Exposição Prolongada à Ficção Científica  

   um blog de Luís Filipe Silva


Encontra-se em modo de artigo. Para ver as outras entradas vá para a Página Inicial ou Arquivo, no menu da direita.

06 Dezembro 2008

Leituras Aleatórias. «Catherine Drew» de Paul Cornell é uma movimentada peça de ficção, a abrir a colectânea Fast Forward 2, organizada por Lou Anders e cujo objectivo é dinamizar a produção de histórias curtas de ficção científica (com o tal cunho verosímil, não tanto fantasioso), revolucionárias, excitantes, magníficas, etc, etc. Interessantemente, é uma história de espionagem num sistema solar alternativo, em que Deus está efectivamente presente através de um «campo de boa fortuna» ao qual se pode rezar, e no qual, embora o sistema solar tenha sido colonizado por potências «menores, que envergonham os grandes impérios», os grandes impérios da história são efectivamente o russo e o alemão (ao qual Inglaterra se subordina). Trata-se de uma história de espionagem e, obviamente, de descoberta de uma forma de comunicar com o «nosso universo» (geralmente a forma preferida de os autores mostrarem, sem explicar directamente, que se trata de um universo alternativo com outras leis de física), energética e movimentada como um grande espectáculo aéreo, embora no momento de nos despedirmos, afastamo-nos com a sensação de que não nos disse nada de novo -acerca do universo, da vida, de nós mesmos.

[Link Permanente

03 Dezembro 2008

E Somos Cem! Às últimas horas de domingo, 30, um tsunami de submissões conseguiu elevar o número de entradas para a centena. Terá havido outra antologia de ficção marginal e marginalizada com tanta concorrência? Algo é pelo menos garantido: quanto maior a ceifa, maior o trigo, independentemente da proporção do joio. Um grande obrigado a todos os que decidiram entrar nesta jornada, e como foi apanágio do regulamento, espero que tenham conseguido divertir-se no processo. Quer sejam (desta vez) seleccionados quer não, espero que continuem a escrever. Foi, principalmente, a feliz constatação de que podemos ser afinal, um país de contadores de histórias. Ou antes, uma cultura, ou não tivesse tido a honra de receber um conjunto representativo de participações brasileiras. O trabalho difícil é agora concluir a selecção (não um trabalho solitário mas algo que vai receber comentários de partes terceiras em fases mais adiantadas, como convém), e começar a dar um formato ao livro final.

Numa onda paralela, destaque para o Blade Runner, agora com novo e invejável cabeçalho, que prometeu e cumpriu apresentar 30 livros de antiga memória das edições portuguesas do género, permitindo-nos viajar até tempos idos e relembrar, por momentos fugazes, as idades, dias, ocasiões em que certos livros entraram na nossa vida e foram importantes. De entre todos, Tron destaca-se imponente, na humildade da sua época tão ou mais importante que o Matrix. Os jogos mais apetecíveis são também os mais simples. Se não acompanharam a senda diária, aconselho-vos a efectuar a mesma viagem em diferido. O bom da velha internet é que nos permite navegar, assim, na informação, como se ontem tivesse sido hoje.

Não queria admitir, mas ele estava com medo.

A rapariga continuava escondida no beco. Pouco tinha vestido, apenas roupa interior - um vestido atado à cintura, com um topo muito justo e curto, de onde pendiam seios fartos dos quais não conseguia desviar o olhar, e uma saia rasgada, deixando antever um conjunto de ligas que adornavam pernas esculturais, daquelas que só se encontram nas capas de revistas. Mas não se encontrava nos seus melhores dias. Tinha um aspecto sujo, sovado. O cabelo, decerto que esplendoroso em ocasiões normais, estava sujo e desgrenhado. Por todo o corpo e roupa, notava-se por um predomínio de manchas de lama e terra secas, marcas de mãos e sapatos, talvez um fio de sangue aqui e ali. E para finalizar com toque de ouro, chorava desconsoladamente, sentada sobre uma caixa, encostada contra a parede fria do beco (era, afinal, Novembro, e ainda na semana passada nevara em toda a cidade).

