Exposição Prolongada à Ficção Científica  

   um blog de Luís Filipe Silva


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08 Maio 2010

O Mistério Dos Escritores Fantasma. Por vezes a edição apresenta-nos estas agradáveis surpresas. Um autor, necessitado de ganhar uns trocos, aceita contribuir para a marca mais vendida de uma editora – seja autor, personagem ou colecção –, escrevendo um romance, normalmente sob anonimato. É uma verdadeira prestação de serviços, pagamento garantido, esforço reduzido. No caso em que se trata de uma série, existem normalmente orientações que explicam o grau de liberdade a assumir com os personagens e as situações; por vezes os enredos são à partida delineados pelos criadores da série e o que resta é dar corpo ao esqueleto, encapá-lo e lançar para as livrarias. Não há vergonha nisto – ajuda a pagar as contas, ajuda a desbloquear os dedos, e é mais um livro para o currículo. É pena que não tenhamos em Portugal um mercado e uma prática tão grande que mais e melhores autores consigam subsistir com esta actividade.

E depois, por vezes, temos as tais agradáveis surpresas.

Ellery Queen é um dos detectives mais interessantes da literatura policial. Não tendo granjeado da fama de Doyle e Christie, é no entanto dos poucos que reconheceu a natureza do jogo deste género, tendo ficado famoso pelo seu «Desafio ao Leitor» - chegado a determinado momento na narrativa, é dito ao leitor que se encontra na posse de todas as pistas necessárias para identificar o assassino, e que estas não enganam. A partir deste ponto, a história prossegue para, item por item, irem eliminando os restantes suspeitos até ficar, inequivocamente, o verdadeiro culpado. Fosse a realidade assim tão simples...

Quem conhece o género sabe sem dúvida que o detective foi criado por dois primos nova-iorquinos e que Ellery Queen nunca existiu realmente, encontrando-se no mesmo universo maniqueista de Holmes e Poirot, repleto de agentes do bem que com argúcia científica renegam todas e quaisquer explicações metafísicas, confiantes que a observação do real e do concreto lhes revelará a verdadeira história oculta. É possivelmente um género que, na forma pura, terá mais dificuldade que a própria Ficção Científica em reconhecer soluções divinas ou intervenções fantásticas, devendo os instrumentos do jogo encontrarem-se em cima da mesa à partida. Asimov falava da dificuldade de misturar Ficção Científica e Mistério, pois era necessário, como autor, resistir à vontade de apresentar, vindo do nada, elementos do futuro com capacidade de adivinhação e que estragassem o prazer do jogo ao leitor. Mas por vezes os próprios procedimentos de investigação forense conseguem ser tão avançados que entram na aura do fantástico, como pondera a criminosa de um dos romances de Lawrence Block.

Tendo alcançado a fama e inaugurado uma revista mensal de contos policiais que ainda hoje é publicada, a Ellery Queen’s Mistery Magazine, os primos autores (Frederick Danny e Manfred B. Lee) decidiram alargar o leque de colaborações (supostamente por que Lee atravessava uma crise de bloqueio de escritor) e contrarar outros autores para alargarem o cânone do famoso detective. Eis como, em 1963, surgia uma colaboração invulgar com Theodore Sturgeon, um dos melhores autores de FC dos anos 50/60: The Player On The Other Side.

O tema não podia ser mais propício: a dualidade intrínseca do homem para o bem e para o mal, explorada como um jogo de xadrez entre vítimas e assassino. Uma dualidade, neste caso, concretizada num indivíduo em particular. Um indivíduo capaz de conter multidões. Sturgeon, que não era alheio ao tema da personalidade gestáltica, ao qual dedicara o famoso Mais Que Humanos na década anterior, deu corpo e vida a uma sinopse de 42 páginas preparada por Dannay. Ao resultado final, os primos autores acrescentaram umas coisas e mudaram outras tantas – por isso, infelizmente, não se pode apresentar aquela obra como sendo um texto puro e típico de Sturgeon. Ainda assim, os parágrafos finais, uma íntima reflexão sobre o eu e o outro, têm aquele toque introspectivo de que só este autor seria capaz com tanta maestria.

É um mistério extremamente invulgar no conjunto de romances habituais de Ellery Queen, com um perpretador que, afinal, é do mais divino que pode haver, mas igualmente humano. E mais não digo...

