Exposição Prolongada à Ficção Científica  

   um blog de Luís Filipe Silva


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19 Março 2011

A Melhor Forma De Perceber de que modo a tecnologia altera a nossa percepção do mundo encontra-se nas histórias que contamos e histórias que nos parecem credíveis. Enquanto extensão das nossas mãos e pernas e boca e olhos, a tecnologia permite-nos ultrapassar distâncias, épocas e culturas. O animal humano evolui enquanto está distraído, e contudo, nada lhe é mais evidente, pois a tecnologia, ao ser adoptada, transforma a vida. Se o surgimento se traduz num choque do futuro, a sua ausência pode originar dissonância cognitiva, ou mais simplesmente, inviabilizar a crença do possível.

Veja-se o exemplo dos telemóveis. O tempo em que eram uma brincadeira das séries televisivas de ficção científica - e também uma presença quase obrigatória - tornava-os em oportunidades de enredo, permitindo que muitos heróis fossem salvos no último instante graças à intervenção de uma chamada informativa. Não havia muita preocupação com particularidades, como alcance e capacidade da bateria, uma vez que era imprescindível que, quando fosse necessário, teria de funcionar.

No entanto, quando os telemóveis efectivamente surgiram para uso das massas, e não era mais possível ignorá-los, começaram a tornar-se numa presença constante das histórias. Como explicar os mal-entendidos, os desencontros, os desaparecimentos acidentais, quando, na pior das hipóteses, o personagem em causa poderia pedir emprestado o telemóvel a alguém para contactar a pessoa desejada, ou o respectivo colega, amigo, irmão, pai? Na era da ubiquidade, ninguém está isento de contacto.

Há quem aproveite o telemóvel para fins dramáticos. Lembro-me particularmente de um episódio da série Highlander, em que a vítima humana se esconde num armário do imortal que a perseguia e vai relatando o que está a acontecer pelo telemóvel, até ser surpreendida com uma daquelas lâminas que trespassam portas e barrigas sem a mínima dificuldade; diria que usar o telefone naquelas circunstâncias não terá sido muito sensato, mas todos conhecemos pessoas que não conseguem ficar caladas de modo algum. Por sua vez, a série 24 usa e abusa do factor comunicação, ao ponto de todas as reviravoltas do enredo serem continua e repetidamente explicadas aos principais personagens (na verdade, ao espectador que se encontra a fazer zapping), em particular quando se encontram a conduzir; a última temporada chegou a colocar um actor a contracenar durante vários episódios para o auricular bluetooth, sem dúvida uma situação ingrata. Finalmente, o filme Buried, que deu azo a esta verborreia, apenas funciona por que dedica grande parte do suspense narrativo à possibilidade do protagonista comunicar a sua situação desesperada com o mundo exterior.

Isto não significa que os escritores saibam utilizar o telemóvel da melhor forma. Nem que estejamos mais ricos com a sua existência. Quando é preciso regressar a um estado de incompreensão - de inocência - há que justificar o seu desaparecimento. E já não existe novidade nenhuma em utilizá-los na ficção científica. Ou seja, tornaram-se num empecilho para as histórias a que estávamos habituados. Talvez esteja na hora de descobrirmos outras histórias para contar.

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14 Março 2011

Tem Um Encanto Tão Irresistível quanto a sensação de oportunidade perdida, o discreto Mulher e Arma com Guitarra Espanhola. Foi esta a minha primeira exposição à escrita de McShade – um Machado mal disfarçado, de chapéu inclinado e gabardina, à Bogart, mas ostentando uma expressão divertida e acolhedora, como quem sabe que a vida é uma brincadeira e não passamos de crianças com rugas. «O género policial pede uma nova fonte: a grande realidade geral, que nada recusa, nem mesmo a fábula», diz o editor Dinis do autor Dennis. Reza o povo que os autores são os piores editores de si mesmos, e este caso não é excepção. Ao apresentar-se, Machado desculpa McShade, que por sua vez justifica a escolha de Machado. Tudo é uma grande brincadeira, pois a verdade da vida são as rugas. Maynard é o nome da voz que percorre as divisões deste livro – divisões de uma casa que está em festa, em que nada é totalmente sério, em que abunda bebida e boa disposição e ocasionais figurinos. Existe Maynard, já o dissemos, um homem supostamente implacável mas que não vemos fazer mal a uma mosca, nem às metafóricas; um homem de um requinte cultural como não acreditaríamos encontrar nas ruas de Nova Iorque, em quem enfrenta os durões que aguardam debaixo de chuva com um colt na algibeira. Eis o detective poeta, não o Marlowe das ruas e das noites, mas o Maynard das galerias de arte e do café As Vinhas da Ira, ao qual muitas páginas são dedicadas e cujos clientes, entre gangsters e acompanhantes, se fazem apresentar com o nome de autores famosos e Baudelaire discursa sobre as flores do mal. Existe efectivamente uma mulher, ou várias, todas educadas e bem tratadas; existe uma arma que nunca dispara; existe uma guitarra tocada num disco da preferência do perigoso chefe, que se derrete pela música espanhola. Saltamos de divisão em divisão, conversando com os participantes da festa, e, inebriados, nem sabemos bem o que estamos à procura. Ocasionalmente, despertamos do torpor e olhamos em volta, a perguntar direcções. Avançou-se? Estou a andar num sentido? É quando a prosa nos aborda.

Os lábios de Olga tocaram suavemente na minha sobrancelha esquerda, e aquele movimento oferecia sempre a sensação de barco que navega. E eu era água.

E, sorrindo, descontraímos. Não há perigo. Estamos em boas mãos.

É impossível resistir ao encanto deste anfitrião. É complicado apontar-lhe falhas, pois ele esforça-se por nos acolher e demonstrar que o mundo também pertence às almas sensíveis e à Primavera. Quem consegue discordar? E contudo, contudo: no final, aquela sensação de pontas atadas à pressa, de respostas que se apresentam a perguntas que não nos inquietavam, de um fechar de embrulho amarrotado. Ou talvez o presente seja outro.

Nada poderia ser mais contrário à tradição do noir em que supostamente o editor Machado pretende inserir McShade, e nada poderia ter sido mais revolucionário. Se ao menos a seriedade emergisse de vez em quando. Se esta poesia fosse adornada de uma história, de um verdadeiro enredo, de uma intenção de retrato, e no retrato o mundo, e no mundo a eternidade do legado humano. Se Chandler tivesse distraido o ubíquo Vian, de modo que Hammett pudesse ter uma conversinha a sós com Maynard... estaríamos na presença de uma obra ímpar na pulp fiction internacional – não só na portuguesa. Única em termos de sensibilidade e estilo. Um grande e inesperado momento da literatura nacional, teria este sido.

A música toca, mas ninguém dança. A alvorada encerra, como é sua natureza, a última página das festas, e voltamos para casa com a mesma bagagem que trouxemos. Nada ganho, nada perdido, excepto momentos que ficarão na memória e uma companhia temporária de bebida e tabaco.

No fim, as frases, estas maravilhosas frases a que é impossível resistir.

Saí como quem sai de um conto de ficção científica: eram aquelas malditas portas mecânicas.

Lemo-as e sabemos: estamos em casa.

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