Não o tinha notado ali, no fundo do beco, a olhar para ela, surpreendido em pleno acto de vitimização de mais uma menina da noite. A faca ainda respingava sangue da mulher que ele arrastara pouco tempo consigo, de quem tinha estado a extrair meticulosamente o útero. Felizmente que entretanto a dor e o choque a tinham levado, senão nem mesmo a mordaça teria impedido de soltar a quantidade suficiente de barulhos que alertassem a rapariga antes desta mergulhar no beco e o forçassem a fugir antes do trabalho acabado. O que teria sido uma pena.

Contudo, quando se tinha apercebido da companhia inesperada, já a rapariga estava encostada à parede, já encarava a vida com o maior dos desgostos. Nunca vira tanta tristeza num rosto tão jovem e bonito. Era perfeito. Era a vítima perfeita, a combinação exacta de beleza, desamparo e desespero que jamais encontrara. Era a mulher dos seus sonhos.

Daí que tivesse tanto medo. A perfeição era um alvo inalcançável. Ousar sequer atingi-la traria consequências nefastas. O pecador é aquele que cede ao desejo, pensou, e põe em risco a sua alma imortal. Não podia deixar que isso lhe acontecesse.

Além disso, a situação era-lhe tão propícia que simplesmente se recusava a acreditar que fosse coincidência. Não havia almoços grátis. Certamente que a polícia estaria à sua espera, à menor sugestão de silhueta nas sombras. A aguardar por ele.

Mas os minutos passaram-se e a rapariga não ficou mais calma. Pelo contrário, cada vez a sua angústia era maior, a cada momento mais lágrimas lhe irrompiam do rosto. E contudo, não se ia embora, não abandonava sequer o assento.

Ele bem tentava controlar-se. Mas a oferta era demasiado tentatora.

Armado com um sorriso simpático, aproximou-se, a faca a brilhar no luar ocasional. Quem sabe se ela não gostaria dele à primeira vista?

- Olá - soltou. A voz saiu-lhe ameaçadora como de costume. Era algo que não conseguia evitar. Os dedos tremiam-lhe ao antever o momento em que a lâmina beijaria a carne, em que lhe traçaria um sorriso abaixo daquela boca, como se inscrevesse a sua marca na perfeição do Senhor.

Ela não se assustou. Olhou-o placidamente. Como se o esperasse. Pareceu-lhe inclusive que... sorrira?

- Não vai gritar? - perguntou-lhe ele. Aquilo não estava nos seus planos.

Ela negou com a cabeça.

- Sei quem é... leio os jornais - baixou o pescoço, expôndo-o. - Faça o que tem a fazer.

Entrou-lhe uma raiva súbita. Mas quem se julgava ela, para comandar a sua mão de artista? Que direito lhe assistia em estragar a perfeição do momento, em arruinar o seu prazer? As mulheres eram bichos traiçoeiros e demoníacos, todas iguais, todas merecedoras do mesmo castigo. Iria corrigi-la, isso sim, mas não como ela pretendia. Com ela iria ser lento e cruel. Muito cruel.

Agarrou-lhe no cabelo e puxou-a para o chão. Ela debateu-se.

- Não, assim não, não quero morrer assim!

Queria ficar sentada. Ele puxou-a com mais força. Ela não conseguiu resistir.

A caixa onde ela estava sentada tinha um olho vermelho que piscava. No breve segundo em que ela se levantou, o olho deixou de piscar, acendeu-se, e cuspiu uma pequena bola para o ar. A bola ascendeu ao nível dos olhos dele.

Explodiu em cem mil agulhas finíssimas. Cravejaram o beco, enterrando-se com profundidade nas paredes, atravessando a rua e cortando os céus onde encontraram aberturas. As autoridades teriam dificuldade em recolher provas, de tão profundamente se tinham enfiado.

E todas as autoridades médicas concordaram que nada no sistema penal de Sua Majestade teria sido um castigo tão doloroso para o demónio das noites.

[Link Permanente

Site integrante do
Ficção Científica e Fantasia em Português
Texto
Diminuir Tamanho
Aumentar Tamanho

Folhear
Página Inicial

Arquivo

Subscrever
Leitor universal