Deixei, contudo, o pormenor mais importante para o fim: o romance foi editado em português. Com o título de O Mistério dos Cartões de Despedida, é um dos números iniciais da colecção de bolso da Europa-América, lançado em finais dos anos 80.

Não deixa de ser uma coincidência interessante que, de entre as dezenas de obras possíveis de escolher, escritas por Lee e Dannay ou pelos futuros colaboradores, a de Sturgeon tenha sido incluida na curta presença de Ellery Queen naquela colecção. E que exista, escondida e discreta, em língua portuguesa, para ser descoberta pelo observador atento. Qual verdadeiro desafio ao leitor.

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07 Maio 2010

Existe Uma Liberdade Intrínseca a um texto mainstream (dir-se-ia «literatura do quotidiano», embora na verdade represente tudo o que não se encontra categorizado como um género) que não consegue ser duplicada pelos autores de Ficção Científica e Fantástico. É uma liberdade patente na voz do narrador e no estilo da história. Os bons textos de mainstream preocupam-se com a experiência da leitura – ao invés de procurarem um estilo transparente, directo, hemingwaysco, sem sabores nem odores, assumem que a percepção da narrativa por via das palavras é diferente, e deverá ser diferente, da percepção visual ou auditiva, e esforçam-se por nos conduzir nessa viagem. O autor de mainstream não se preocupa apenas com a necessidade de contar uma história, mas de como deve contá-la. Obviamente, como em tudo, há exageros ou pressuposições falsas. Um bom autor deixa-se conduzir pelo estilo que melhor serve a história em questão. Os autores menos bons – inclusive os autores que outrora foram bons mas se deixaram estagnar num modo muito próprio de escrever, por que, além de conveniência, também serve de imagem de marca – perdem-se em malabarismos de imagens e metáforas e excessos descritivos e acabam partindo a loiça. Cada história necessita da abordagem que melhor a serve.

Não é por isso de todo disparatado dizer-se, por exemplo, que «havia uma velocidade no teu olhar». É uma questão de contexto. Apresentada assim, despida, corre o risco de tornar-se ridícula. Enquadrada numa descrição sobre a sagacidade do personagem ganha sentido e poesia. O contrário acontece com frases como «o cais é uma saudade de pedra». Esta frase encerra o contexto de si mesma, é uma unidade perfeita, e por isso mesmo serve como epígrafe, citação, descrição e verdade universal, caso seja necessário. Mas é por estes e outros exemplos que o Pessoa é o Pessoa e o autor da frase anterior o mero escrivão desta crítica.

Daí que a experiência de ler mainstream por quem lê exclusivamente obras de géneros, e vice-versa, seja intensamente frustrante. Não se obtém igual tipo de alimento. O leitor de géneros procura a experiência da história, e o texto não é mais do que um veículo eficiente para a mesma. O leitor de mainstream equipara, lado a lado, a história com a efabulação da escrita, e estilos secos e directos apenas podem ser compensados pela relevância do conteúdo - além, claro, dos normais conflitos de expectativas. Possivelmente o mainstream considera que o íntimo é a medida de todas as coisas e que uma história deve considerar o mundo exterior como um incómodo necessário ao centrar-se na evolução da percepção individual, e o género borrifar-se-á tanto para o íntimo do personagem como para o íntimo do vizinho e o que pretende é o deslumbramento infantil de observar a interacção entre objectos, circunstâncias e pessoas enredar-se numa complexidade de padrões e significados. Um encara a existência como uma série de circunstâncias aleatórias das quais pode retirar entendimento, o outro acredita que existem pequenas narrativas ocultas na grande narrativa que é a existência. Como em tudo, ambos estarão correctos, ambos estarão errados.

Onde, por vezes, a distinção entre mainstream e géneros surge mais vincada – e ao mesmo tempo, mais próxima – é na descrição de uma experiência intensamente pessoal. Ao tentar expor-nos algo que imesuravelmente o fere ou encanta, o autor deixa transparecer o seu envolvimento, deixa que a história se conte por si mesma, o que é suficiente para derrubar critérios literários e expectativas. Sabemos assim que estamos perante uma obra-prima.

