29 Maio 2011
São Bandos de Pardais à Solta. Quando apreciamos criticamente um romance que se destaca pela competência estilística mas cuja premissa base não se coaduna com a nossa visão - literária e pessoal - do mundo, que critérios devem guiar-nos? Devemos apreciar o livro apenas pelo que é, pontuando-o pela capacidade em responder aos desafios que se propôs a si mesmo? Devemos também julgá-lo por tudo aquilo que poderia ter sido dentro da sua proposta narrativa, todas as sombras dos livros que não foi e que espreitam a cada volta do enredo, a cada escolha frásica?Esta, creio, é a questão essencial do debate que aqui refiro en passant e que, se não chegou a conclusões, está a presentear-nos com um dos melhores conjuntos de artigos sobre FC da nossa língua: se de um lado existe a paixão feroz e admirável de estabelecer padrões exigentes e coadunados com o cânone mundial - um reconhecimento de que não existimos isolados nem isentos de influências no tempo e no espaço -, do outro existe uma nivelização perante o efectivamente produzido a nível nacional e, sublimada, uma aceitação, por nós partilhada no limite do razoável, de que diferentes terrenos darão diferentes cultivos em diferentes estações. Um lado desespera com a imensidão dos livros-sombra, o outro encolhe os ombros e mostra como provas as palavras efectivamente escritas. Ambos têm razão. Não há volta a dar.
Mais interessante se torna observar o esvoaçar dos pássaros espavoridos pela amigável troca de tiros, efeito secundário habitual destes arrufos campestres - ou não fosse este um blogue com um bizarro apreço pelos efeitos secundários. Pousados e mansos a debicar no solo, o matagal esconde-lhes as formas, são iguais e indistintos; só quando se lançam nos ares é que lhes reconhecemos a natureza pelo padrão do vôo. Pintassilgos humildes, picões esfomeados, bicos-grossudos de cores garridas, melros que querem atenção, gaivotas em terra, estorninhos agitados - que ocultam por vezes o mais raro e sabedor estorninho-rosado, com os quais se confunde -, perdizes hilariantes, há de tudo, tudo se vê. Enchem os ares, os pássaros à solta, como sempre reagem quando assustados, alguns chilreando de irritação pelo barulho e incómodo, outros divertindo-se na confusão e aproveitando, já agora, para exercitarem volteios de proeza aérea. Alguns gaviões sobranceiros pairam vagarosamente à distância, como quem não se compromete, e o ocasional falcão aproveita para uma investida rápida, seja em lebre ou em pássaro mais distraído.
Quando voltarem a pousar, como sempre o fazem, voltarão a esconder-se no matagal, outras vez meras formas - ainda que não tão indistintas, agora que se expuseram. Que lhes restará, quando regressar o silêncio? Voltaremos a observá-los em bando? Arriscarão ocasionais vôos solitários? Ouviremos finalmente a resposta a uma pergunta fundamental e bastante mais séria: e não se destinam os tiros, realmente, a afugentar um predador maior? Um predador que tudo uniformiza e tudo cala, que devora cores e curvas, que detesta pontos de interrogação e números aleatórios? Um predador tão lento e insidioso, que é preciso sacrificar anos de vida, de arma em riste e pose erguida, para se perceber o avanço? Um predador que adora os passarinhos que debicam no chão? Entendem a que nos referimos?
Eis a questão que devia preocupar-nos: quando regressar o silêncio, e os atiradores se recolherem por fim no conforto da idosa complacência, quem lhes renderá a guarda?
Ponderem então se é de silêncio que realmente precisamos.