nossa vida? Julguem por vós próprios. Na minha opinião, trata-se de uma das mais fracas narrativas do historial de Fowler e mais um contributo negativo para uma antologia que se diz ser de fantasia.

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