A Breve e Assombrosa Vida de Oscar Wao poderá não ser essa obra-prima, mas sabemos que contém muita dor e vivência pessoal. Basta folhear os capítulos. A mistura de pontos de vista, a existência de capítulos curtos e saltos no tempo, a inserção quase excessiva de notas de rodapé, dá-nos de imediato a sensação que se trata de uma história com muitas facetas e muitos exemplos mas que é na verdade uma história simples. Que há muito para contar, mas é muito do mesmo e portanto há que saber contá-lo. E sem dúvida, a premissa narrativa é explicada nas primeiras páginas, ao apresentar-nos um adolescente «geek» (em tempos chamar-lhe-íamos totó), gordo e socialmente desajeitado, que encontra na Ficção Científica e nos jogos de computador e R&D o seu pouco encanto com o mundo. Esta travessia por um período tão difícil da vida não é ajudada pela necessidade premente de encontrar uma rapariga, por ser amado e aceite num meio latino com uma pressão cultural intensa pela evidência do homem em cada rapaz.

Latino? Sim, Oscar Wao é de ascendência dominicada, como o próprio autor, Junot Díaz, mas cresce num bairro de Nova Jersei. Oscar é então emigrante em terra estranha, mas transporta nos genes e no pensamento os ecos da terra que o gerou. Esses pensamentos ensinam-no que o fukú existe, que é basicamente a má-sorte, o fado, e que quando assenta numa família e numa pessoa, esta encontra-se condenada a um inferno cristão em vida. Terá sido o fukú que lhe deu aquele aspecto e sina, como foi o fukú que condenou a República Domicana a submeter-se ao jugo de Trujillo, um ditador aqui descrito como um verdadeiro animal selvagem que um povo passivo não foi capaz de destronar (bem, o nosso próprio exemplo acabou destronado por uma cadeira defeituosa e pela senilidade, por isso também não temos muito de que nos orgulharmos). Oscar é fruto de uma família desgraçada pelo fukú, cujo azar foi ter uma filha muito bonita que chamou a atenção do ditador – um apreciador de meninas bonitas – e dos seus lacaios. Quem brinca com fogo...

Junot tem obviamente muito para contar, e quase se atrapalha a contá-lo. É também filho de duas culturas, expatriado cultural, e terá sentido que um único idioma não faria jus à salada linguística que lhe povoa o pensamento. A Breve e Assombrosa Vida é assim um livro inglês salpicado de espanhol, ou talvez o contrário – contraste evidente na edição original, mas que se dilui por completo na edição portuguesa. Diga-se de passagem que a Porto Editora assumiu a atitude corajosa de não italicizar o estrangeirismo, embora por vezes isto perturbe a leitura, pois o castelhano não salta tão à vista como no texto original. A tradução é no mínimo competente, com alguns momentos infelizes, quando procura explicar algumas das citações da Ficção Cientifica... ah, não vos disse?

Oscar Wao é um geek que observa o mundo pela lente das suas leituras. Estas parecem confinar-se a Frank Herbert, Gordon Dickson e Tolkien. Compara Trujillo a Sauron e imagina-se Dorsai. Uma atitude que me pareceria natural num adolescente com tais gostos, esta opção de contra-cultura de Junot Díaz foi enaltecida pelos críticos, quer do mainstream quer do género. Francamente, não consegui encontrar igual fascínio. Os críticos do mainstream louvam o autor por assumir a sua street-smartness e geekiness, como se se tratasse de um topping adicional na sobremesa – como se, efectivamente, e dada a história tão emocional em questão, fosse algo dispensável. Os críticos da Ficção Científica apreciam o respeito mostrado aos autores e temas do género, como se de facto as poucas descrições dos seus hábitos de leitura elevassem esta obra a uma introdução a leigos da complexidade inerente ao Fantástico.

Não encontro outras leituras que de tratar-se de uma história quase incomodativamente pessoal, um colocar a nú de velhas feridas – e há que admirá-la por isso. Um nú não apenas familiar mas de todo um povo e uma geração, que precisava de expor as injustiças por que passou face às injustiças que outros reclamam para si. Os melhores momentos do livro não se referem a Oscar Wao – um alter-ego possivelmente deturpado do autor – mas quando regressa a Santo Domingo e ao passado, quando conta a história trágica dos avós e do conflito com o ditador. São momentos poderosíssimos em que Junot apresenta as suas melhores qualidades de contista. Momentos,afinal, sem referências à Ficção Científica.

Um breve mas assombroso livro, sem dúvida.

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