Exposição Prolongada à Ficção Científica  

   um blog de Luís Filipe Silva


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31 Janeiro 2009

Há Uma Rara E Cândida Confissão escondida nos parágrafos iniciais de «Of Late I Dreamt of Venus» de James Van Pelt, conto escolhido por Gardner Dozois como um dos melhores do ano de 2008. Em órbita ao redor de Vénus, apreciando o planeta pela escotilha, o texto oferece-nos esta passagem:

The scene from the window cast a mellow light. Silent. Grand. A poet would write about it if one were here.

Quem o diz não é a voz interior de nenhum dos personagens, nas quais o autor poderia procurar uma desculpa, mas o próprio narrador, em que o escritor reside. Como se nos avisasse: deparei-me com esta história, e vou contá-la, mas digo já que não tenho mãos para isto.

E é de facto uma história bastante peculiar. Para a qual ele não tem mãos.

Considere-se a terraformação de Vénus: o sonho de vida, o grande projecto de Elizabeth, uma mulher de negócios implacável, dona de uma gigantesca corporação, habituada a mandar e a ter todos os meios ao seu dispor quando precisa. Mas Elizabeth não se compadece com o sonho - pessoa prática que é, precisa de ver a forma concretizada e assistir ao trabalho final. Decide assim hibernar durante duzentos anos.

Henry é o acólito/assistente. Henry está fascinado, apaixonado por ela. Mas Henry tem uma cicatriz no rosto, é baixo, é subordinado, é muito do que lhe desagrada. Leva-o consigo na viagem porque se dispôs a isso e poderá confiar nele - mas sem o deixar aproximar.

Habituada a ter as coisas ao seu modo, pede aos médicos que retirem a cicatriz do rosto de Henry, enquanto dorme.

Mas duzentos anos não bastam, e Vénus está longe de se parecer com a Terra. Henry tinha acordado quatro anos antes para coordenar o projecto e preparar o acordar dela. Ela diz-lhe que quer dormir mais quatrocentos. Ele diz que ela não devia ter pedido que o modificassem, Ela limita-se indicar aos médicos que o façam ser mais alto, enquanto ele dorme.

Na segunda vez, Vénus já apresenta traços substanciais de mudança - atmosfera, cidades na superfície - mas continua árido e feito, na perspectiva dela. Henry acordara seis anos antes. Elizabeth é agora quase uma deusa, dona de uma vastíssima corporação. Ainda assim, quer avançar. Seiscentos anos é o tempo do sono. Henry diz-lhe que não quer ser mais alterado. Ela diz aos médicos que tornem o cabelo dele mais grisalho, porque é como ela gostaria de o ver.

O terceiro acordar é o do desfecho. Henry antecipou-a por duas décadas antes e está velho. O mundo dos homens mudou, e ela já não é dona de nada. Vénus continua diferente do que ela previra, nada parecido com a Terra, mas ele tenta dizer-lhe que não tem de ser igual. Ela só pensa em reconquistar o poder perdido, recomeçar do nada, continuar o sonho. Mas aparentemente terá de contentar-se com Henry. E, verdade seja dita, Henry contentar-se com ela.

Este paralelo da transformação forçada de um planeta com a transformação forçada de uma pessoa para se adequar ao ideal de outrém é uma ideia literariamente interessante, e que poderia ter ganho substância em outras mãos ou noutro género ou possivelmente com um maior espaço para desenvolvimento. Afinal, muito se poderia falar da natureza das relações e da órbita dos planetas. Da questão do poder e da atracção fatal dos corpos celestes. Dizer que o amor também é regido por leis físicas inescapáveis que por vezes destroem os astros envolvidos. Ou no mínimo, ser mais fiel ao sonho húmido dos CEOs, fazer uma genuína bedtime story para membros de Conselhos de Administração.

Mas a escolha de perspectiva narrativa foi infeliz, ou feita com demasiada cautela. É demasiado sóbria, demasiado bem comportada. A objectividade é um empecilho. Devíamos ver pelos olhos de cada um dos protagonistas, acompanhar o percurso emocional de ambos.

Contudo, o autor foi sincero. Avisou que ali não morava um poeta. É possível que essa consciência se deva ao facto de ser professor de inglês. Com outros colegas seus, mais convencidos ou insensiveis, não temos essa sorte.

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31 Janeiro 2009

E Daí Que Nem Sempre A Promoção do Livro Pelo Autor seja a melhor estratégia. Porque se o autor escolhesse promover, teria sido promotor. Depois cai-se na banalidade em que se fala de tudo, menos do livro, ou seja, do nada. É fácil cair nesta situação. Há bastantes anos, numa Fnac, em debate conjunto por ocasião do lançamento de uma antologia, acabámos, por mera inércia, por falar muito dos problemas da ficção científica e pouco do livro em questão. Atento, o editor notou que quase ninguém na audiência o quis comprar; não admira, comentei. Numa reprise do acontecimento, em que se prestou a devida reverência e se leram excertos, as coisas correram comercialmente melhor. O que o autor tinha a dizer já o disse no livro - o resto são normalmente questões logísticas e técnicas sobre o processo de fabrico, mais adequadas a uma oficina de escrita e não ao público em geral. Uma verdade comum a várias artes, visível, por exemplo, nos documentários de produção dos filmes. Quando o realizador passa o tempo a vangloriar-se do apoio logístico da Câmara, da montagem dos cenários, da coordenação de equipas em diferentes locais, da qualidade das câmaras, da complexidade da maquilhagem, algo está errado. Então, e a intenção? A história, o slice of life? O que contribui este filme ou este livro para a minha vida? Não pedes só o meu dinheiro, mas também o meu tempo. E que prescinda de ler ou conhecer algo que me faria mais feliz. António Guerreiro estava correcto em pedir um cordão sanitário entre o escritor e a obra. Eu teria pedido aqui um colete de forças e uma providência cautelar. Não pelo caso nem por se tratar de quem é, mas pelo infeliz tom do discurso. Sobre a natureza da escrita. Um livro não se faz de silêncios. Um livro é comunicação, e o silêncio é a recusa absoluta de comunicação - é a folha em branco, a cela vazia. A situação que não avança. O plano estático, lento, longo, inútil, dos filmes de Oliveira. A atitude letal promovida por um certo tipo de literatura. Uma postura afectada básica, um defeito inerente à natureza do criativo, mas que, como a defecação, devia ser feita com a porta fechada. Porque o problema não está em quem costuma dizê-lo, pois estes são normalmente mais sábios. O dano está nos jovens autores, que ouvem e ficam deslumbrados e vão para junto dos laptops com a ideia de escrever sobre o silêncio. Sobre o silêncio, antes de terem dito algo de jeito. Querem desenhar o touro antes de saberem segurar no pincel.

Porque o silêncio na escrita não é nada. Mas a hesitação - a hesitação, essa sim, é bastante reveladora.

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